‘Vazou’ o livro sobre Julian Assange, fundador do WikiLeaks; leia trecho

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‘Vazou’ o livro sobre Julian Assange, fundador do WikiLeaks; leia trecho

Em ‘O vazamento’, jornalista Natalia Viana conta como foi entrar no QG do ativista e coordenar a divulgação de documentos secretos sobre o Brasil

12jul2024 • Atualizado em: 15jul2024

No livro de memórias O vazamento: memórias do ano que o WikiLeaks chacoalhou o mundo, recém-lançado pela Fósforo, Natalia Viana conta como foi viver a experiência que nenhum jornalista recusaria: a de trabalhar com a equipe da organização fundada em 2006 pelo ativista australiano Julian Assange.

Nos anos de 2010 e 2011, época em que ela atuou com o WikiLeaks, o grupo realizou o vazamento de mais de 250 mil telegramas diplomáticos do Departamento de Estado dos EUA envolvendo as guerras do Iraque e do Afeganistão, entre outros assuntos de interesse público.  

Única brasileira a integrar o escritório de Assange, em Ellingham Hall, no Reino Unido, Viana foi responsável por coordenar a divulgação dos arquivos sobre o Brasil. O movimento ficou conhecido como Cablegate — a maior quantidade de documentos oficiais vazados em domínio público até hoje. 

Quando foi convidada para participar do projeto, a jornalista trabalhava como repórter independente e estava prestes a se mudar para a Amazônia. Em um bangalô à beira do rio Tapajós, no Pará, sem internet e com o sinal de celular limitado, Viana ouviu um recado deixado na caixa de mensagem por uma voz de mulher com sotaque britânico. 

A inglesa não podia falar [por questões de segurança], mas eu entendi; o ‘material’ devia ser mais uma leva de documentos secretos, provavelmente pertencentes ao governo dos Estados Unidos. A organização, o WikiLeaks, grupo que ao longo daquele ano ocuparia as capas de jornais publicando segredos militares da maior potência. Esse vazamento seria maior que todos os outros, dizia ela. E, agora, ele cruzava o meu caminho”, diz no livro. 

No final de junho, Assange deixou a prisão em Londres, onde passou os últimos cinco anos preso, após se declarar culpado das acusações dos Estados Unidos de conspiração para obter e divulgar informações de defesa nacional. Segundo o governo norte-americano, os documentos revelados pelo WikiLeaks colocaram vidas em perigo. 

Natalia Viana (Pablo Saborido/Divulgação)

A defesa de Assange, no entanto, refuta essa tese. Segundo os advogados, Assange estaria sendo processado por realizar uma prática jornalística comum, ou seja, “obter e publicar informações confidenciais, informações verdadeiras e de interesse público”. Leia um trecho a seguir. 

Trecho de O vazamento: memórias do ano que o WikiLeaks chacoalhou o mundo

Os documentos

Foi apenas na tarde do segundo dia que eu recebi, enfim, os documentos.

“Aqui estão os cables referentes ao Brasil”, disse James Ball, que ficou responsável por extrair o texto bruto dos documentos e inseri-los em bases de dados onde podiam ser buscados, cruzados e ordenados de acordo com grau de classificação, local de origem, destino, data e assunto. Eram cerca de 3 mil no total, provenientes da embaixada em Brasília, dos consulados em Recife, Rio de Janeiro e São Paulo e do Departamento de Estado, dirigido à embaixada em Brasília. A grande maioria datados de 2003 até 2010 — apenas um ou dois eram mais antigos, e nenhum se referia à época anterior ao governo Lula.

Muita gente imagina que, ao nos referirmos a “documentos do Departamento de Estado”, estamos falando de um papel, um Pdf, ou a foto de um objeto que tenha existido fora do mundo dos pixels. Não. Trata-se de comunicação feita por cabos, daí o nome cables, ou “cabogramas”, que eu traduzi como “telegramas” para facilitar o entendimento, depois de consultar Julian. O nome colou, mas sempre me soou um pouco anacrônico para aquela aventura high-tech. No vazamento, o que importava era o conteúdo, o texto, independente da mídia. Então, na hora de publicar, cabia ao WikiLeaks e aos jornais de todo o mundo “reinventar” uma visualização que permitisse ao público entender que estávamos falando de documentos vazados, por mais que não fossem de papel. Ossos do ofício na era digital.

James, sempre metódico, me explicou rapidamente o sistema de classificação: os documentos estavam divididos em Não Classificados, Confidenciais, Secretos e Acesso Não Permitido para Estrangeiros. Todos faziam parte de um sistema chamado SIPRNet, implantado pelo governo de George W. Bush depois do Onze de Setembro para centralizar informações da guerra ao terror — decisão que teve uma consequência desastrosa (para os Estados Unidos). Mais de 3 milhões de militares, funcionários do Departamento de Defesa, espiões da CIA e outras agências de inteligência, além de funcionários terceirizados, tinham acesso ao conteúdo. Entre eles, funcionários juniores, em estágio inicial da carreira. Era tanta gente que, mais cedo ou mais tarde, um vazamento seria inevitável. A vulnerabilidade fora, portanto, criada pelo próprio governo americano, que passaria a próxima década apontando o dedo para o WikiLeaks e evitando reconhecer sua própria parcela de responsabilidade.

“Não temos nenhum documento top secret”, explicou Ball. Esses transitavam por canais diferentes e mais restritos.

Mesmo assim, ali estava todo um discurso sobre o mundo, e o registro minucioso das questionáveis ações levadas a cabo em nome dele. Julian me explicou o que esperava dos colaboradores como eu: a ideia era dar contexto e escrever sobre os telegramas referentes a cada país em reportagens a serem publicadas no site do WikiLeaks, que funcionaria como uma agência creative commons, com conteúdos que poderiam ser livremente republicados sem qualquer custo. E não só em inglês, mas também em outras línguas.

“Um bom caminho é ler todos os secretos”, recomendou Julian. “E vai me dizendo o que achar. Depois a gente conversa.” A ideia era que todos, dentro de alguns dias, tivessem uma avaliação do que havia de relevante sobre cada país — e o seu potencial de impacto — para então estabelecermos parcerias com jornais locais. Eram documentos com valor histórico, e não só noticioso. Através deles, aprenderíamos como se dá na prática a política externa: nomes, datas, detalhes. Organizá-los bem e elaborar uma boa estratégia de divulgação era, portanto, essencial. Queríamos que fossem lidos, repercutidos, abraçados pela mídia e pelos sem-mídia, aqueles que já se informavam apenas pelos descaminhos da internet.

Julian me explicou o que esperava dos colaboradores como eu: a ideia era dar contexto e escrever sobre os telegramas referentes a cada país em reportagens a serem publicadas no site do WikiLeaks

Eu estava aflita. Embora já acompanhasse de longe a proposta ousada do WikiLeaks, me arrepiava a ideia de ler relatos de conversas alheias. Pipocavam na minha cabeça questionamentos que hoje estão superados na discussão do jornalismo investigativo, mas que à época me pareciam urgentes. Eu tinha direito de ler aquelas correspondências? E se o conteúdo não fosse de interesse público? Onde termina o jornalismo e começa o voyeurismo? E como avaliar se o que diziam os políticos, a portas fechadas, era verdade ou mentira? Quais os limites factuais de um relato escrito por um embaixador gringo em terras alheias?

Mas todos os meus receios se dissiparam quando deitei os olhos nos documentos das embaixadas e dos consulados brasileiros, que efetivamente contavam a história recente do meu país. Se aquilo não era informação de interesse público, eu não saberia dizer o que é.

Assim que recebi as duas bases de dados — uma com os 1947 telegramas de Brasília, a outra com 909 dos consulados — fiquei cinco dias grudada no computador. Estava ali um relato inédito da nossa história recente, e era preciso, delicioso. Afinal, tratava-se da conta de todos os anos do governo Lula aos olhos do governo americano, primeiro liderado por George W. Bush e depois por Barack Obama. A história de um império em decadência, e de um país do Sul global que se esforçava para despontar como ator internacional. Com seus meandros, suas sacanagens, e seus deliciosos flagras. Muitas vezes, um telegrama era apenas um fiozinho de uma meada que eu ia puxando, um prazer específico que apenas os jornalistas investigativos conhecem. E tinha muito fio para ser puxado.

A verdade é que ninguém entendia os vaivéns da nossa política regional e cabia a mim avaliar o que era bombástico e o que não era.

Quando Barack Obama chegou ao governo com a promessa de reduzir os contingentes de soldados no Afeganistão e no Iraque, além do compromisso de fechar o centro de detenção de Guantánamo, havia uma década que a América Latina passava por uma nova onda política, que chegou a ser chamada de “onda rosa” — uma referência a uma esquerda mais “light” — pela imprensa internacional. Começando com Hugo Chávez, eleito presidente da Venezuela em 1999 depois de ter sido preso por tentar um golpe de Estado, “mudança” era o mote dos novos presidentes cuja base de esquerda se articulara durante as conferências do Fórum Social Mundial, inaugurado em Porto Alegre em 2001. Foi a vontade de romper enfim com estruturas elitistas antiquadas, aliadas a políticas neoliberais predatórias, que levou à vitória de Evo Morales, o primeiro indígena a chegar ao poder na Bolívia; do bispo católico Fernando Lugo, primeiro (e único) presidente de esquerda a comandar o Paraguai; de Néstor Kirchner, que reivindicava a herança do peronismo na Argentina; de Michelle Bachelet, filha de um brigadeiro-general da Força Aérea preso, torturado e morto pela ditadura de Augusto Pinochet, e primeira mulher a governar o Chile; e do uruguaio Pepe Mujica, ex-guerrilheiro do grupo Tupamaros, que lutou contra a ditadura uruguaia e ficou catorze anos preso, a maior parte em uma solitária.

Nessa onda rosa, Lula era uma liderança inegável, primeiro trabalhador a ocupar o posto de presidente do Brasil. E um negociador nato. Valendo-se da preocupação norte-americana com a guerra ao terror, focada no Oriente Médio e longe das nossas terras, seu governo chegou a articular uma aliança com países do Sul global que contrariava a hegemonia estadunidense solidificada desde o fim da Guerra Fria. Naqueles anos os governos de esquerda fortaleceram o Mercosul, bloco econômico que busca integrar as economias da América do Sul, criaram uma união política e militar regional, chamada Unasul, e trabalharam para melhorar as relações transnacionais e culturais, com a criação, por exemplo, da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), a Universidade do Mercosul. Sob comando do chanceler Celso Amorim, a política externa brasileira ampliou sua presença em fóruns internacionais, abriu 67 embaixadas, sendo dezenove na África, e reafirmou a intenção de ter um assento no Conselho de Segurança da ONU.

Ocupados com duas guerras sem fim, os Estados Unidos viam a movimentação com desconfiança — por mais que, publicamente, Barack Obama elogiasse Lula. Era isso que transparecia nos documentos que agora eu tinha em mãos. Aos poucos os furos iam se revelando e eu, com toda a paciência, ia classificando um a um, segundo a urgência e importância.

O Itamaraty de Celso Amorim era apontado como “nacionalista” e “um parceiro frustrante”, enquanto os diplomatas dos Estados Unidos tratavam de seduzir o então ministro da Defesa, Nelson Jobim, a quem o embaixador Clifford Sobel chegou a chamar de “atipicamente ativista” por seu discurso pró-americano. Numa ocasião, Jobim comunicou ao embaixador que Evo Morales fora diagnosticado com um tumor no nariz. Um segredo de Estado, transmitido em confidencialidade entre líderes de duas nações aliadas e vizinhas, era assim relatado a outro país, como se nada fosse. “Meu Deus!”, lembro de ter gritado. “Que traição!”

Silêncio na sala. A verdade é que ninguém entendia os vaivéns da nossa política regional e cabia a mim avaliar o que era bombástico e o que não era.

Peraí. Esquecemos de perguntar o seu nome.

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