Ilustrações de Isadora Bertholdo

Bagagem Literária, Ler melhor,

A falta que o foco faz

Escritores com a famigerada vista cansada contam como enfrentam a dificuldade para ler de perto, um desafio afetado pelas decisões de editores e designers gráficos

13dez2024 • Atualizado em: 19dez2024

Vou hidratar meu cabelo. Pego o creme e procuro as instruções. Ué, cadê as letras que estavam aqui até ontem? Por que elas começaram a dançar? Aí você coça o olho, tentando se iludir achando que é um cisco. Mas a verdade é que a leitura de um simples rótulo ficou impossível a partir daquela terça-feira. Aí vem o estado de negação, porque você não quer assumir que chegou a famigerada vista cansada.

Em maio passado, a atriz Carolina Loback usou seu perfil no Instagram para fazer este desabafo. Recebeu quase 100 mil curtidas de seus mais de 1 milhão de seguidores e 4 mil comentários, provavelmente de gente com mais de 35 anos, que se divertiu (ou riu de nervoso) ao se identificar com a descrição. Se não foi seu caso, caro leitor ou leitora, prepare-se. Como diria Xande de Pilares, a sua hora vai chegar.

Para o quadrinista André Dahmer, já chegou. Ele conta que, por décadas, seu maior pesadelo era machucar a mão ou o braço direito, fundamentais para o trabalho minucioso de desenhar e escrever. Nos últimos treze dos seus cinquenta anos, enfrentando a vista cansada, perder os óculos se tornou uma preocupação no mesmo patamar. “Cheguei num ponto em que, por mais que estique o braço para ler, não enxergo nada sem óculos. Aprendi na marra que preciso ter pelo menos dois pares. Porque ficar sem [óculos] é a maior lição de humildade que pode acontecer, tenho que pedir ajuda até para ler cardápio”, exemplifica o autor, que é adepto dos multifocais — ou seja, óculos com lentes que permitem enxergar a distâncias curtas, intermediárias ou mais longas.

Para quem tem na leitura e na escrita o principal ofício, o impacto da vista cansada na rotina é gritante

Criador de tirinhas publicadas na Folha de S.Paulo e n’O Globo, Dahmer repara que seu público vai pelo mesmo caminho. Quando começou a postar nas redes sociais séries como Malvados e Quadrinhos dos Anos 10, teve gente reclamando que não conseguia enxergar bem o trabalho. Na tela do celular, cada quadro da tira acabava restrito a 2 cm, e as letras das palavras eram reduzidas a milímetros. A saída foi dividir a tira e passar a publicar cada quadro por vez, num carrossel de imagens.

Dahmer e seus fãs com vista cansada fazem parte de uma turma cada vez mais numerosa, se levarmos em conta o envelhecimento progressivo da população. A presbiopia, nome técnico do distúrbio, costuma ser democrática e aparecer por volta dos quarenta anos, podendo demorar um pouco mais ou menos para chegar — pessoas com miopia mais grave, por exemplo, tendem a ter adiada a dificuldade para ler de perto.

Mas o que acontece, afinal? “Temos no nosso olho a córnea, que é a lente principal, e o cristalino, uma lente flexível. Com o avançar da idade, a flexibilidade do cristalino começa a diminuir, o que compromete o foco em objetos próximos. Aí pessoas que sempre se gabaram de ter boa visão de repente precisam de óculos”, resume Leonardo Tibúrcio, oftalmologista de Belo Horizonte que é especializado em cirurgia a laser para corrigir esse tipo de problema.

Tibúrcio diz ainda que muita gente acaba optando pela cirurgia porque não se adapta aos óculos multifocais. Funcionária da ótica Vistanova, localizada numa galeria do bairro carioca do Jardim Botânico, Claudia Pereira compara a adaptação ao processo de aprender a dirigir. “Você vai aos poucos entendendo as marchas, as distâncias. No caso dos óculos, é o movimento da cabeça. Por isso, brinco que trabalhar em ótica é ser um pouco terapeuta. É importante saber a rotina da pessoa, então vale o cliente ir com tempo para conversar”, diz ela.

Na sua edição mais recente, até a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) parece ter se atentado a essa dificuldade que aflige, talvez mais dolorosamente, escritores e leitores — e presenteou seus autores convidados com um modelo de óculos de leitura que diminui o efeito da luz de telas nos olhos, numa parceria com uma marca francesa. Apesar da ação não ter levado isso em conta, já que os óculos presenteados seguiam um mesmo padrão, a vista cansada tem graus variáveis, podendo se estabilizar entre os cinquenta e os sessenta anos.

Adaptações

Para quem tem na leitura e na escrita o principal ofício, o impacto na rotina é gritante. O historiador e escritor Felipe Charbel conta que, desde que a vista cansada se tornou uma realidade, não consegue mais ler deitado na cama, ou numa poltrona inclinada. E mesmo sentado, já não é possível se dedicar à leitura de um livro por muitas horas seguidas, como fazia antes.

Isso mesmo depois de se tornar adepto dos multifocais. “Óculos fazem parte da minha vista desde a infância”, diz o autor aos 47 anos, “então não tive que aprender a usar, como acontece com tanta gente que chega à vista cansada. Ainda assim, foi um baque. Primeiro no bolso, porque as lentes multifocais são caríssimas”, observa, resistindo à irresistível tentação de dizer que custam os olhos da cara.

Além do preço, Charbel também aponta a questão do período de adaptação: “Para quem vai partir para o multifocal, ter paciência é a maior recomendação. No começo, me deu dor de cabeça e até subir escadas demandava mais atenção. Dirigir também, porque você perde um pouco a noção de profundidade”.

Por sorte, os efeitos para escrever com caneta e papel foram mínimos para ele, que sempre manteve esse hábito — seu último livro, o elogiado Saia da frente do meu sol (Autêntica Contemporânea), foi redigido assim antes de ser transcrito num laptop.

Nesse ponto, Charbel é exceção. Para quem fica por horas na frente de um computador, como Thalita Rebouças, uma boa saída tem sido os óculos de lentes ocupacionais, que ajudam na visão de perto (o livro) e na intermediária (o monitor). A escritora constatou a vista cansada faz pouco tempo, às vésperas dos cinquenta anos, que completou em novembro. Quando necessário, usa também os multifocais. Acostumada a atrair filas enormes de fãs em eventos literários, ela esteve na última Bienal de São Paulo, em setembro, usando-os pela primeira vez. Foi um alívio. “Já estava ficando embaçado para autografar. Agora consigo escrever e olhar para os meus leitores com os mesmos óculos”, conta a autora, que se tornou best-seller escrevendo para crianças e adolescentes e em 2024 lançou Felicidade inegociável e outras rimas (HarperCollins Brasil), coletânea de textos para mulheres da sua faixa etária.

Letras grandes

Para quem sofre para enxergar letras pequenas, uma alternativa dada por editoras europeias e norte-americanas são os exemplares de letras grandes (conhecidos no mundo anglófono como large print books), com fontes a partir do tamanho 18 e, em geral, preço mais salgado. Raridades no Brasil, onde a opção praticamente se restringe a algumas edições de Bíblias, os livros de letras grandes são mais comuns nos Estados Unidos — uma busca pelo termo large print no site da rede de livrarias Barnes & Noble, a maior do país, traz milhares de resultados.

Na era dos gadgets de leitura, a tecnologia também pode ser uma aliada de quem sofre desse mal. É possível aumentar o corpo da fonte no Kindle, tablets e em aplicativos como o WhatsApp, ou fotografar rótulos com o celular para ampliar as instruções de uso comprimidas entre tantas outras informações.

“No celular é fácil mudar a resolução, mas na sua coleção de clássicos, não. Bem-vindo ao mundo multifocal”, brinca Fabio Lopez, professor de tipografia no curso de design da PUC-Rio. De fato, para a leitura de livros, jornais e outros impressos, não há muita saída. E pode ser complicado se acostumar com mudanças nas leituras de rotina. Recentemente, a Folha de S.Paulo reformulou o projeto gráfico da sua edição impressa, diminuindo a página — que mudou para o formato berliner, tamanho intermediário entre o antigo standard e o tabloide — e também o corpo do texto. Os designers responsáveis pela mudança afirmaram que “a colunagem levemente mais larga e uma fonte um pouco menor facilitam a leitura em textos longos”. O número de páginas aumentou para acomodar o conteúdo, que de fato está mais arejado. Mas qualquer diminuição da fonte pode ter impacto para leitores mais velhos — como costumam ser os de jornais impressos. “A fonte menor prejudicou os veteranos e também os não tão veteranos”, comentou um assinante na edição on-line da reportagem que explicava as alterações.

Fator geracional

Se antes nunca foram uma questão, fontes pequenas podem começar, com o passar dos anos, a serem vistas (fora de foco) como inimigas. “Compro livros por conta própria desde os doze anos. Vou fazer sessenta. Minha visão está se deteriorando desde os 44”, conta a jornalista Rosane Serro. “Comecei a constatar que nem os óculos estavam dando conta. Comprei um Kindle para poder ampliar a tipologia. A baixa luminosidade [do modelo] me irrita. Voltei para os livros. Continuo sofrendo. As editoras não entenderam que o envelhecimento dos leitores é um fato. Seguem fazendo produtos para quem tem olhos jovens… mas só lê na tela.”

O fator geracional é de fato uma questão, afirma Gabriela Castro, do coletivo de designers Bloco Gráfico: “Os designers jovens podem ser influenciados pelos próprios hábitos, que tendem a ser digitais. Por isso, os diferentes públicos precisam ser um ponto central no design de livros”. Ela observa ainda que há designers que querem imprimir sua marca nos livros e se preocupam mais em tornar o objeto interessante graficamente, esquecendo da função principal, que é facilitar a leitura.

Essa sanha por “imprimir uma marca” já levou a certos modismos. “Nos anos 90, sobretudo nos livros de arte, o ‘bacana’ era letra pequena e entrelinha super grande. Depois houve ondas de letra grande”, exemplifica Elaine Ramos, designer que por onze anos foi diretora de arte da Cosac Naify e hoje é sócia da editora Ubu. No curso “O livro como invenção”, que ministra sobre projetos gráficos, ela defende que o leitor tem que ser capturado pelo assunto do livro, e o assunto não costuma ser o design. “O design não é protagonista, mas ao mesmo tempo ele não deve ser enfadonho, genérico. O desafio é encontrar esse ponto de equilíbrio”, observa.

Em livros extensos como a nova edição de O capital, de Karl Marx, que a Ubu lança em abril, o desafio é maior: definir uma mancha — termo usado para o espaço ocupado pelo texto na página — que proporcione conforto para vistas cansadas. “A quantidade de páginas impacta a questão econômica, mas não só. É preciso levar em conta também o peso do livro e o seu manuseio”, enumera Elaine. “O trabalho do design é botar essas forças, muitas vezes antagônicas, na balança.”

Não é simples. Gosto, eficácia, custos e até a questão ambiental podem pesar. O professor Fabio Lopez faz uma conta rápida para exemplificar: “Se considerar o aumento da fonte para atender um público com algum tipo de dificuldade de leitura, mudando, por exemplo, um texto em corpo 9 para corpo 12, você pode recalcular o volume de páginas na mesma proporção. Ou seja, mais 30%”. Fazendo um cálculo com as projeções do professor, as 136 páginas de Saia da frente do meu sol, de Charbel, ganhariam a companhia de mais quarenta.

“Daí se entende por que a indústria tem dificuldade em ajustar seus produtos para esse desafio. Ela segue padrões de produção pautados por viabilidade comercial, e às vezes falta compreensão técnica dos desafios relacionados a esse público em particular”, ele continua. “Além do tamanho da fonte, ajustes de espaçamento e o tipo de letra podem ter impacto importante na leitura para disléxicos e gente com vista cansada.”

A indústria tem dificuldade em se ajustar, pois segue padrões pautados por viabilidade comercial

Editor da Mundaréu, Michel Landa fez as contas e resolveu encarar o aumento de custo para lançar no Brasil A melhor época da nossa vida, do italiano Antonio Scurati, com projeto gráfico bem mais generoso para a leitura do que a média. A edição brasileira, um dos lançamentos recentes do selo Manjuba, se espalha em 320 páginas (20% a mais do que a original) usando fonte em corpo 12 e entrelinha de 17 pontos, valores maiores do que os tradicionalmente usados no mercado.

A decisão veio a partir de uma experiência pessoal: “Meu pai, que faleceu recentemente, era um grande leitor, e nos últimos anos vinha reclamando da dificuldade de leitura. Ele adorava folhear obras novas em livrarias e no fim da vida, dependendo do tamanho da fonte, deixava de comprar. Isso me impactou. Trabalho fazendo livros. Gráfica é um item relevante na composição do custo, inclusive do preço que chega ao público. Mas achamos que a contrapartida de uma leitura mais prazerosa valia a pena”. A diagramação do livro de Scurati é assinada por Gabriela Castro, do Bloco Gráfico. Ela, que usa óculos para leitura, conta que propôs para os títulos do selo diferentes possibilidades de miolos — a parte do livro que recebe o texto principal —, dependendo da quantidade de páginas. “Entendemos que os editores se preocupam com o custo final do livro, ainda mais nesse momento em que o papel quase triplicou de valor. Mas nunca vamos propor um projeto de miolo em que a leitura seja prejudicada em função de economia”, diz a designer. “Nossa premissa é que a legibilidade seja sempre a protagonista das decisões gráficas.”

Essa também foi a premissa do designer Felipe Taborda ao redesenhar a centenária Revista Brasileira, da Academia Brasileira de Letras, com fonte e entrelinha maiores que a média, além de respiros entre os textos e imagens. “Não fiz isso pensando só nos acadêmicos, e sim para proporcionar uma experiência boa para todo mundo. Para ser agradável, a leitura não pode sacrificar os olhos.”

Num país com cada vez menos leitores, todo fator que afasta a população dos livros conta

Celebrando quarenta anos de carreira, Taborda inaugurou em setembro exposições no Vietnã e na Malásia, reunindo parte de sua produção de cartazes e capas de livros e de discos — ele tem uma longa parceria com a dupla Kleiton & Kledir e com o cantor e compositor Vitor Ramil. Tem no currículo também a participação na reforma gráfica do jornal O Globo nos anos 90. Seja qual for o objeto, ele parte do princípio de que design gráfico é comunicação. “Comparo com o design industrial: cadeira boa é aquela em que você se senta e nem percebe.”

Num país com cada vez menos leitores, todos os fatores que afastam a população dos livros contam. No Panorama do Consumo de Livros, produzido em 2023 pela Nielsen Data para a Câmara Brasileiro do Livro (CBL), 19% do público consultado que disse não comprar obras novas argumentou ter “dificuldade de leitura/visão”. Cirurgias, lentes multifocais ou um simples par de óculos de leitura podem ser artigos de luxo para uma parcela significativa da população. “A presbiopia acaba sendo uma questão de saúde pública”, afirma o oftalmologista carioca Gustavo Novais. “Se há cada vez mais gente passando dos quarenta, o acesso desigual à saúde ocular faz uma parcela também crescente da população ter sua produtividade prejudicada.”

Quem escreveu esse texto

Helena Aragão

É jornalista e mestre em História, Política e Bens Culturais pela FGV.