
A cobertura especial d’A Feira do Livro, que acontece de 14 a 22 de junho, é apresentada pelo Ministério da Cultura e pela Petrobras
MINISTÉRIO DA CULTURA E PETROBRAS APRESENTAM

A FEIRA DO LIVRO 2025, Literatura brasileira,
Gente à janela
Em suas notas do isolamento, Luís Henrique Pellanda registra com melancolia e estranheza o cotidiano durante a pandemia
28maio2025 | Edição #94No banco traseiro de um carro, João do Rio cruzava o Centro da então capital da República quando seu companheiro de viagem lhe perguntou: “Por que está toda a gente sempre à janela e às portas, dando conta do que se passa na rua?”. Estrangeiro, ele queria saber se aquelas pessoas esperavam um cortejo ou uma procissão. “Esperam e não esperam”, respondeu o escritor, deixando o gringo ainda mais confuso.
O relato, publicado no jornal A Notícia em junho de 1910, referenciava um costume carioca. Na cidade que sonhava ser a Paris dos trópicos, a rua se tornara o centro das atenções. Perambular pela recém-aberta avenida Central (hoje, Rio Branco) ou checar as modas na elegante rua do Ouvidor significava estar antenado aos novos tempos. A janela era um camarote para o espetáculo da modernização.
Cento e dez anos depois, todos nós viraríamos “janeleiros” — um termo do próprio João do Rio. Impedidos de circular em razão da pandemia da Covid-19, restava-nos o consolo da observação ao longe, o que acabou por criar um dilema para os cronistas talhados na arte da flânerie: como escrever sem a matéria quente da rua?

Um dos grandes cronistas de sua geração, Luís Henrique Pellanda tenta desvendar essas questões em A crônica não mata. O livro é uma reunião de estilhaços: 130 textos numerados, nos quais brinca com a forma — há listas, aforismos, pensatas — e expõe sua perplexidade diante de um mundo que virou de cabeça para baixo.
De sua janela, na rua Amintas de Barros, ele decide inventariar tudo que vê. A experiência se inspira em Georges Perec, que, em 1974, passou três dias documentando, nos mínimos detalhes, o cotidiano da praça Saint-Suplice, em Paris. Queria captar as “visibilidades invisíveis” da praça.
Pellanda opta por uma espécie de cadernos de registros. Nele estão apontamentos sobre as lojas fechadas, os edifícios, os raros passantes. Minúsculos recortes da vida em Curitiba, que o cronista cataloga, puxando fios.
A paisagem recortada pelo plano da janela por vezes leva a um livro, a um filme, à memória. E reverbera dentro de casa, onde a impressão é de que os sentidos, subitamente, se aguçaram.
À medida que minha insônia se adensa, as paredes do meu prédio vão se afinando. Ou sempre foram assim, paredes de papel, e o que mudou é que, agora, todo mundo está acordado.
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Em crônica do livro Asa de sereia (Arquipélago, 2013), Pellanda revelava o costume de andar pela cidade olhando para cima. “Investigador autônomo, procuro uma janela e, nessa janela, algum indício de vida”. Oito anos depois, é ele quem está à janela, buscando resquícios de vida nas vias quase desertas.
O medo suscita um pesadelo recorrente: do ônibus lotado, que nunca chega ao ponto, é impossível saltar. “Todos usam máscaras frouxas, de pano. Menos eu. Meu rosto está nu, e essa nudez é como uma sentença de morte”, descreve. A máscara se torna quase parte do corpo, embora aqui e ali se possa flagrar um descuidado ou negacionista. “O indivíduo com o nariz de fora, hoje, mais parece um exibicionista desvairado”, comenta.
O escritor está preso em casa; a crônica ‘fragmenta-se como um emoji de coração partido’
A onipresença do tema da pandemia garante um livro coeso, mas o leitor talvez se ressinta do cronista caudaloso de obras como Na barriga do lobo (2021) e Nós passaremos em branco (2011), ambas publicadas também pela Arquipélago e finalistas do Jabuti. Pellanda explica: o escritor está preso em casa, condenado a andar em círculos. “E a crônica que produz, assim como a cidade que busca retratar, aos poucos vai perdendo fluxo, ritmo e conjunto. […] Fragmenta-se como um emoji de coração partido.”
No excerto número nove, a filha caçula treina truques de mágica. Entrega um dado ao pai e pede que ele o lance à mesa. Os números indicarão o que o futuro lhe reserva. Mas as seis faces do cubo estão em branco. Que futuro?
Esse travo amargo, que atravessa as páginas, é quebrado apenas quando algum tipo de rotina se estabelece. Aguar as plantas, pendurar roupas no varal, brincar com as duas gatas pretas. Ou mergulhar na arte. Seja uma peça de Mozart, uma pintura de Van Gogh, um texto de Oscar Wilde, Julian Barnes ou Nelson Rodrigues.
Mas não basta. No Brasil de 2020 “tudo sangra — gente, bicho, planta, terra, tempo” — e a crônica parece impotente diante do terror.
Rubem Braga disse que seu ideal seria escrever uma crônica tão divertida que fizesse rir certa moça doente que vivia em seu bairro. Quanto a mim, leitor do gênero desde criança, gostaria de escrever uma crônica que matasse o dragão da maldade. A crônica, no entanto, não mata.
O fragmento faz lembrar o caso narrado por Elias Canetti em um dos ensaios de A consciência das palavras (Companhia das Letras, 2011). Canetti conta ter se deparado, em Berlim, com um escrito pichado sobre o muro: “Fosse eu realmente um poeta, teria podido impedir a guerra”. A frase, sem assinatura, datava de 23 de agosto de 1939. Poucos dias antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial.
Pellanda tem consciência de que, como a poesia, a crônica não é capaz de deter o horror. “A crônica não mata”, ele repete por sete vezes ao longo do livro, num misto de advertência e resignação. “Um escritor que enxergasse no escuro seria, no Brasil de agora, um autêntico farol. […] O cronista, no entanto, dispõe apenas de uma caixinha de fósforos umedecida. Dá para o gasto, mas é preciso economizar.”
Mapa íntimo
A volta à “normalidade” restitui o movimento. Os estádios de futebol reabrem, as crianças retornam à escola e um mar de ambulantes e pedintes irrompe nas ruas de Curitiba: “A bala é boa, adoça a vida, leva três, vai”. Então Pellanda nos conduz pela cidade de seu mapa íntimo. “É hora de voltar às ruas e contabilizar nossas baixas, de reencontrar quem ainda vale a pena reencontrar”, observa.
É quando o livro se abre ao sol, mas não de todo. A luz é crepuscular. Dizia João do Rio, na crônica de A Notícia, que a gente às janelas é impelida por um instinto que lhes sugere que, sim, virá o tal cortejo, ainda que não saibam qual: “Não saber, e ficar, e não ver, e continuar, é o que se chama esperança”, afirma, como se desse a chave para o jogo que Pellanda propõe.
A Feira do Livro 2025 · 14 — 22 jun. Praça Charles Miller, Pacaembu
A Feira do Livro é uma realização do Ministério da Cultura, por meio da Lei Rouanet – Incentivo a Projetos Culturais, Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos dedicada à difusão do livro e da leitura no Brasil, Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais, e em parceria com a Prefeitura de São Paulo.
Matéria publicada na edição impressa #94 em maio de 2025.
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