Repertório 451 MHz,

Devorando Oswald de Andrade

Biógrafo do escritor modernista, Lira Neto fala sobre a vida, as contradições, os excessos e as ideias oswaldianas, presentes até hoje na cultura brasileira

28mar2025

Está no ar mais uma edição do 451 MHz, o podcast dos livros. Neste 133º episódio, o convidado é o escritor e jornalista Lira Neto, que está lançando a biografia Oswald de Andrade: mau selvagem (Companhia das Letras). Na pesquisa de mais de três anos para escrevê-la, Lira mergulhou na vida, nas contradições e nos excessos do escritor modernista, um dos líderes do movimento artístico que renovou sobretudo a literatura e as artes plásticas brasileiras nos anos 20 e 30 do século passado — e que teve seu ponto de virada na Semana de Arte Moderna de 1922. 

Na conversa, o biógrafo compartilha detalhes sobre a pesquisa e escrita do livro, conta episódios pouco conhecidos da vida de Oswald de Andrade, fala sobre sua irreverência, sua fama de briguento e sua relação com as mulheres, além de analisar o peso que as ideias de Oswald ainda têm na cultura nacional e nos meios acadêmicos. O episódio foi realizado com apoio da Lei Rouanet — Incentivo a Projetos Culturais.

Cearense nascido na capital Fortaleza, Lira Neto é escritor e jornalista, mestre em comunicação e semiótica pela PUC-SP, e também dá aulas de escrita criativa de não ficção. Ele é conhecido sobretudo como autor de biografias de grandes personalidades da cultura e da política brasileiras. 

Capas de Oswald de Andrade: mau selvagem (2025), O inimigo do rei: uma biografia de José de Alencar (2006), o primeiro volume da trilogia Getúlio (2012) e A arte da biografia (2022), de Lira Neto

Além da recém-lançada biografia de Oswald de Andrade — leia trecho —, Lira registrou a vida de Getúlio Vargas, do escritor José de Alencar e da cantora Maysa. Também lançou, pela mesma editora, A arte da biografia: como escrever histórias de vida (2022), uma espécie de manual para aspirantes a biógrafos ou quem simplesmente quer aperfeiçoar a escrita de histórias reais..

Biografias de Lira Neto: 

  • O inimigo do rei: uma biografia de José de Alencar ou a mirabolante aventura de um romancista que colecionava desafetos (Globo, 2006)
  • Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão (Companhia das Letras, 2009)
  • A trilogia Getúlio (Companhia das Letras, 2012-14)
  • Maysa: só numa multidão de amores (Companhia das Letras, 2017)
  • Uma história do samba: as origens (Companhia das Letras, 2017)
  • Castello: a marcha para a ditadura (Companhia das Letras, 2019)
  • Oswald de Andrade: mau selvagem (Companhia das Letras, 2025) — Leia trecho.

Controvérsias e polêmicas

Um dos líderes do movimento artístico que criou o modernismo brasileiro, Oswald de Andrade cresceu numa família rica e tradicional da elite paulistana. Ingressou no jornalismo na adolescência, fundou seu próprio semanário (O Pirralho) aos 21 anos e conheceu vários países da Europa pouco depois, o que impactou sua visão de mundo. Em meio ao ativismo cultural, antes mesmo da escrita dos manifestos modernistas, romances experimentais e coletâneas de poemas que rompiam com a tradição literária brasileira, ficou conhecido como um notório colecionador de polêmicas. 

Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e Pagu (Reprodução/Divulgação)

Elas envolviam desde a sua vida amorosa — de muitos relacionamentos casuais e casamentos pouco ortodoxos, como os mantidos com a pintora Tarsila do Amaral e a então jovem escritora Patrícia Galvão, a Pagu — até a irreverência combativa de seus escritos, que tinham como alvo o clero, o fascismo, o provincianismo e as formas convencionais de arte.   

Na conversa no 451 MHz, Lira Neto comenta essas e outras controvérsias envolvendo o escritor, a começar pela pronúncia de seu nome: Ôswald ou Oswáld? “Oswáld é como ele gostava de se chamar, mas os amigos o chamavam de Osvaldo”, conta o biógrafo. “Essa pronúncia Ôswald é dos anos 70 para cá. É quando houve a redescoberta [dele], depois do Zé Celso, da recuperação pelos irmãos [Augusto e Haroldo de] Campos e pelo tropicalismo. Se inventou aí esse Ôswald, porque a vida toda ele foi Oswáld.”

Lira acredita que o temperamento controverso oswaldiano foi muito influenciado pela questão da sexualidade, que aparece já no início da biografia, com uma cena inaugural de Oswald se masturbando. “Ele era homem com uma profunda carga de sensualidade, às vezes, inclusive, de forma até agressiva. E a memória mais remota de infância dele é uma ereção que ele teria tido aos quatro, cinco anos de idade”, conta.

“Achei aquilo tão forte, a ponto de já sinalizar para o leitor: olha, você está diante de homem cuja sexualidade não era só intensa, mas sempre foi precoce. É algo que vai permear toda a trajetória do biografado e, portanto, toda a narrativa do livro.”

Mulheres e amigos

Sobre a relação de Oswald com as mulheres, marcada pela não monogamia, Lira diz que refletia tanto a época quanto as idiossincrasias do autor. “Oswald de Andrade, logicamente, era um homem do seu tempo e era sempre um exagerado, superlativo em tudo. E nessa questão afetiva, amorosa, ele seria o que hoje, sem querer cair em algum risco de anacronismo, seria um homem tóxico, um esquerdomacho, vamos dizer assim”, brinca.

As contradições, lembra Lira, também deixaram marca nos relacionamentos com amigos. “Ele era ao mesmo tempo lírico e profundamente sarcástico, de humor violento, um humor que chegava muitas vezes a machucar aquelas pessoas com quem ele convivia”, aponta. “Ele levava aquele chavão de não perder a piada, mesmo sob o risco de perder o amigo.”

Piadas com a aparência e a sexualidade não normativa de Mário de Andrade levaram, inclusive, ao rompimento entre os dois, que nunca voltaram a se falar. O que não impediu Oswald de homenagear o ex-amigo depois da sua morte precoce, em 1945, aos 51 anos. 

“Essa figura, mais uma vez, tão controvertida de Oswald de Andrade era capaz de ser violento com alguém por quem ele tinha afeto grande, uma admiração intelectual enorme”, diz Lira Neto. “Tanto é que, muito depois da morte do Mário, ele vai dizer que a grande figura do modernismo brasileiro era Mário de Andrade. E que, se há uma obra antropofágica na literatura brasileira, esta é Macunaíma, de Mário de Andrade”, completa.

Escritos íntimos

Para escrever Oswald de Andrade: mau selvagem, Lira Neto mergulhou em cadernos pouco conhecidos deixados pelo escritor modernista. A base da pesquisa, diz na conversa no 451 MHz, foi o acervo pessoal de Oswald depositado por sua família na Universidade de Campinas, a Unicamp.

“São cerca de quatro mil documentos, incluindo muitos escritos íntimos. Cartas, que são preciosas, mas também documentos memorialísticos, que ficaram inéditos”, conta o biógrafo. Parte desse material só tinha vindo a público antes em Diário confessional, coletânea organizada por Manuel da Costa Pinto e publicada em 2022 pela Companhia das Letras.

Oswald de Andrade em Piracicaba (SP), aos cinquenta anos (Divulgação)

Esses cadernos trazem revelações sobre os últimos anos de Oswald de Andrade, suas dificuldades financeiras no fim da vida e sua decadência física. “Aquele homem que sempre tinha o erotismo como dos seus combustíveis, como a sua força motriz, ao final da vida se lamenta exatamente da perda dessa virilidade”, aponta Lira.

Ele ainda fala da aproximação, neste período, entre Oswald e a nova geração de geração de intelectuais representada por Antonio Candido, Décio de Almeida Prado e Paulo Emílio Salles Gomes, todos ligados à Universidade de São Paulo — que rejeitou a entrada de Oswald como professor duas vezes, conferindo-lhe, no entanto, o título de livre-docente, do qual ele se orgulhava.

Ficcionista autobiográfico

O autor da nova biografia do modernista ressalta no programa como Oswald de Andrade incorporava os acontecimentos da sua própria vida na sua criação literária. “Tudo o que ele viveu, de certa forma, também virou literatura”, diz Lira. 

Isso pode ser observado a partir da leitura dos cadernos íntimos que o escritor deixou. “Ele demorava muito a escrever um romance, por exemplo, como Memórias sentimentais de João Miramar [1924], que levou anos e anos para fazer. E é muito impressionante você comparar a primeira redação com a última, a publicada.”

Oswald de Andrade em 1918, aos 28 anos (Divulgação)

“Ele partiu de uma narrativa muito convencional, com muito apelo descritivo e tudo o mais, e vai implodindo esse original, vai fazendo uma espécie de decomposição cubista do texto até a versão que ele julgou pronta”, explica o biógrafo.

Influência na cultura

Este episódio do 451 MHz também discute o impacto deixado na cultura brasileira pelo autor do “Manifesto antropofágico”, da coletânea de poemas de vanguarda Pau-brasil (1925), além do texto teatral O rei da vela (1937). Lira Neto lembra que Oswald de Andrade tinha caído no ostracismo até que foi “redescoberto” pelos poetas concretistas Décio Pignatari, Haroldo e Augusto de Campos, pelo diretor teatral José Celso Martinez Corrêa — que montou pela primeira vez O rei da vela, em 1967, no Teatro Oficina — e pelo tropicalismo. 

“Numa das sessões d’O rei da vela, na plateia, estava um jovem baiano de vinte anos, cabeludo. Esse cara era Caetano Veloso, que disse: ‘está tudo aí, a antropofagia é que é o norte, é que é o farol’”, diz Lira Neto, que explica por que a principal ideia artística oswaldiana soou tão revolucionária para os artistas brasileiros do anos 60 em diante. 

“O que é, no fundo, o grande legado de Oswald de Andrade? É eliminar essas fronteiras entre uma série de interditos e interdições, seja entre o erudito e o popular, entre a cultura de massa e a cultura dita clássica, entre o nacional e o universal, entre o bom gosto e o mau gosto. Isso é antropofagia”, define o biógrafo.

Mais do que isso, ele afirma que a antropofagia já era nos anos 20 “uma metáfora muito mais sofisticada, muito mais complexa” do que a ideia de culturas híbridas, hoje muito em voga. “O híbrido é a união de duas espécies que gera uma terceira que é inférti. Oswald de Andrade propõe a devoração do outro, propõe a devoração das culturas”, diz Lira Neto.

“Ou seja, a cultura não pode se isolar, a cultura não pode se museificar, ela tem que viver de empréstimos alheios e de contrabandos mesmo. Acho que essa é uma boa palavra para definir.”

Mais na Quatro Cinco Um

Lira Neto também participou do 451 MHz em 2023, depois de lançar A arte da biografia: como escrever histórias de vida. No 89º episódio do podcast, ele expôs suas ferramentas de biógrafo, revelando os macetes, os segredos e os bastidores desse ofício.

No mesmo ano, o livro do escritor cearense foi resenhado pela escritora e jornalista Karla Monteiro para a Quatro Cinco Um junto com outro título sobre biografias, A vida por escrito: ciência e arte da biografia (Companhia das Letras, 2022), de Ruy Castro. Leia a resenha

Oswald de Andrade já foi tema de diversos conteúdos da revista dos livros. Em fevereiro, foi ao ar um trecho de Oswald de Andrade: mau selvagem, a nova biografia escrita por Lira Neto. Leia aqui

Na edição #52, a especialista em história e cultura da alimentação Flávia Couto resenhou A arte de devorar o mundo: aventuras gastronômicas de Oswald de Andrade, de Rudá K. de Andrade, historiador e neto do escritor. O ensaio biográfico traça o roteiro da gastronomia na vida e na obra de Oswald. Leia a resenha Em 2018, nos noventa anos do “Manifesto antropofágico”, o crítico literário Alexandre Nodari escreveu sobre o texto clássico oswaldiano e Antropofagia: palimpsesto selvagem (Editora Sesi-SP), de Beatriz Azevedo, que analisa suas fontes e referências. Leia aqui.

O melhor da literatura LGBTQIA+

O episódio traz uma indicação do livreiro Rui Campos, fundador da Livraria da Travessa, rede criada nos anos 80 no Rio de Janeiro e que hoje tem filiais em São Paulo, Brasília e Lisboa. A dica dele é o romance Sodomita, do escritor e diplomata brasileiro Alexandre Vidal Porto, que saiu em 2023 pela Companhia das Letras.

Sodomita, de Alexandre Vidal Porto

“Cheio de ironia e com português arcaico inventado, super criativo, Alexandre nos leva a passear pelas aventuras de um personagem que, graças ao seu talento em criar estilo próprio em que nunca sabemos o que é invenção ou realidade, refletimos sobre temas de total atualidade: homossexualidade, Brasil, Portugal, Estado, tirania, liberdade, escravidão, entre tantas outras coisas”, diz Campos. “Isso tudo com muito humor e seriedade ao mesmo tempo.”

Confira a lista completa de indicações do podcast 451 MHz no bloco O Melhor da Literatura LGBTQIA+

CRÉDITOS

O 451 MHz é uma produção da Associação Quatro Cinco Um.

Apresentação: Paulo Werneck
Produção: Brenda Melo e Vitor Pamplona
Edição e mixagem: Igor Yamawaki
Identidade visual: Quatro Cinco Um
Para falar com a equipe: [email protected]