Arte e fotografia,

O repórter do futuro

Livro traz de volta à circulação a produção fotográfica do correspondente de guerra cearense Luciano Carneiro

01abr2021 | Edição #44

O Instituto Moreira Salles paulistano ainda funcionava na acanhada sede do parque Buenos Aires, Higienópolis, em 2012, quando expôs pela primeira vez na cidade o trabalho de Luciano Carneiro (1926-59). Até hoje, o repórter fotográfico cearense está por merecer uma exposição que faça jus ao mais completo correspondente internacional brasileiro do século 20. 

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Durante todo o século passado, o Brasil não chegou a ser uma potência na fotografia de conflitos, como viria a se tornar no século 21, com a geração de André Liohn e Maurício Lima, ganhadores dos prêmios mais importantes do fotojornalismo mundial, hoje seguidos por uma lista em que se destacam Ueslei Marcelino, Felipe Dana, Gabriel Chaim, João Castellano e Yan Boechat, entre outros.

A produção de Carneiro, que além de pioneiro na cobertura internacional foi um jornalista completo, que fotografava, escrevia e desenhava páginas, foi esquecida nas décadas posteriores à sua morte prematura. 

Sua importância se insinua apenas por frestas da memória cultural. A maior parte dos moradores da capital cearense pode nunca ter visto suas imagens da Guerra da Coreia, mas conhecem a avenida Luciano Carneiro. Há outros logradouros com seu nome, inclusive em São Paulo. Turistas de todos os cantos já ouviram falar da praia do Futuro, em Fortaleza, mas desconhecem que Carneiro a batizou no título de uma reportagem, composta de fotos aéreas da orla da cidade, então intocada: “A praia do futuro”, manchetou ele em 1949, como conta o organizador Sergio Burgi na apresentação do livro Luciano Carneiro, lançado no final de 2020.

Brevê

Aquelas fotos aéreas diziam muito sobre o futuro da praia, mas também de seu autor. O jovem repórter foi trabalhar nos Diários Associados quando seu fundador, Assis Chateaubriand, movia a Campanha Nacional da Aviação, para melhorar os serviços aéreos no país, que tinha poucos aviões. Quando Chatô soube que o repórter de seu jornal cearense tinha brevê de piloto, ele foi transferido para O Cruzeiro, então a maior revista do país e uma das maiores do planeta. Não demorou a se fazer correspondente em Tóquio, de onde viajava para coberturas diversas mundo afora. Seu trabalho se destacou numa equipe que tinha nomes consagrados como Jean Manzon e jovens de talento como o futuro cineasta Luiz Carlos Barreto, Flávio Damm e José Medeiros.

Luciano Carneiro nasceu no Ceará, em 1926, e logo foi atraído pelo jornalismo. Começou como aprendiz aos dezesseis anos, no Correio do Ceará. Sua biografia sugere a personalidade de um jovem entusiasmado: em poucos anos, tornou-se jornalista profissional, entrou na faculdade de direito, fez curso de piloto e apostou na carreira de repórter fotográfico. Trocou um terreno que havia comprado por uma Rolleiflex (mais adiante, uma Leica completaria o equipamento). Além de pilotar, aprendeu paraquedismo, o que foi decisivo na reportagem mais impactante feita na Coreia, ao saltar com tropas norte-americanas atrás das linhas dos exércitos comunistas da China e da Coreia do Norte.

O livro, que tem o subtítulo Fotojornalismo e reportagem (1942-1959), foi publicado pelo Instituto Moreira Salles e pela editora cearense Fundação Demócrito Rocha. O IMS recebeu dos herdeiros a guarda dos negativos produzidos por Carneiro como correspondente no exterior. A produção feita no Brasil (1949-59) está no arquivo do Estado de Minas, dos Diários Associados, que herdou a memória de O Cruzeiro. Os dois acervos somam, segundo Burgi, cerca de 20 mil negativos e quinhentas reportagens editadas.

Uma das qualidades do volume é a mescla das fotografias com reproduções das páginas de O Cruzeiro (e de sua edição internacional, em espanhol), o que permite compreender o conceito de reportagem fotográfica, como eram editadas as matérias ilustradas, um estilo criado nos anos 1920 e 30, consagrando publicações como a Vu e a Regards francesas, a Life norte-americana, a Picture Post inglesa e tantas outras. O estilo viria a se esvair a partir dos anos 1970, quando essas revistas  de reportagem fotográfica foram deixando de circular, dando lugar a publicações com menos fotos ampliadas, o que é dominante até hoje.

Em suas reflexões sobre “o instante decisivo” de 1952, Cartier-Bresson diz que “é possível que uma foto seja tão radiante que contenha uma história inteira em si. Isso é raro. Mas é possível fazer fotos do cerne de um assunto e de outras faíscas exaladas pelo assunto. Isso é uma história fotográfica”, em que “a página junta todos os elementos que estão dispersos em diversas fotos”. Ele diz que, nos anos 1930, não tinha o entendimento da potência maior da reportagem fotográfica, mas passou a valorizá-la no convívio com colegas da Magnum, a cooperativa idealizada por Robert Capa (1913-54).

Já Capa, cuja obra hoje é discutida e estudada em fotos isoladas, em verdade concebia seu trabalho como um conjunto de vários fotogramas, o que se pode observar em publicações mais recentes, que reproduzem as folhas de cadernos em que ele compunha suas histórias visuais. É o caso da publicação da chamada Valise Mexicana, grande conjunto de negativos e fotos que Capa, sua mulher, Gerda Taro, e o companheiro de trabalho David “Chim” Seymour guardavam em um estúdio em Paris e ficou desaparecido por décadas a partir da ocupação alemã (1940). Levado para o México por um diplomata, em 2007 o material foi devolvido ao icp (Centro Internacional de Fotografia), instituição fundada pelo irmão mais novo de Capa, Cornell, e publicado em livro (The Mexican Suitcase, 2010). Nessa obra volumosa, fica claro como, já nos anos 1930, cobrindo a Guerra Civil Espanhola, Taro, Capa e Chim concebem na prática a reportagem como “o momento decisivo” de seu trabalho, conceito que seria definido nas reflexões de Bresson.

As principais publicações das décadas seguintes reduziram o número de fotografias nas reportagens, ampliando uma ou poucas imagens, aumentando o peso da descrição textual dos eventos reportados. Os editores buscam, assim, fotos que representem o “instante decisivo”, tão “radiantes que contenham uma história em si”.

Personalidade

Gênios como Capa e Bresson deixaram poucos escritos sobre seus trabalhos. Carneiro, ao contrário, manteve a prática de escrever as reportagens que produzia, o que se pode fruir nos fac-símiles. Ele manifesta personalidade também nessa lida. “O mundo anda cheio de moralistas que pregam o altruísmo, mas esse que venho encontrar na selva africana diverge dos outros num ponto. Ele não se contentou em falar. Em dizer que o homem só é verdadeiramente moral quando obedece à obrigação de zelar por outras vidas. Albert Schweitzer quis ser ele mesmo um exemplo de seu ideal.” Assim ele inicia a longa reportagem de 1955 em que perfila o médico francês, ganhador do Nobel da Paz de 1952, no interior do Gabão.

Em Cuba, faz uma reportagem interessante com “dois lados”: cobriu a chegada dos guerrilheiros de Fidel Castro a Havana, uma festa política romântica, e fuzilamentos que revelavam a crueza do regime. O material mostra o julgamento público de um agente do regime do ditador deposto, Fulgencio Batista, e o momento em que é atingido pelas balas do pelotão. O choque das imagens levou Fidel a pedir mais discrição nos paredones.

O choque das imagens de Carneiro levou Fidel a pedir mais discrição nos ‘paredones’

Carneiro viveu e cobriu o período da globalização logo após a Segunda Guerra Mundial (1939-45). Era um tempo marcado por um otimismo garantido pelo vertiginoso crescimento econômico. O Brasil vivia um período de rara estabilidade política (exceto pela ação de uns poucos militares golpistas, derrotados em levantes que Carneiro cobriu) e orgulho nacional. Nas coberturas na Coreia, em Cuba, Egito, União Soviética, Japão e em muitas histórias no Brasil, Carneiro encontrou e fotografou personagens que viriam a se tornar ícones culturais e históricos, como Fidel, Cartier-Bresson, o Marechal Tito, Ernest Hemingway, Gina Lollobrigida, Grace Kelly, Sophia Loren, Salvador Dalí, Assis Chateaubriand e o presidente Juscelino Kubitschek. Sua presença e a publicação de seu material refletem uma internacionalização cultural que contrasta tanto com a visão do Brasil que se tem hoje, de um país jeca, quanto, principalmente, com a jequice atual do país, que galopa para se tornar um pária, isolado dos fluxos culturais e econômicos planetários.

Carneiro trabalhava muitas vezes só. Assim foi produzir a reportagem sobre “O Primeiro Baile de Debutantes em Brasília”, com famílias dos trabalhadores na construção, antes mesmo da inauguração da nova capital do Brasil. Fotografou e morreu no choque entre o avião que o levava de volta ao Rio e outra aeronave, em 22 de dezembro de 1959, aos 33 anos. 

Nos destroços, foram recuperados alguns fotogramas, que O Cruzeiro publicou na edição de 16 de janeiro. Recebeu inúmeras homenagens nas semanas posteriores. Um filho nasceu em fevereiro, uma exposição com suas fotos foi apresentada em várias capitais. E nada mais, por praticamente seis décadas. O Brasil tem uma dívida com seu maior fotógrafo de guerra do século 20.

Quem escreveu esse texto

Leão Serva

É diretor internacional de jornalismo e correspondente em Londres da TV Cultura e autor de A fórmula da emoção na fotografia de guerra (Edições Sesc).

Matéria publicada na edição impressa #44 em março de 2021.