Arte e fotografia,
A inquietação das paredes
Paisagens de Claudia Jaguaribe e retratos de Rodrigo Koraicho expõem as contradições de São Paulo
04out2020 | Edição #35 jul.2020Dois livros contrastantes condensam os extremos de São Paulo. Diferem tanto pelo gênero como pelo tema: Claudia Jaguaribe compõe paisagens com as residências da elite paulistana, e Rodrigo Koraicho tira retratos dos sem-teto da cidade. Juntas, as fachadas ricas e as famílias pobres revelam as contradições da capital.
Jaguaribe criou uma obra intrigante: “Moro há muitos anos nos Jardins, área de limites fluidos, arquitetura eclética, avenidas de grande movimentação comercial e ruas tranquilas com cara de antigamente. Entre março e maio, enquanto fiz as fotos para este projeto, a região mudou e tudo ficou num compasso de espera. A temperatura e a luz de outono chegaram como uma sombra de silêncio sobre as ruas vazias. Apenas ao fim do dia a vizinhança se fazia ouvir no barulho do panelaço, expressando a indignação com a nossa falta de perspectiva, buscando ser ouvida no isolamento da quarentena. Apesar de não conhecer os meus vizinhos, descobri que, na nossa diversidade, temos em comum a mesma percepção deste momento dramático”. Ela termina o livro com um verso de Chico Buarque: “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia…”.
Suas fotografias, contudo, não exibem panelaços nem gritos indignados: vemos apenas casas fechadas em ruas desertas. Nenhum desses imóveis parece muito amigável. Embora a autora fale das avenidas movimentadas, as pessoas estão inteiramente ausentes das imagens. Não é por acaso. Essas mansões nem precisam de uma quarentena para isolar seus moradores: paredões altos, portões metálicos, cercas elétricas, câmeras e interfones, guaritas intramuros, guaritas extramuros… São construções excludentes, que mantêm os passantes à distância.
Essas fortalezas urbanas transpiram desassossego, e por isso multiplicam os diques contra os estranhos. Mas essa inquietação é um sentimento de mão dupla: a elite paulistana é assaltada pelo medo porque governa pelo medo. Da República Velha até hoje, ela nunca se esforçou em conquistar os corações e mentes dos subalternos. Sempre priorizou a coerção ao consentimento — parafraseando Maquiavel, ela prefere ser temida a ser amada. Como dizia o presidente Washington Luís, “a agitação operária é uma questão que interessa mais à ordem pública que à ordem social”. Por isso os Jardins nunca foram um baluarte da resistência antifascista: em 1989, Fernando Collor colheu ali 72% dos votos; em 2018, Jair Bolsonaro foi além: 73%.
Desnecessário empilhar mais dados eleitorais: basta olhar as fotos. Os casarões não escondem sua índole antipopular: não desejam apenas afastar os criminosos, e sim manter os trabalhadores no seu lugar. Já que a violência policial nem sempre é suficiente, a arquitetura vem em seu auxílio com a sua violência simbólica: o mendigo teme “a igreja aparentemente aberta”, já ensinava João Cabral de Melo Neto.
Um olhar otimista
Se as coisas são assim, o que a artista enxergou nessas casas? As fotos retratam imóveis contíguos, em que a vegetação de um deles invade a calçada e o terreno do vizinho. É como se as plantas criassem um laço vital entre os diferentes proprietários, aproximando pessoas antes estranhas e unindo-as numa comunidade mais ampla. Esse simbolismo visual possui um fundamento real: uma árvore só estende seus galhos sobre o espaço do próximo porque houve uma anuência tácita do morador ao lado. Sim, esses indivíduos de fato compartilham alguma coisa, possuem um interesse comum.
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A interpretação otimista, porém, não é a única possível. E se essa intrusão não fosse encarada com prazer? As árvores forasteiras bloqueiam as câmeras de segurança, abalam os muros e os pisos, dificultam o trânsito nas calçadas, enchem os quintais de folhas, lagartas, dejetos de aves. Aquilo que parecia um símbolo de união pode ser apenas a alegoria de uma grilagem.
“Grilagem” é uma palavra dura. Cidadãos de bem seriam capazes disso? Em 2004, no Palácio do Planalto, o então ministro José Dirceu, espantado, apontou um condomínio ilegal na margem oposta do lago Paranoá: “O Brasil é um país incrível. Aqui até os ricos fazem invasão”. Na verdade, aqui os ricos sempre fizeram invasões: a expansão cafeeira no Oeste paulista foi impulsionada pela ocupação ilegal de terras públicas e pela expropriação brutal de índios, camponeses, pequenos produtores. Essa grilagem nunca cessou — veja-se a Amazônia hoje.
As imagens do bairro talvez comportem a leitura positiva, mas a negativa é mais pertinente, pois explicaria a razão pela qual tais homens também se protegem dos vizinhos. Como dizia Hobbes, “que opinião tem ele de seus compatriotas, ao viajar armado; de seus concidadãos, ao fechar suas portas, e de seus filhos e servidores, quando tranca seus cofres?”. Entrincheirados em suas casamatas, seus donos sinalizam claramente o que pensam de seus camaradas de confinamento.
São dois modos de ver o mundo, que se cristalizaram na polarização que persiste até hoje
Com suas “ruas tranquilas com cara de antigamente”, Vizinhos tem uma atmosfera melancólica, que lembra bastante as Cidades mortas de Monteiro Lobato. Sua utopia regressiva encontra sua contrapartida urbana na realidade trágica de Ô culpa, de Koraicho.
Enquanto Jaguaribe fotografa o capital imobilizado em propriedades impessoais, Koraicho registra trabalhadores de carne e osso, moradores de uma favela construída sob um viaduto no Bom Retiro. E nos conta suas histórias. Abandonada pela mãe, Marcela foi criada a princípio por outra mulher, que a rejeitou ainda criança. Engravidou várias vezes, envolveu-se com drogas, acabou presa. Hoje é líder comunitária. Ilda também foi criada por pais adotivos: “Disseram que, quando ela nasceu, sua mãe a trocou por uma garrafa de pinga e um corte de pão”. Teve quatro filhos e passou dez anos apanhando do antigo marido: “Hoje vive em paz com Severino, seu parceiro há 26 anos”. Domingos, 55 anos, analfabeto, faz bicos de pedreiro e nunca teve festa de aniversário. Já Daiana vivia com os filhos na casa de seu pai, porém ele vendeu o imóvel e a botou na rua. Foi viver com o namorado, que a expulsou e tomou as crianças. Vagou sem rumo oito anos, fumando crack. Um novo companheiro a resgatou do vício. Tiveram gêmeos.
A exclusão mora aqui
A favela tinha regras, dentre as quais se destacavam “a proibição do uso de drogas, o barulho em horários inadequados, a higiene nos locais compartilhados”. O livro mostra uma comunidade viva: lares decorados, roupas nos varais oscilantes, brinquedos de plástico e, acima de tudo, pessoas — crianças brincando, idosos descansando, mães cuidando de seus bebês. Tudo foi destruído em 17 de março último, quando a Polícia Militar expulsou os moradores: o poder público demoliu seus barracos de madeira e eles foram jogados na rua em meio à pandemia.
Isso é terrível. Por que aquelas pessoas foram varridas? E por que precisavam viver debaixo de uma ponte? Porque no Brasil os rendimentos do trabalho são em geral insuficientes para alugar ou adquirir uma habitação a preços de mercado. Assim, o acesso à moradia precisa ocorrer à margem da lei, em favelas ou lotes clandestinos. Como o Estado não se empenha em tributar os imóveis ociosos (o que deprimiria o preço da terra) e pouco faz para subsidiar a compra de casas, ele tolera as invasões de áreas pouco atraentes para o capital. Contudo, se algum bairro começa a se valorizar, os vizinhos indesejáveis precisam ser expulsos, como os favelados de Ô culpa.
Por que os salários são tão baixos? Individualmente, cada empresário gostaria de comprimir ao máximo o custo de sua força de trabalho. Mas, quando olhamos o conjunto dos empresários, a situação muda de figura, porque os empregados não são apenas um custo de produção: eles são consumidores. A redução da massa salarial reduziria a demanda global. Porém isso não afetaria todos os capitalistas igualmente: quem não produz bens para os trabalhadores só teria a lucrar. Essa diferença pesa nas escolhas políticas de cada fração da elite, sobretudo quando se lembra que, desde a era colonial, algumas regiões se especializaram na produção de artigos exportáveis, enquanto outras se concentraram no mercado interno.
No início do século 20, São Paulo exportava café, e o Rio Grande do Sul abastecia o país com alimentos. Voltados para fora, os paulistas queriam um governo barato e passivo. Voltados para dentro, os gaúchos defendiam um Estado realizador: obras de infraestrutura, créditos para empresas, educação para o trabalho. Nasceram daí dois projetos distintos: nas greves de 1917, o governador paulista Altino Arantes ordenou uma repressão feroz, mas o gaúcho Borges de Medeiros recebeu os operários e elevou os salários.
Não são só duas orientações políticas: são dois modos de ver o mundo, que se cristalizaram na polarização que persiste até hoje. Desde Getúlio, o projeto desenvolvimentista se baseia na ampliação do mercado interno e na concessão de direitos aos assalariados. Já o projeto liberal se esforça em conter os preços, mas enfraquece a indústria nacional e arrocha os salários. O país pode crescer reduzindo a desigualdade ou aumentando a desigualdade, mas essas opções exigem estratégias políticas e ideológicas distintas.
São Paulo tem a sua. É por isso que as ruas tranquilas dos Jardins conduzem às ruas intranquilas do Bom Retiro. Em O leopardo, de Lampedusa, dom Fabrizio conta que os oficiais ingleses ficaram extasiados com a beleza de sua casa de frente para o mar, “mas confessaram que se estarreceram ao observar a miséria, a decrepitude, a imundície das estradas de acesso”. E então conclui: “Não lhes expliquei que uma coisa derivava da outra”.
Matéria publicada na edição impressa #35 jul.2020 em maio de 2020.
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