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A cobertura especial d’A Feira do Livro, que acontece de 14 a 22 de junho, é apresentada pelo Ministério da Cultura e pela Petrobras

MINISTÉRIO DA CULTURA E PETROBRAS APRESENTAM

Fotografia de São Paulo tirada por Fabrício Corsaletti (Divulgação)

A FEIRA DO LIVRO 2025, Poesia,

Recado da rua

Reunião de quase duzentas crônicas de Fabrício Corsaletti mostra sua paixão pela cidade e pela poesia

13jun2025

Fabrício Corsaletti ama a cidade. Ama os cavalos, as bebedeiras intermináveis, o balcão do Kintarô, Bob Dylan, a rua Augusta, a música popular brasileira. É possível seguir enumerando objetos de devoção, só que nada faria sentido sem a cidade. Não lhe interessa o que esteja escondido, enclausurado, acessível a poucos. Só importa o que a metrópole e a aldeia revelam, o que está nas suas ruas — em um milhão delas —, disponível ao olhar de todos, mas percebido apenas pelo do poeta. E Corsaletti ama a poesia.

Para ele, poesia e cidade talvez sejam a mesma coisa. Em Um milhão de ruas — que reúne versões revistas de Ela me dá capim e eu zurro (2014) e Perambule (2018), além do inédito Bar Mastroianni —, o autor confessa que acha escrever parecido com andar. Vale também para quem o lê: percorrer essas páginas é como caminhar pela cidade, por todas as cidades presentes na sua cartografia constitutiva.

O percurso de Corsaletti também é temporal. Com cerca de duzentos textos que cobrem quinze anos da sua trajetória de cronista, Um milhão de ruas,de um lado, documenta paisagens e personagens que não existem mais e, de outro, apresenta um olhar cada vez mais maduro e pronto para reparar naquilo que importa.

Observados em conjunto, os três livros que compõem Um milhão de ruas apresentam, cada um à sua maneira, uma forma de responder ao chamado da rua. Em Ela me dá capim e eu zurro, a resposta é mais conservadora: crônicas tradicionais, que apareceram primeiro na mídia impressa, com estrutura clássica, feitas sob medida para uma retranca de 2.500 toques. Cumpre o papel de seleta, mas o leitor que enfrenta três ou quatro textos é capaz de deduzir a fórmula replicada nos demais. 

Em Perambule, surgem algumas experiências. A crônica de jornal passa a dividir espaço com poemas, crônicas em verso e cenas anedóticas, o que dá mais frescor às investigações literárias. O mesmo copo utilizado diariamente pelo avô ou o fascínio de certa figura pelos pratos do dia dos botecos de São Paulo não precisam de mais que um terço de página para serem densamente esmiuçados por Corsaletti. Desses instantâneos, quase anotações do que o cronista viu e ouviu, é que emergem suas obsessões centrais: o miúdo, o trivial, o cotidiano — e, claro, o lirismo neles contido.

É no bar que o cronista se sente mais à vontade para investigar a cidade em movimento


O autor em seu auge é o que nos conduz por Bar Mastroianni. No livro inédito, Corsaletti segue dando vazão a seus temas de predileção, mas agora parece ainda mais confortável para lançar mão do gênero literário exato para cada história que deseja contar. Assim, a crônica tradicional, a poesia e a prosa breve voltam a aparecer e são intercaladas com inteligência editorial. 

No bar

Desde a crônica que abre o volume entendemos o bar como espaço de pensamento e invenção. Seja um boteco arrumadinho na Vila Madalena, uma espelunca na rua Augusta, uma sinuca em Santo Anastácio, cidade do interior paulista onde o autor nasceu, ou um izakaya na Liberdade, é no bar que o cronista se sente mais à vontade para investigar a cidade.

O álcool que catalisa as relações permite que uma discussão banal ganhe a profundidade de tratado filosófico. Mas não é só. O bar é o espaço mais democrático do mundo, onde ocorrem os encontros inesperados e as tardes caem como nunca haverão de cair. Assim, desvendar o maior verso da música brasileira é muito mais do que uma brincadeira de amigos, mas um convite a vasculhar a essência humana em terra brasilis

O bar, aqui, não é só ponto geográfico, mas posto avançado da poesia urbana, onde Corsaletti procura a disposição topográfica perfeita, anota frases e adquire saberes que serão o mote de boa parte de seus textos. 

Contudo, erra quem pensa que o ofício do cronista se encerra na observação e anotação. De filósofos de botequim estamos cheios, mas como Corsaletti há poucos autores. Além de perceber, no alarido das ruas, os fragmentos que valem ser guardados, o autor se dedica à linguagem com um rigor que resulta em um texto limpo, fluido e sem pose. Em Um milhão de ruas, não há espaço para qualquer afetação, pretensão ou excesso. 

Fotografia de Fabrício Corsaletti

Ciente de que o idioma não é tributário da gramática normativa, e sim o melhor amigo de quem cruza o mapa, o autor se livra de tudo que é ruidoso e zela pela frase exata, aquela que poderia sair da boca dos vagabundos e madames com quem divide a calçada ou a mesa.

Em uma das crônicas instantâneas, o narrador nos conta que, em sua família, “é só prestar atenção em alguma coisa que nos emocionamos além do razoável”. Tal confissão, além do perceptível poder de síntese, é uma das principais chaves de sentido de sua literatura.

Seja num conto mais extenso ou num quase aforismo, é onipresente a tensão entre o desejo de seguir perambulando e a necessidade de fincar o pé no chão para se atentar ao que verdadeiramente importa. Ou seja, a produção literária de Corsaletti, ainda que protagonizada pelo observador caminhante da cidade, é sempre perseguida por uma segunda figura, alguém que pensa demais, leu bastante. Ele evoca versos, canções, dicionários e quase edita em tempo real o que o primeiro registra. 

É esse embate entre um camponês sedentário e um marinheiro viajante que abre brechas para o autor se dedicar a uma literatura que dá a volta ao mundo com poucos passos e se sensibiliza com o singelo.

“As pessoas se incomodam com a ideia de se apaixonar por uma cidade”, diz um dístico do poema “Eve Babitz”, que faz referência à autora e artista visual norte-americana, conhecida por escrever sobre a cena de arte underground de Los Angeles nos anos 70. Corsaletti não está nem aí. Ama a cidade, todas as cidades, como ele mesmo admite em “Procurando sombras”, sobre um professor perambulando no interior e tentando espantar o tédio até a hora da aula. Já a crônica em versos “Rua” se inicia com “acho que vou me apaixonar por uma rua”, frase típica de quem já se vê perdido de amor.

A recorrência do tema ao longo dos quinze anos mais do que justifica a escolha editorial pela reunião dos três livros que traduzem a essência da faceta cronista de Fabrício Corsaletti e escancaram sua relação com a rua. Sorte do leitor, que terá em mãos um milhão de razões para se emocionar além do razoável.

A Feira do Livro 2025 · 14 — 22 jun. Praça Charles Miller, Pacaembu

A Feira do Livro é uma realização do Ministério da Cultura, por meio da Lei Rouanet – Incentivo a Projetos Culturais, Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos dedicada à difusão do livro e da leitura no Brasil, Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais, e em parceria com a Prefeitura de São Paulo.

Quem escreveu esse texto

Lucas Verzola