
Bagagem Literária, Ler melhor,
Não deixe o braille morrer
No ano em que o sistema de leitura por tato completa dois séculos de existência, o Brasil ganha seu primeiro clube do livro para pessoas cegas
27mar2025 • Atualizado em: 28mar2025 | Edição #92“Sou uma mulher parda, tenho cabelos castanhos escuros com mechas loiras, utilizo uma blusa vermelha, um brinco de argola e estou com óculos escuros pretos”, descreveu-se, em inequívoco sotaque carioca, a professora de braille Geni de Abreu, que é também coordenadora de revisão de livros do Instituto Benjamin Constant (IBC), a instituição governamental de ensino para deficientes visuais com sede no bairro da Urca, no Rio de Janeiro.
Assim Geni deu início, em 18 de fevereiro deste ano, à primeira roda de conversa do Clube do Livro em Braille, iniciativa inédita no Brasil empreendida pelo IBC. O livro escolhido para o encontro era Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo. A roda teve transmissão ao vivo nos canais virtuais do IBC e a discussão do romance contou com a participação da própria escritora mineira, cuja filha, Ainá Evaristo, tem baixa visão e é aluna do instituto.
A criação do Clube do Livro em Braille, anunciada na primeira edição da Feira Literária Inclusiva, em outubro de 2024, no Rio, foi um acontecimento para pessoas cegas amantes da literatura no Brasil. Em cerca de três meses, mais de quatrocentas aderiram ao clube. A inscrição é gratuita, e cada membro tem direito a receber, via Correios, dois títulos por ciclo: um a ser debatido na roda trimestral, selecionado em votação no grupo de mensagens do clube, e outro pode ser escolhido do catálogo do IBC — que inclui clássicos como Homero e Shakespeare, fenômenos pop como John Green e escritores contemporâneos, de Ruth Rocha a Daniel Mundukuru.
O funcionário público Carlito Homem de Sá, de 38 anos, que perdeu a visão aos nove em decorrência de uma condição genética, chegou a duvidar que o clube fosse real. Morador de Belo Horizonte, onde graduou-se em letras pela Universidade Federal de Minas Gerais, ele foi alfabetizado em braille no Instituto São Rafael, a terceira instituição para cegos mais antiga no Brasil, fundada em 1926 (a pioneira, inaugurada por d. Pedro 2º, é justamente o IBC). A rotina de Carlito inclui visitas periódicas ao setor de braille da Biblioteca Estadual de Minas Gerais, sempre à cata de novos títulos nas estantes. A maioria absoluta dos livros, porém, inexiste em braille, e assim Carlito recorre aos audiolivros — embora, nesse formato, a grafia das palavras, a pontuação e, no caso da poesia, a distribuição dos versos não se façam evidentes.
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“Será que é golpe?”, questionou-se o bacharel em letras. “Para mim foi uma coisa mágica. Fiquei pensando: será possível uma coisa tão grandiosa, uma proposta tão ambiciosa de disponibilizar gratuitamente obras em braille? Macaco velho não põe a mão em cumbuca… mas eu arrisquei, porque dessa fruta eu queria demais”, contou à Quatro Cinco Um.
Direito à literatura
Depois de se descrever (“sou uma mulher negra, estou com um lenço entre amarelo e alaranjado amarrado na cabeça, uso óculos e um brinco branco de um lado só”), Conceição Evaristo iniciou a discussão de Ponciá Vicêncio. Antes de responder às perguntas dos leitores, a autora, que já foi traduzida para o inglês, francês, espanhol, eslovaco e árabe, agradeceu ao IBC por verter seu romance para o braille. “Ter uma obra em braille se insere num processo que tenho cobrado muito: o da literatura como um direito democrático, assim como a alimentação, a educação, a moradia, a saúde”, disse.
Esse direito à literatura, defendido pelo crítico Antonio Candido num ensaio seminal escrito em 1988 (não por coincidência, o ano da promulgação da nossa Constituição Federal), é parcamente atendido no caso de cegos. Com sede em Toronto, no Canadá, a União Mundial dos Cegos estima que só 5% das obras literárias possuam versão em braille. Mas não por pouca demanda: um estudo de 2023 realizado pela Fundação Dorina Nowill para Cegos e o Datafolha apontou que 63% dos deficientes visuais se interessam por literatura. Segundo o IBGE, mais de 500 mil cegos e 6 milhões de pessoas com baixa visão vivem no Brasil.
‘Ter uma obra em braille se insere no processo da literatura como um direito democrático’
Diversos fatores cooperam para a escassez de títulos. Em média, um livro em braille é quatro vezes mais volumoso que o impresso com tinta; como o braille baseia-se em pontos em alto-relevo, o papel é mais custoso e não pode amassar, o que requer cuidado para guardá-lo. Além disso, poucas são as editoras dispostas a arcar com os custos da impressão em braille e também da mão de obra especializada, já que a revisão em braille é feita por profissionais cegos, de forma que a maior parte da produção de livros e revistas fica a cargo de instituições como o IBC e a Dorina, sediada em São Paulo. Por tudo isso, apenas uma parcela ínfima do cânone literário foi traduzida, e encontrar autores contemporâneos e lançamentos é coisa rara. Até é possível encomendá-los em gráficas especializadas como a Olhares, de Belo Horizonte, mas a um preço salgado: um título que, à tinta, sai por cinquenta reais, pode custar até quatrocentos reais em braille.
Tocar as palavras
A desconfiança inicial de Carlito tinha sua razão de ser. E isso levando em conta que ele está bem situado para conseguir livros em braille: BH possui o setor de braille da Biblioteca Estadual e a coleção do Instituto São Rafael. A situação é parecida em capitais como São Paulo e Rio, que contam com instituições especializadas.
Para quem vive no interior, a literatura por tato é um artigo mais raro. Maria Eduarda de Souza, de dezenove anos, é estudante de direito e mora em Curvelo, Minas Gerais. Ela perdeu a visão na infância e foi alfabetizada em braille pela mãe aos sete anos. Desde então, tem na leitura um de seus principais prazeres. Gosta sobretudo de livros de mistério e dos poemas de Mario Quintana, que a inspiram a escrever seus próprios versos.
Em sua cidade, os livros disponíveis em braille são infantis, e os audiolivros tornaram-se a principal forma de acessar a literatura. “Sinto bastante falta do livro físico, até para eu não perder o braille”, diz. A preocupação dela faz coro ao que educadores vêm dizendo nos últimos anos. Hylea Vale, supervisora do Departamento de Imprensa em Braille do IBC, alerta para o que os pedagogos denominam “desbraillização”.
“As tecnologias vêm e são ótimas. Mas se quem enxerga tem de ter cuidado com as tecnologias, o cego ainda mais”, observa. “Quem enxerga, mesmo lendo no computador, segue acionando as sinapses do cérebro responsáveis pela leitura; já o cego deixa de ser um leitor e se torna um ouvinte, o que representa um retorno à época pré-braille, quando o cego dependia de pessoas que lessem para ele. Pesquisas na neurociência apontam que isso gera inclusive um prejuízo cognitivo”, explicou.
Bibliotecário do Instituto São Rafael, Juares Gomes, de setenta anos, é um amante do braille. Até escreveu uma biografia do inventor da leitura por tato, o francês Louis Braille, que define como “um herói” — o livro deve sair ainda em 2025, quando o sistema de leitura comemora duzentos anos.
Bem-humorado, uma das poucas coisas que o tiram do sério é a “ladainha de que, com as facilidades do computador e do celular, o braille está obsoleto”. Juares reforça que a alfabetização é sinônimo de liberdade. “E se a bateria do telefone acabar, e se a internet cair? O que dá autonomia de verdade para o cego é o braille”, defende. Um exemplo do que ele fala é o carioca Marcus de Souza, de 63 anos. Marcus perdeu a visão aos quarenta, por um descolamento hemorrágico da retina. Afastou-se do cargo público que ocupava e viveu um período de revolta. Foi encaminhado ao setor de reabilitação do IBC, onde deu início à “saga para aprender a viver como cego”. Nos corredores do instituto, entre encontrões com portas, cadeiras e colegas, “rememorava sempre o que nunca mais poderia fazer”, diz. Até que uma professora lhe perguntou: “você já pensou no que pode fazer?”. Foi o “empurrão” que precisava. Um ano depois, estava fluente em braille e lembra-se precisamente do primeiro livro que leu com as pontas dos dedos: O alienista, de Machado de Assis. “Foi um negócio fantástico. Me senti livre, foi uma alegria absurda.”
Marcus retornou ao trabalho, se aposentou e se tornou professor voluntário no IBC. “Abracei o braille de tal maneira que hoje a minha maior alegria é ensiná-lo aos outros”, conta.
Garoto francês
Cada um dos 256 alunos do IBC tem a história na ponta da língua: até o início do século 19, os institutos para cegos na Europa utilizavam diferentes sistemas de leitura, nenhum muito eficaz — como as próprias letras do alfabeto romano em relevo, que levavam muito tempo para serem lidas e mais ainda para serem impressas.
Então, em 1809, nasceu no norte da França Louis Braille. Ainda na infância, por causa de um acidente na oficina do pai, o garoto perdeu a visão. Passou os anos seguintes pesquisando códigos de comunicação e chegou à “escrita noturna”, criada pelo militar Barbier de La Serre. Complexa, para que membros de outros exércitos não pudessem compreendê-la, não atendia aos objetivos de Louis, mas o inspirou a criar seu próprio sistema. Em 1829, ele publicou o livro com seu método, que em poucas décadas difundiu-se pelo mundo. Quem trouxe a novidade ao Brasil foi o carioca José Alvares de Azevedo. Nascido cego, ele mudou-se para a França aos dez anos, em 1834, a fim de aprender o braille no Instituto dos Meninos Cegos de Paris. De volta ao Rio, ensinou o método a outras pessoas e escreveu artigos em jornais defendendo a necessidade de um instituto semelhante no Brasil. A ideia cativou o francófono imperador d. Pedro 2º, e em 1854 nasceu o Imperial Instituto dos Meninos Cegos, que depois virou Instituto Benjamin Constant. Foi na gráfica do instituto que, em 1857, os primeiros livros em braille foram impressos no Brasil. Eram livros didáticos de música, religião, geografia e gramática.
Atualmente, o IBC segue produzindo material didático, e das suas prensas saem os mais de 60 mil exemplares anuais que atendem a maioria dos alunos deficientes visuais no Brasil e também brasileiros no exterior. Somente em 1946 uma nova gráfica de livros em braille surgiu no país, na Fundação Dorina. Os atendimentos na instituição também são gratuitos, assim como a distribuição de livros para parceiros. Com a maior gráfica do pais, a fundação imprime cerca de 14 mil páginas em braille por dia e, por meio da Rede de Leitura Inclusiva, busca identificar os títulos mais procurados pelo público que lê com a ponta dos dedos — um dos mais recentes transcritos para o braille foi Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak. Livros e audiolivros produzidos pela fundação estão no site dorinateca.org.br.
‘O braille abrange uma experiência estética única. É colocar a mão na palavra, na frase, na pontuação’
A Dorina faz também parcerias comerciais com editoras que desejam oferecer versões em braille. “Já produzimos para o mercado editorial quase todo”, contou Carla De Maria, gerente de soluções em acessibilidade da fundação. Entre os parceiros, ela cita as editoras Companhia das Letras — que verteu, por exemplo, O avesso da pele, de Jeferson Tenório — e Mostarda, que conta em seu catálogo com 42 títulos em braille, vendidos sob demanda.
Ao final do encontro inaugural do Clube do Livro em Braille, a mediadora Geni de Abreu ressaltou que a leitura em braille abrange uma experiência estética única. “Ter um livro em braille na mão é sentir o cheiro do papel, poder folhear as páginas, imaginar como aquilo foi escrito. É colocar a mão na palavra, na frase, na pontuação, e saber exatamente, por exemplo, como se escreve o nome Ponciá Vicêncio — só ouvindo é meio complicado”, disse, provocando risos na escritora Conceição Evaristo.
Matéria publicada na edição impressa #92 em abril de 2025.
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