Virginia Woolf aqui e agora

Literatura,

Virginia Woolf aqui e agora

Obra da autora britânica influencia escritoras e movimenta mercado editorial com novas edições de seus ensaios, romances e peça teatral

01maio2025 • Atualizado em: 30abr2025 | Edição #93

Não há mais medo de Virginia Woolf, ao menos entre as mulheres contemporâneas. Se no enredo da peça criada por Edward Albee Woolf a autora britânica aparecia como aquilo que se teme encarar, seis décadas depois do lançamento de Quem Tem Medo de Virginia Woolf? ela é um farol para as novas gerações de escritoras e leitoras. E muito disso porque sua obra traz, justamente, a reflexão sobre os papéis de gênero e a realidade crua por trás das máscaras sociais que tanto podiam assustar no passado. 

“Virginia com certeza estava à frente de seu tempo tanto na ousadia de sua escrita, em forma e conteúdo, como em suas ideias pessoais”, avalia a atriz Cláudia Abreu, que fez sua estreia como autora teatral no monólogo Virginia. Encenada por ela, a peça já passou por capitais, incluindo São Paulo, Fortaleza e Recife, e agora segue em temporada no Rio de Janeiro e em Curitiba. “A condição feminina, com opressões, assédios e limitações sociais presentes em sua época, continua atual. Isso sem falar em seu desejo por mulheres, seu engajamento feminista, seu apoio ao movimento sufragista, no fato de ter aberto uma editora junto com o marido, enfim, uma mulher moderna para seu tempo”, diz a atriz. 

A atriz e escritora Cláudia Abreu em cenas do monólogo ‘Virginia’ (Flavia Canavarro/Divulgação)

A escritora paranaense Giovana Madalosso relembra um episódio que a conecta a Woolf. Aos treze anos, quando lia um livro, escutou de um parente: “Você precisa parar de ler tanto. Mulher que lê muito não arranja marido. Mulher tem que ler revista. Ler não, folhear”. “Foi o conselho mais grotesco que eu ouvi, e não foi o único”, diz Madalosso. “Assim como Virginia e tantas outras mulheres, acredito que ainda escrevo para calar essas vozes, externas e internas, que me atormentaram por tantos anos.”

Autora de Tudo pode ser roubado (2018)e Suíte Tóquio (2020), ambos publicados pela Todavia, ela enxerga em sua obra algumas influências da escritora britânica: “O desejo de combinar intelecto com sentimento, de ir contra raciocínios rebuscados, mas vazios. De tirar de mim, como matéria para escrita, o que palpita”. 

Espaço

Antes da matéria-prima da escrita, Virginia Woolf meditou sobre as condições essenciais para que ela aconteça. “Room of One’s Own” (muitas vezes traduzido como “Um teto todo seu”), publicado pela primeira vez em 1929, é um ensaio baseado em palestras que Woolf ministrou em duas escolas para mulheres na Universidade Cambridge. O texto, já lançado no Brasil por editoras como Bazar do Tempo e Antofágica, agora ganha nova tradução, assinada por Sofia Nestrovski para a Editora 34.

“A escrita dela é incrivelmente ágil e viva, mistura única de liberdade e precisão. Este é um ensaio sobre a condição das mulheres, mas que fala muito também do que é escrever, e do que é escrever um ensaio”, diz Nestrovski, para quem também é importante ressaltar o humor de Virginia Woolf. “Não é o que as pessoas normalmente associam à obra de Woolf. Mas é incrível o quanto ela é engraçada neste e em outros textos.”

Farol para as novas gerações, seus escritos trazem uma reflexão sobre os papéis de gênero

A edição com tradução de Nestrovski traz um título diferente, Um quarto só para mim. Para a tradutora, usar “um teto” deturpa o sentido do texto. “O problema de que o ensaio trata é, de fato, a falta de um quarto, não de uma casa. Um quarto só para mim tem mais força idiomática. Consigo imaginar mulheres lendo esse título e repetindo para si mesmas ‘eu preciso de um quarto só para mim’”, reflete. 

Inspiradas pelo texto de “Room of One’s Own”, algumas mulheres atuantes no mercado editorial formaram a Coletiva Virginia em 2017. Hoje, o grupo conta com quase trezentas participantes e promove debates, publicações e eventos voltados para a valorização da produção intelectual e artística feminina. 

Para as integrantes, a melhor tradução do quarto ou teto de que falava Woolf é uma rede de apoio que garanta tempo, espaço, tranquilidade e divisão das atividades cotidianas e domésticas necessárias para desenvolver qualquer atividade criativa. “Essa rede de apoio pode ser a família ou até funcionários contratados que possam executar parte dessas tarefas. E é claro que ainda facilita um bocado ter uma vida financeira estável e autônoma”, diz a Coletiva, em resposta comunitária. 

“Mas sabemos que as mulheres continuam a assumir a maior parte dos cuidados com filhos, casa, pais idosos etc., mesmo que hoje estejam plenamente inseridas no mercado de trabalho e muitas vezes sejam as principais provedoras. Isso tem consequências diretas na nossa carreira. Os homens seguem mais disponíveis, e a razão disso não raro é o fato de existir uma mulher na vida deles resolvendo as coisas práticas do cotidiano, de modo que sobra muito mais tempo para eles trabalharem, escreverem e criarem.”

Em Um quarto só para mim, Virginia comenta ser levada a acreditar que, por séculos, mulheres têm, sim, escrito, mas sempre anonimamente. “Durante a maior parte da história, Anônimo foi uma mulher”, escreveu ela a respeito da exclusão compulsória das mulheres dos espaços de produção e divulgação de conhecimento.

“Durante séculos, autoras publicaram anonimamente, ou sob pseudônimos masculinos, em um silenciamento sistemático. Isso ainda se aplica às escritoras contemporâneas, mas de outra maneira, mais sutil”, compara o Coletivo Virginia. “Mulheres ainda são menos premiadas, menos resenhadas e menos traduzidas. Em muitos países, incluindo o Brasil, as editoras vêm publicando mais autoras, não se pode negar, mas os livros de ‘prestígio’ (ensaio, crítica e ficção literária) ainda têm uma predominância de autoria masculina.”

Bíblia

Professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Juiz de Fora, Nícea Helena de Almeida Nogueira também reflete sobre Um quarto só para mim: “O maior legado desse texto é ser a obra fundadora da crítica feminista. Como diz a woolfiana americana Jane Marcus, é a ‘bíblia feminista literária’”. Ela faz parte do Grupo de Pesquisa KEW (Kyklos de Estudos Woolfianos), que se dedica a acompanhar o que se produz sobre Virginia Woolf, trabalhando junto com alunos de graduação, pós-graduandos e outros estudiosos do Brasil e estrangeiros.

Um dos argumentos construídos por Woolf em sua “bíblia” é personificado na figura de Judith Shakespeare, uma mulher tão talentosa, tão imaginativa e tão ávida pelo mundo quanto seu famoso irmão, William, mas que, ao contrário dele, nunca foi à escola, não aprendeu gramática nem lógica. De vez em quando, Judith até pegava um livro para ler, mas era imediatamente repreendida pelos pais, que a mandavam remendar meias ou cuidar do guisado. Detalhe importante: Judith Shakespeare nunca existiu. 

Ela é o exemplo “vivo” da opressão social causada pela ausência do tal quarto ou teto debaixo do qual se cria coisas. Nogueira lembra que a personagem fictícia impressionou a escritora brasileira Clarice Lispector, que, depois de ler o ensaio de Woolf, publicou a crônica “A irmã de Shakespeare” em 1952, no jornal carioca O Comício

“Vejo Judith Shakespeare como uma grande alegoria criada por Woolf, a partir de dados históricos sobre a condição das mulheres na Inglaterra elizabetana, em que não há registro de talento feminino na literatura. A noção de inferioridade mental, moral e física da mulher perpassa os séculos, e Woolf aponta o dedo sobre isso negando essa inferioridade, pois ela mesma se coloca como tendo um contexto social favorável à sua carreira de escritora. Ela se vê como um exemplo de que a mulher pode criar literatura e ser reconhecida por isso”, diz Nogueira. 

Impressões

Virginia Woolf começou sua carreira literária profissional aos 23 anos, em 1905, assinando críticas aos livros que lia de maneira voraz, influenciada pela convivência com os amigos de seu pai, o também escritor Leslie Stephen. O primeiro de seus livros publicados no Brasil foi Mrs Dalloway, lançado em 1946, com tradução de Mario Quintana. Em 2012, a obra de Woolf entrou em domínio público, e o número de publicações de seus textos aumentou consideravelmente.

Para a especialista em Virginia Woolf e doutora em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Myllena Ribeiro Lacerda, esse aumento de traduções à época não significou que Woolf não fosse publicada antes. “Pelo contrário. Ao farol foi traduzido pela primeira vez em 1968, há mais uma tradução nos anos 70, e outras seis traduções desde 2013. Há muito interesse em publicar Woolf no Brasil, isso é inegável”, afirma Lacerda, autora da tese O destino de um livro: Virginia Woolf no Brasil e análise crítica das traduções de ‘To the Lighthouse’, em que traça uma análise do percurso de publicação da autora no país desde os anos 40.

Um século depois, é possível dizer que o panorama é mais amigável à atuação feminina

Virginia se casou com Leonard Woolf em 1912. Cinco anos depois, o casal fundou a Hogarth Press, editora que publicou mais de quinhentos livros ao longo de trinta anos de funcionamento. Além de Virginia, que usou a editora para lançar suas próprias obras, a Hogarth, que tinha o compromisso de promover vozes femininas na literatura, também publicou nomes como Katherine Mansfield e Vita Sackville-West.

Um século depois, é possível dizer que o panorama do mercado editorial é mais amigável à atuação feminina. De acordo com a primeira edição da Pesquisa de Diversidade, Equidade e Inclusão, feita pelo Sindicato Nacional dos Editores de Livros em parceria com a Wiabiliza e publicada em 2024, entre as 45 editoras ouvidas, 87% têm mulheres em cargos como líderes de times, gerentes e diretoras.

No texto “Mulheres na Edição”, publicado em março passado no blog da Biblioteca Virtual do Pensamento Social, as professoras Maria do Rosário A. Pereira, Paula Renata Moreira e Ana Elisa Ribeiro apontam que muitas demandas foram alcançadas com a chegada ao século 21, e que desde então mulheres ocupam posições nos bastidores, como a revisão e a preparação de textos, mas também em lugares de proeminência, como o comando de editoras.

“Hoje, já assinamos os próprios livros, mas isso não é suficiente”, pondera a escritora Nara Vidal, que é autora de um texto sobre os cem anos de Mrs Dalloway nesta edição da revista dos livros. “É cada vez mais crucial que, como comentou a própria Virginia, nós, mulheres na literatura, sejamos agentes responsáveis por decisões como o que publicar, o que criticar, o que ler, o que destacar na imprensa e na vitrine das livrarias, o que traduzir e o que premiar. Não basta só publicar e ler mais mulheres. Para que o movimento das mulheres na literatura ganhe equivalência ao dos homens, é preciso marcar lugar, sem hesitação, em toda a cadeia. Isso também é ativismo.” 

Intimidade

As convenções do romance eduardiano — com estrutura narrativa tradicional, personagens idealizados ou arquetípicos, e estilo descritivo e refinado — não funcionavam para Woolf, que mudou o foco da ficção dos sujeitos de sempre para as sombras dos momentos da vida, como a morte e o sofrimento mental. Para tanto, ela criou um novo estilo, com frases prolongadas e uma narrativa fragmentada, pontuada por silêncios incômodos. 

Muito do que Woolf levava às páginas vinha de sua própria história de vida. Para a Coletiva Virginia, essa é uma escolha complexa que as autoras vivenciam. “Existe um dilema entre visibilidade e apagamento: mulheres precisam se expor e mostrar suas questões para ganhar espaço, mas isso reforça o estereótipo da limitação da autoria feminina. Ao mesmo tempo que são incentivadas ou até pressionadas a transformar sua dor pessoal em matéria literária, são acusadas de fazer literatura confessional”, afirma o grupo. 

Em sua obra de estreia, lançada em março pela Fósforo, a escritora gaúcha Ingrid Fagundez estabelece uma conexão profunda com a obra de Woolf. Diário do fim do amor entrelaça trechos dos diários pessoais de Fagundez com os de outras escritoras, entre elas a britânica.

‘Ela era uma mulher muito mais complexa do que o clichê. Como poderia ser reduzida a uma coisa só?’

“Ela era uma mulher que tinha medos e inseguranças e dúvidas quanto à própria escrita, e isso nos aproxima muito dela como escritoras e mulheres, porque nos vemos às vezes como incapazes e inconsistentes. É interessante ver a Virginia não só no panteão dos escritores, mas também como alguém que não sabe se é suficiente, com uma ‘síndrome da impostora’”, diz Fagundez.

A editora Nós é outra casa que se dedica às obras de Woolf. Em junho, lançará uma edição comemorativa de cem anos de Mrs Dalloway, traduzida por Ana Carolina Mesquita, pesquisadora que também assina um artigo nesta edição e que em seu doutorado estudou os diários de Woolf, que a Nós vem publicando — os três primeiros volumes estão disponíveis, o quarto sairá em dezembro e, em 2026, o último caderno entra no catálogo. A editora também lançou Virginia: um inventário íntimo (2022), a íntegra do texto original que Cláudia Abreu escreveu e apresenta nos teatros. 

Simone Paulino, escritora e fundadora da Nós, atribui às leitoras mulheres, mediadoras de leitura, tradutoras, críticas literárias, editoras e livreiras o interesse renovado em Woolf. “Fomos nós que de certa forma recuperamos a pessoa, a mulher, a escritora, a editora Virginia Woolf, que, durante muito tempo, era apreciada, sim, mas também muito estigmatizada como a suicida, a deprimida, a desequilibrada, quando na verdade quem a conhece intimamente sabe que ela era muito mais que isso”, afirma.

Cláudia Abreu, para os críticos, conquistou essa intimidade com Woolf. Na peça, ela aborda o estupro que marcou a alma da escritora para sempre, e abre a encenação reproduzindo seus últimos minutos de consciência no fundo do rio, quase sem oxigênio. Mas Abreu também compreendeu que não podia restringir sua biografada ao lugar-comum, muito menos àquele da mulher que terminou a vida nas águas geladas, com os bolsos cheios de pedras.

“Essa mulher enfrentou guerras, atravessou o calvário da gripe espanhola, perdeu mãe, pai, irmã, irmão e seguiu lutando, trabalhando, criando, escrevendo, inventando um mundo extraordinário onde nós, agora, cem anos depois, amamos viver”, celebra Paulino. “Ela era uma mulher muito mais interessante e complexa do que o clichê”, acrescenta Abreu. “Tinha senso de humor, se formou intelectualmente de forma autodidata, tinha longas e graves crises nervosas e ainda assim conseguiu construir uma obra brilhante. Como uma mulher assim poderia ser reduzida a uma coisa só?”.

Quem escreveu esse texto

Marcella Franco

É jornalista e escritora.

Matéria publicada na edição impressa #93 em maio de 2025. Com o título “Virginia Woolf aqui e agora”

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