Trechos,
O crítico literário James Wood volta à ficção; leia trecho
Um dos mais influentes críticos literários da língua inglesa, James Wood lança ‘Upstate’, seu segundo romance e primeiro a chegar ao Brasil
12abr2021 | Edição #44Upstate, de James Wood.
Tradução de Leonardo Fróes • Sesi SP • 248 pp.
Em seu segundo romance, o crítico literário da revista New Yorker e autor de Como funciona a ficção (Sesi-SP) James Wood explora conceitos desenvolvidos em sua obra crítica, como, por exemplo, a construção de personagens. A trama acompanha a viagem de um investidor do norte da Inglaterra a Nova York para encontrar suas duas filhas, afastadas dele após seu divórcio e a morte da mulher, e explora a premissa fundamental de que a vida interior daqueles que nos são mais íntimos são na realidade um mistério para nós.
Leia o primeiro capítulo a seguir.
1
Primeiro ele tinha de ir visitar a mãe. Diria a ela alguma coisa sobre Vanessa — mas não tudo, é claro. A casa, a uns dez quilômetros pela estrada preferida, era antiga e impressionava com aquela austeridade cinza do norte tão de seu agrado. Mas o lugar tinha agora um ar de abandono: achava-se na inatividade do inverno. Havia quatro anos que a mãe vivia lá, mas ele ainda não se sentia seguro ao anunciar sua presença. A casa era também absurdamente cara e ele não poderia mais bancá-la. O que tinha ela, e o que ele tinha, pelo dinheiro? Dois quartinhos, em vez de um só, com um espaço extra para o sombrio amontoado de móveis antigos e pesados acumulados durante toda uma vida; talvez ela também ganhasse, nas sextas-feiras, com o chá, dois biscoitos.
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Ele passou por duas portas corta-fogo, que se abriram bufando e retinham o odor bolorento de um fim de semana. Comida de escola. Diante do quarto da mãe (o Clarendon), ajeitou-se um pouco. Só depois de puxar a calça para cima, como um palhaço, e sacudir a poeira do paletó, ele bateu de leve e entrou. A televisão, graças a Deus, estava desligada. E a mãe dormia afundada na poltrona de chitão que seu pai tinha usado como o trono da família, de onde baixava normas e decretos por trás do jornal que lia. Miúda e encovada, ela já estava bem banguela. Como aquela velha piada de cabaré: Seus dentes são como estrelas. De noite eles saem. A tarde, porém, ainda estava no início. A mãe, quando respirava, parecia ter alguma coisa agarrada na garganta. Sempre com aquele narigão, em torno do qual parecia agora diminuir, encolhendo até os ossos, com aquele nariz, em forma de raiz, decidido e tenaz. “Sendo dela o que tenho, o meu, sem dúvida, ficará assim.” Ele se ajoelhou perto da mãe para falar em voz baixa. Ela abriu os olhos e, meio injuriada, disse: — Quando você entrou aqui, Alan? — como se ele tivesse estado a espioná-la.
— Acabei de chegar.
— Por favor, pegue meus dentes para mim, no copo, ao lado da cama — virou-se de lado e colocou a dentadura. — E agora temos de ter chá com biscoitos. Se você pedir, eles trazem — quando criança, num subúrbio de classe média baixa de Edimburgo, ela se tornara impopular na escola ao afetar uma pronúncia inglesa, ou talvez anglo-escocesa; depois da morte do marido, o sotaque dela parecia ter se acentuado de novo, em mais um ou dois graus, em geral com o efeito de fazê-la soar meio irritada.
Nesses dias, se ainda falava como patroa, na verdade ela dava mais a impressão de ser empregada, pequena, encurvada, tão modestas ou surradas eram as roupas que usava hoje.
— Você não precisa desse tal de xale, não é? — disse ele, erguendo-o dos ombros dela.
— Claro que não! Foi só para meu cochilo que o pus. Obrigada… Você parece muito cansado. Mas sabe que tem de se poupar, não é? Não se pode acender uma vela pelos dois lados do pavio.
— Fogo de artifício, talvez? — ele tinha acabado de fazer 68 anos. — Como vão as coisas?
— Bem, acho… Mas é claro — ela acrescentou, com um gesto de esplêndida autoridade em direção à janela — que esta vista inglesa não é minha paisagem.
— Até que não é tão ruim — disse ele, olhando para a série de árvores sem folhas e colinas geladas. Era ele quem pagava por aquela vista inglesa. — E sobre isso já falamos. Você não quer vir morar comigo, precisa de sua independência, embora ficasse muito mais em conta se mudasse para nossa casa.
— De maneira alguma. Acolhi sua avó, como você bem sabe, e meus 50 anos, por causa disso, passaram-se completamente em branco. Tudo que eu fazia, dia após dia, era cuidar dela. Nunca farei o mesmo a você.
As duas mulheres, na casa da família, pareciam se detestar; com dissimulada destreza, cada qual punha a outra em depressão permanente.
— Mas você gosta de minhas visitas. E quero visitá-la — ele pegou a mão dela. — Na Escócia, a três horas daqui, não seria nada bom para mim, ainda que lá você tivesse sua própria paisagem — ele disse isso de um modo muito gentil.
Chegou o chá, trazido por um adolescente de pele muito vermelha, que ofereceu um biscoito a cada um e se foi, certificando-se de levar de volta o prato ainda quase cheio.
— Rações do tempo da guerra por aqui! — disse a mãe. E o rapaz apareceu outra vez.
— Devo lembrá-la, senhora Querry — ele disse —, que os residentes vão se reunir às 3h30 no solário para a vacinação de inverno contra a gripe. Como sabe, é o reforço para os que não compareceram na primeira vez. A senhora vai precisar de ajuda?
— Não, obrigada. Meu filho me leva.
O quarto poderia ser bem pior. Um teto alto, emoldurado por florões que eram quase lauréis romanos; no papel de parede texturizado, certos detalhes em relevo lembravam lascas de amêndoas, mas na verdade sempre o faziam pensar em lascas de pele de criança escamada, no agradável tom de creme que tinham. E aquelas coisas dos pais, conhecidas por ele a vida inteira: a reprodução de uma aquarela da catedral de Durham, um espelho antigo no qual ninguém podia realmente se ver (parecia valioso, mas ele sabia que não era), uma almofada cuja capa lilás bem desbotada, comprada por ele mesmo na Heal’s da Tottenham Court Road em Londres, não tinha sido trocada em trinta anos. Tudo era muito bom, ou tão bom quanto podia ser quando a vida inteira de uma pessoa se encontrava reduzida a lembranças de identidade. O lugar era satisfatório. Mas ele não poderia mais pagar por ele.
A mãe olhou para ele com aqueles olhos azul-claros — como os de Vanessa.
— Isto aqui está em pé de guerra! Minha vizinha do lado perdeu o aparelho de audição ontem. Ela o deixou num lenço de papel, em cima da mesa de cabeceira, e por engano a faxineira jogou fora, pensando que fosse lixo. E no quarto que fica a apenas duas portas, seguindo pelo corredor, Mary Binet está furiosa, porque gosta de conversar em francês com uma mulher que entende a língua, a única aqui que é capaz disso, e agora a direção mandou Mary parar de falar francês, pois, ao que parece, alguém se queixou (todos achamos que é um dos residentes, e desconfio muito bem de quem seja) de que elas estavam falando numa língua secreta para excluir os demais. Eu não conseguia entender o que elas diziam, mas vou sentir falta das conversas, porque eu gostava de ouvir o francês… E agora a gerente vai embora no fim do mês. Ela é tcheca, acho, e é uma boa pessoa, embora por alguma razão deteste ser tomada por polonesa. Ela só esteve aqui por um semestre…
Ele a interrompeu:
— Mãe, tenho de ir aos Estados Unidos, por uma semana.
— Estados Unidos? Ah, sim. A trabalho? — como ela sempre tivera prazer em pronunciar essas palavras, intencionalmente ele as repetiu:
— A trabalho.
— Bem, então… não se meta em enrascadas.
— Eu me meter em enrascadas?
— É um país perigoso, pelo que ouço dizer… E foi lá onde aconteceu aquela coisa horrível com as torres. Você vai poder estar com Vanessa? Ela sempre quis que você a visitasse em… naquele lugar…
— Saratoga Springs.
— Isso, eu queria dizer… Salsaparrilha.
— Sim, vou estar com ela e com Josh.
— Oh, meu Deus… Coragem lá! Ele é muito jovem e, com certeza, não serve para ela.
— Mas você nunca o conheceu!
— É verdade, nenhum de nós, mas você sabe que tenho um telefone aqui, recebo informações e eu já estava a ponto de falar, antes de você me interromper, que Vanessa já não é mais uma menina, não é?
— Não estou entendendo, mãe. Agora você está abençoando Josh?
— Ué, por que a coitadinha não teria um namorado? Talvez seja Josh o escolhido. Quando eles se casarem, você há de culpá-lo por levar Vanessa para longe…
— Oh, Vanessa já estava longe. Bem longe. Afinal foi lá, e não aqui, que ela fez o doutorado. Foi onde tudo começou.
— Garota boba. Pena ela não ter estado aqui no Natal. Acho que deve ter preferido passar um tempo com o xodó.
Houve então um momento ou dois de um silêncio fora de moda: o tique-taque do reloginho de pulso, todo trabalhado e caro, da mãe. Presente dele.
— Alan, meu amor, você pode me ajudar até o solário? Quero chegar bem cedo, enquanto a agulha ainda estiver afiada…
Os dois riram juntos e ele, ajudando-a a levantar-se, caminhou ao lado dela, que se agarrou nos tubos do andador cinza-rato, uma maravilha da engenharia, tão forte quanto um monta-cargas mas tão leve quanto os ossos de uma velha senhora. Tinha rodinhas na frente e duas bolas de tênis, amarelas e achatadas, presas nas pernas traseiras. Estas se arrastavam pelo carpete enquanto a dupla de idosos, mãe e filho, lentamente seguia pelo corredor.
Matéria publicada na edição impressa #44 em março de 2021.
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