Trechos,

Paulo Lins assina prefácio de livro sobre o 13 de maio; leia trecho

‘O Treze de Maio e outras estórias do pós-Abolição’, de Astolfo Marques, marca a estréia da editora Fósforo

10maio2021 | Edição #46

Descendente de escravizados, o escritor maranhense Astolfo Marques (1876-1918), contemporâneo de Lima Barreto, aprendeu a ler sozinho enquanto ajudava sua mãe, cafuza livre, que trabalhava como lavadeira e engomadeira, e tornou-se jornalista e tradutor. Foi um dos fundadores da Academia Maranhense de Letras, em 1908, e escreveu livros de contos (A vida maranhense, 1905; Natal, 1908), peças (O Maranhão por dentro, 1907) e romances (A nova aurora, 1913) em um estilo que recorda o de Machado de Assis, com “parágrafos curtos, com tópicos frasais precisos” — é o que diz o escritor Paulo Lins no prefácio da antologia que reúne dezessete contos de Marques.

A coletânea de contos foi organizada pelo historiador Matheus Gato, autor de O massacre dos libertos: sobre raça e República no Brasil (1888-1889), resenhado na edição 40 da Quatro Cinco Um, e que concedeu uma entrevista ao podcast Vinte Mil Léguas sobre a maneira como as fronteiras raciais vão sendo redesenhadas ao longo da história.

O livro marca a estreia da Editora Fósforo, criada por Fernanda Diamant, Rita Mattar e Luis Francisco Carvalho Filho, e que também está lançando O lugar, uma das principais obras da escritora francesa Annie Ernaux, e Psiconautas, livro do jornalista Marcelo Leite sobre ciência e psicodelia.

Trecho do Prefácio

O trabalho de Astolfo Marques antecipa o que vai acontecer com os afrodescendentes no mundo todo: a caça aos extratos negros da população se intensifica e dura até hoje. O ódio à constituição de uma maioria afrodescendente é o que determina o genocídio dos jovens negros e de periferia que assistimos. São cerca de 70 mil os mortos a bala no Brasil por ano. O trabalho infantil atingia, ao fim de 2019, 1,8 milhão de crianças e adolescentes com idades entre cinco e dezessete anos, sendo que 70% são pretas ou pardas; 80% da população carcerária é negra.

A teima em negar à maioria da população qualquer possibilidade de ascensão social, o domínio da ciência e de ofícios prestigiosos, o ingresso em universidades, para que os mais privilegiados possam roubar o tempo de uma plebe que cuida dos seus filhos, lava o chão, cata o lixo, desentope esgoto, é a característica desse país obcecado em ser pobre desde a escravidão.

O trabalho de Astolfo Marques antecipa o que vai acontecer com os afrodescendentes no mundo todo: a caça aos extratos negros da população se intensifica e dura até hoje. 

O racismo, a segregação, a violência policial e o contínuo permanecer na base da pirâmide social é algo que fica claro em “Aqueles aduladores”. Um homem negro se apronta para um baile oferecido ao presidente da província, Moreira Alves, que comemorava a assinatura da Lei Áurea, mas não pode ir, apesar de ter se preparado com toda a pompa para a festa. Da própria festa do fim da escravatura, onde se encontrava o representante maior da província, os negros foram excluídos, coisa que perdurará pelos tempos.

Alguns contos como “O suplício da Inácia”, uma mulher escravizada que morre enforcada, acusada de um crime que não cometeu, mostram o tempo da escravidão; outros nos revelam o pós-Abolição e alguns retratam a vida depois do golpe republicano, conduzido por militares e latifundiários escravocratas. O medo de que a escravidão volte é ilustrado em “A última sessão”; vale lembrar que Luís Gama se recusou a ir à primeira convenção do Partido Republicano na cidade de Jundiaí porque seus integrantes eram a favor do escravismo. André Rebouças, que lutou pelo fim da escravatura, também se opunha a esses republicanos que até os dias de hoje deixam o negro brasileiro à margem da sociedade.

Uma das questões mais importante que esta coletânea nos revela, e que vem fortalecer o movimento negro, é o orgulho de não “ser treze”, isto é: de não ter ganhado a libertação com a Lei Áurea, mas tê-la conquistado antes desse ato que, para alguns negros e negras, não teve o menor valor. O que importava era a liberdade alcançada pela união de pessoas negras, pelas associações e clubes negros, era isso que lhes trazia brio, autoestima, a união entre eles, e a força do povo negro em toda parte do Brasil também se fazia presente dessa forma.

A coletânea nos revela o orgulho de não “ser treze”: não ter ganhado a libertação com a Lei Áurea, mas tê-la conquistado antes desse ato

Na Província do Maranhão, nacionalmente conhecida pela crueldade de sua classe senhorial, lutou-se com afinco contra a escravidão. Ali havia vários clubes negros que, além de oferecer aulas, reuniões de confraternização, organização de revoltas e levantes, compravam a alforria dos escravizados que se associavam. Eram instituições voltadas para o desenvolvimento espiritual, social e, acima de tudo, para a liberdade. No conto “O Treze de Maio (recordações)”, Astolfo Marques deixa isso claro: ou compravam a própria alforria ou fugiam para uma província em que o número de capitães do mato fosse sensivelmente menor. É oportuno ressaltar que quando a Lei Áurea foi assinada, somente em torno de dez por cento da população negra no Brasil era escravizada.

O movimento negro atual sempre aponta que o trabalho de resistência começa nos quilombos, desde Aqualtune, fundadora do primeiro quilombo no Brasil, mãe de Ganga Zumba e avó materna de Zumbi dos Palmares; que o povo preto resiste. E foram seus descendentes que deram continuidade à luta pela liberdade. É uma luta contínua por equidade racial, com milhões de pessoas mortas ao longo de quase quatrocentos anos, até a Abolição, e que segue hoje, pelo mundo todo.

Quando a Lei Áurea foi assinada, somente em torno de dez por cento da população negra no Brasil era escravizada

Astolfo Marques é filho de uma cafuza livre que trabalhava como lavadeira e engomadeira, sem pai, criado na pobreza. Teve que estudar por conta própria, sofreu racismo a vida toda, lutou de todas as formas para conseguir instrução e nos deixar essa obra tão contemporânea e tão maravilhosa. Seu trabalho ressurge num tempo em que outros descendentes de escravizados, como eu, Ferréz, Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Cidinha da Silva, Itamar Vieira Júnior, Paulo Scott, Jeferson Tenório e José Falero, saídos da fome, da pobreza e de um ensino precário, nos incluímos no debate socioliterário para combater o racismo e lutar através da escrita. Os negros e negras que escrevem no Brasil de hoje tiveram e têm uma vida parecida com a de Astolfo Marques. Apesar da distância temporal, estamos juntos e misturados.

Paulo Lins
Março de 2012

Matéria publicada na edição impressa #46 em abril de 2021.