(Divulgação)

Trechos,

O dilema das criações 

Em ‘A mulher de dois esqueletos’, Julia Dantas explora os conflitos de uma sociedade patriarcal: ter um filho ou se dedicar à carreira profissional?; leia trecho

29jul2024

O romance A mulher de dois esqueletos, da escritora gaúcha Julia Dantas, chega às livrarias nesta quarta-feira (31), pela editora Dublinense. No livro, uma artista de quase quarenta anos vive um dilema entre ter um filho ou se dedicar a seu trabalho. 

O conflito entre os desejos profissionais de uma escritora e suas ambições maternas mergulham o leitor em uma dinâmica mental confusa, mas realista, em que fantasia — a ideia de um filho imaginário — e realidade — a rotina com as palavras — se misturam. 

Dantas é autora de Ela se chama Rodolfo (DBA, 2022), vencedor do Prêmio AGES e do prêmio da Academia Rio-Grandense de Letras, e Ruína y leveza (Dublinense, 2015). Leia um trecho de A mulher de dois esqueletos a seguir.

Trecho de ‘A mulher de dois esqueletos’ 

Quem sabe tu começa a viver como se tivesse um filho? Essa foi a sugestão da minha melhor amiga quando eu disse que era impossível decidir se eu queria ou não engravidar. Imediatamente lembrei de um filme americano no qual meninas adolescentes de uma escola recebiam umas bonecas a pilha e tinham que cuidar delas como parte de um programa de prevenção à gravidez precoce. A minha amiga sorriu. Acho que não era bem isso que eu estava pensando, ela disse, e então perguntou se eu, sendo uma escritora, não poderia tentar resolver essa fantasia — ela deu o nome de fantasia a essa ideia de fingir ter um filho — usando palavras. Por ser uma assídua leitora e não escrever, minha amiga tem um fetiche grande pelas palavras, pelo que elas constroem e pelo que deixam entrever, pelo que organizam. Não sei, eu respondi, e voltei do nosso encontro meio frustrada porque eu, sendo uma escritora, lido todo dia com o fato de que as palavras conseguem fazer bem menos coisas do que a minha amiga acha que conseguem.

Ora, resolver com palavras um filho imaginário, que ideia mais ridícula. Se o problema do filho não é seu conceito, mas sua materialidade. Se as palavras da minha língua não são capazes sequer de dar conta do indefinido de que um feto pode gerar um filho tanto quanto uma filha. Caso eu pudesse escrever um filho ou uma filha e depois guardá-los na estante de livros, não haveria problema. Mas uma filha vive, ocupa espaço e demanda cuidado. E foi por isso que eu acabei com essa coisa aqui. Foi assim que eu cheguei em casa depois de ter tomado mojitos com a minha amiga, imprimi em cinco folhas A4 todas as dúvidas que eu tinha a respeito de ter uma filha e fiz uma bolinha com elas. Mas aí achei que tinha ficado pequeno demais, então eu abri de novo o arquivo com as dúvidas, ampliei a fonte para tamanho 42, imprimi as cinquenta e cinco folhas e as fui amassando e moldando de modo a acabar com essa coisa nas mãos, essa bonequinha disforme de pele bege do papel reciclado e tingido por letras retorcidas na superfície, uma cria de Élida Tessler com Mary Shelley. Minha nenê de palavras tem aproximadamente quarenta centímetros de altura e pesa menos do que a balança de cozinha consegue captar. É feia, mas é minha. Talvez essa seja a primeira lição de maternidade que a filha de mentira me traz: o orgulho infundado. […]

Uns dois dias depois, achando que a vida estava fácil demais com a filha de papel, concluí que deveria ter uma experiência mais realista e comecei a de fato fazer pausas no trabalho a cada três horas. Tiro um seio para fora da blusa e seguro a boneca de papel contra o peito. Hoje coloquei um cronômetro de quarenta e cinco minutos e fiquei olhando para a copa das árvores que vejo pela janela. Ninguém tinha me avisado que ser mãe poderia ser tão entediante. Quando o alarme tocou, voltei para a minha mesa e larguei a criatura em cima da impressora. Sei que não poderia fazer o mesmo se ela fosse de carne e osso. Cogitei comprar um moisés e deixar no escritório, mas senti vergonha só de me imaginar explicando esse exagero para o meu companheiro. Olhei para a boneca atirada na impressora e a cobri com um dos panos de prato recém-comprados. Me disseram que bebês sentem muito frio. 

Ter um filho é sempre um ato de egoísmo. Uma ou duas pessoas decidem e não há como perguntar ao potencial filho se ele quer existir. Uma ou duas pessoas resolvem fabricar um ser humano para satisfazer sua própria vontade, criar um cidadão ou o que seja, ter a experiência de um amor ainda inédito, prolongar a estadia na Terra após a morte por meio desse subproduto genético. E essas uma ou duas pessoas, se bem-informadas, aceitam pagar o preço. Aceitam todas as renúncias e abraçam esse paradoxo da impossibilidade do egoísmo. Porque ter um filho é um ato egoísta que prevê o desmoronamento do ego: o bebê, a majestade. A vida é muito curta para se ter um filho. Será que também é muito curta para não se ter?

Peraí. Esquecemos de perguntar o seu nome.

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