Trechos,

Em busca de respostas

Em ‘Elena sabe’, Claudia Piñeiro envolve leitor em uma investigação que questiona o autoritarismo e a hipocrisia; leia trecho

28maio2024 - 18h11 • 20jun2024 - 15h36

Adaptado para filme pela Netflix em 2023, Elena sabe, da argentina Claudia Piñeiro, entrelaça o mistério policial com o drama de histórias íntimas que desafiam a moralidade e buscam a liberdade individual, nas quais o corpo feminino é protagonista. Publicado originalmente em 2007, o romance chega ao Brasil pela Morro Branco nesta quarta-feira (29), com tradução de Elisa Menezes.

Na trama, Rita aparece morta na igreja que costumava frequentar e a investigação sobre o que teria acontecido é encerrada sem muitas respostas. Sua mãe, Elena, enfrenta a doença de Parkinson e sua vida é contada, literalmente, em comprimidos — sem eles, ela não consegue sequer sair de casa. À medida que sua doença progride, no entanto, ela lidera uma investigação para encontrar os responsáveis pela morte da filha.

“Rita apareceu pendurada no campanário da igreja. Morta. Em uma tarde chuvosa, e isso, a chuva, Elena sabe, não é um mero detalhe. Ainda que todos digam que foi suicídio. Amigos ou não, todos. Mas por mais que insistam, ou se calem, ninguém pode refutar que Rita não chegava perto da igreja quando ameaçava chover. Não chegava perto nem morta, sua mãe diria se alguém lhe perguntasse antes daquela ocasião”, escreve Piñeiro em uma passagem do livro. 

Nascida em Buenos Aires, em 1960, Piñeiro vem se estabelecendo como uma das principais vozes da literatura latino-americana das últimas décadas. Autora de mais de vinte obras, é internacionalmente reconhecida por seus romances policiais. É também uma voz ativa no movimento pelos direitos das mulheres, voltando sua literatura cada vez mais para temas políticos e atuais. 

Em Elena sabe, finalista do International Booker Prize, Piñeiro instiga o leitor em uma narrativa com um estilo que conhece bem: a literatura noir ou policial em uma penosa viagem das periferias aos centros da capital argentina. Leia um trecho a seguir.

Trecho de ‘Elena sabe’

Trata-se de levantar o pé direito, apenas alguns centímetros do chão, movê-lo no ar para a frente, o suficiente para que ultrapasse o pé esquerdo, e a essa distância, seja ela qual for, grande ou pequena, fazê-lo descer. Apenas isso, pensa Elena. Mas ela pensa, e ainda que seu cérebro ordene o movimento, o pé direito não se move. Não se ergue. Não avança no ar. Não desce novamente. Não se move, não se ergue, não avança no ar, não desce novamente. É só isso. Mas ele não faz. Então Elena se senta e espera. Na cozinha de casa. Precisa pegar o trem que parte para a capital às dez da manhã; o seguinte, o das onze, já não lhe serve porque ela tomou o comprimido às nove, então pensa, e sabe, que precisa pegar o das dez, assim que a medicação fizer com que o seu corpo cumpra a ordem do seu cérebro. Em breve. O das onze não, porque a essa hora o efeito da medicação terá diminuído até desaparecer, e ela ficará como agora, mas sem esperança de que a levodopa aja. Levodopa é como se chama aquilo que precisa circular pelo seu corpo uma vez que o comprimido se dissolva; conhece o nome há algum tempo. Levodopa. Foi o que lhe disseram, e ela mesma o anotou em um papel porque sabia que não entenderia a letra do médico. Que a levodopa circule pelo seu corpo, ela sabe. É o que espera, sentada, na cozinha de casa. Esperar é tudo o que pode fazer por ora. Conta as ruas no ar. Recita de memória os nomes das ruas. De trás para frente e de frente para trás. 

Lupo, Moreno, Veinticinco de Mayo, Mitre, Roca. Roca, Mitre, Veinticinco de Mayo, Moreno, Lupo. Levodopa. Só cinco quarteirões a separam da estação, não é tanto, pensa, e recita, e continua esperando. Cinco. Ruas que ainda não pode percorrer com seus passos esforçados embora possa repetir seus nomes em silêncio. Hoje não quer encontrar ninguém. Ninguém que lhe pergunte por sua saúde nem que lhe dê os pêsames tardios pela morte de sua filha. Todo dia aparece alguma pessoa que não pôde velá-la ou estar no enterro. Ou não teve coragem. Ou não quis. Quando alguém morre como Rita morreu, todos se sentem convidados ao funeral. Por isso dez não é uma boa hora, pensa, porque para chegar à estação tem de passar em frente ao banco e hoje pagam-se as aposentadorias, então é muito provável que cruze com algum vizinho. Com vários deles. 

Embora o banco só abra às dez, quando seu trem estará entrando na estação e ela, com o bilhete em mãos, estará se aproximando da beira da plataforma para pegá-lo, antes disso, Elena sabe, vai encontrar aposentados fazendo fila como se tivessem medo de que o dinheiro só desse para pagar àqueles que chegam primeiro. Só poderia evitar a frente do banco dando uma volta no quarteirão algo que seu Parkinson não perdoaria. Esse é o nome. Elena sabe há algum tempo que já não é ela quem manda em algumas partes de seu corpo, os pés por exemplo. Ele manda. Ou ela. E se pergunta se deveria se referir ao Parkinson como ele ou ela, porque, embora o nome próprio lhe soe masculino, não deixa de ser uma doença, e uma doença é feminina. Assim como uma desgraça. Ou uma sentença. Então decide que vai chamá-lo de Ela, porque quando pensa nela, pensa “que doença filha da puta”. E filha da puta é ela, não ele. Com o perdão da palavra, diz. Ela. O doutor Benegas lhe explicou várias vezes, mas Elena ainda não entendeu completamente; ela entende o que tem porque o carrega no corpo, mas não algumas das palavras usadas pelo médico. Na primeira vez, Rita estava presente. Rita, que hoje está morta. Ele lhes disse que o Parkinson é uma degeneração das células do sistema nervoso. E as duas não gostaram da palavra. Degeneração. Tanto ela quanto sua filha. O doutor Benegas certamente percebeu, porque em seguida tentou explicar. E disse, uma doença do sistema nervoso central que degenera, ou faz mutar, ou altera, ou modifica de tal maneira algumas células nervosas que elas param de produzir dopamina. E Elena então aprendeu que, quando seu cérebro ordena um movimento, a ordem só consegue chegar aos pés se for levada pela dopamina. Como um chasque, pensou naquele dia. Então o Parkinson é Ela, e a dopamina, o chasque. E o cérebro, nada, pensa, porque seus pés não o escutam. Como um rei deposto que não se dá conta de que não governa mais. Como o imperador sem roupa da história que contava para Rita quando ela era pequena. Rei deposto, imperador sem roupa. E agora há Ela, não Elena, mas sim sua doença, o chasque e o rei deposto. Elena repete seus nomes como antes repetiu os das ruas que a separam da estação; esses nomes compartilham sua espera. De trás para frente e de frente para trás. Não gosta de imperador sem roupa porque, se não está vestido, está nu. Prefere rei deposto. Espera, repete, combina em pares: Ela e o chasque, o chasque e o rei, o rei e Ela. Tenta outra vez, mas os pés continuam alheios, nem sequer desobedientes, surdos. Pés surdos. Elena adoraria gritar, pés mexam-se de uma vez por todas, até cacete ela gritaria, mexam-se de uma vez por todas, cacete, mas sabe que seria em vão, porque os pés também não escutariam sua voz. Por isso não grita, espera. Repete palavras. Ruas, reis, ruas de novo. Inclui palavras novas em sua reza: dopamina, levodopa. Intui que a dopa de dopamina e a dopa de levodopa devem ser a mesma coisa, mas só intui, não tem certeza, repete, joga, deixa a língua travar, espera, e não se importa, a única coisa que lhe importa é que o tempo passe, que aquele comprimido se dissolva, circule pelo seu corpo até os pés, e que estes entendam, por fim, que precisam funcionar. 

Está nervosa, o que não é bom, porque quando fica nervosa o remédio demora mais para agir. Mas não pode evitar. Hoje ela vai jogar a última carta para tentar descobrir quem matou sua filha, falar com a única pessoa no mundo que acredita poder convencer a ajudá-la. Em troca de uma dívida longínqua no tempo, quase esquecida. Vai tentar cobrar essa dívida, apesar de que Rita, se estivesse aqui, não concordaria, a vida não é um escambo, mamãe, tem coisas que a gente simplesmente faz, porque Deus manda. Não vai ser fácil, mas vai tentar. Isabel é o nome da mulher por quem procura. Não tem certeza se irá se lembrar dela. Acha que não. De Rita, sim, todo fim de ano lhe manda um cartão-postal. Talvez não saiba de sua morte.

Se ninguém lhe contou, se não leu o único anúncio fúnebre colocado apenas dois dias depois do enterro em nome do colégio paroquial onde Rita trabalhava, a direção e o corpo docente, alunos e pais acompanham Elena neste momento tão, se não a encontrar até o final do dia, certamente essa mulher que Elena hoje procura enviará em dezembro um cartão-postal endereçado a um morto, desejando-lhe feliz Natal e um próspero Ano-Novo. De Rita ela se lembra, mas dela, de Elena, Elena pensa, certamente não. E mesmo que lembrasse não a reconheceria, dobrada assim, com esse corpo velho que não corresponde aos anos que tem. Será sua tarefa, vai explicar quem é e por que está ali, em frente a ela, quando a enfrentar. Vai contar sobre Rita. E sobre sua morte. Nem que seja o quão pouco entende de tudo o que lhe contaram. Elena sabe onde encontrar Isabel, mas não como chegar. Lá onde ela mesma a levou vinte anos atrás, seguindo Rita. Se a sorte estiver do seu lado, se Isabel não se mudou, se não morreu como morreu sua filha, lá ela a encontrará, em uma casa antiga em Belgrano, com uma pesada porta de madeira com ferragens de bronze, bem ao lado de uns consultórios médicos. Não se lembra do nome da rua, se ao menos se lembrasse da pergunta que a filha lhe fez à época, você já ouviu falar de uma rua chamada Soldado de la Independencia, mamãe?, então saberia. Em breve saberá, porque lembra, isso sim, que fica a um ou dois quarteirões da avenida que margeia Buenos Aires de Retiro até a General Paz, perto de uma pracinha, e dos trilhos de um trem. Não viram o trem, mas ouviram-no, e Rita perguntou, que ramal é esse?, mas Isabel não respondeu, porque estava chorando. 

Para saber como refazer a viagem, desta segunda vez, quase vinte anos depois, Elena foi à remisería que fica na esquina de sua casa, aquela que abriram alguns anos atrás no lugar onde antes fora a padaria em que Elena comprou o pão de cada dia para a família desde que chegou ao bairro, recém-casada, até que o pão desapareceu e apareceram os carros de aluguel. O motorista não sabia, sou novo, desculpou-se e perguntou ao dono. Repetiu as palavras de Elena, disse, a avenida que margeia Buenos Aires, de Retiro até a General Paz, perto de uma linha de trem, e o dono lhe respondeu, Libertador, e Elena disse que sim, que se chamava Libertador, agora que ele falou ela se lembra, e que precisava ir até Belgrano, até uma pracinha. Olleros, disse outro motorista que acabava de chegar de uma viagem, disso eu já não tenho certeza, disse Elena, Olleros, repetiu o homem com convicção, mas ela não se lembrava do nome da rua, e sim da porta de madeira, e das ferragens de bronze, de Isabel, e de seu marido, pouco de seu marido. Levamos a senhora?, perguntaram e Elena disse que não, que era muita viagem, muito gasto, que iria de trem e, de qualquer forma, se não aguentasse mais e seu corpo não estivesse disposto a ir de metrô, pegaria um táxi em Constitución, fazemos um desconto, propôs o dono, não, obrigada, respondeu ela, podemos fazer fiado, insistiu, de trem, disse Elena, não gosto de dívidas, e não deu abertura a mais insistências, nenhum metrô vai deixá-la perto, senhora, o de Carranza, mas de lá são uns dez quarteirões, disseram-lhe, se for pegar um táxi, cuidado para não enrolarem a senhora, diga ao taxista para ir direto pela Nueve de Julio até a Libertador e de lá outra vez direto até a Olleros, bem, não, corrigiu o motorista que sabia, porque a Libertador vira Figueroa Alcorta, antes de chegar ao Planetário precisa dizer para dobrar à esquerda, até o Monumento dos Espanhóis, e pegar de novo a Libertador, ou no Hipódromo de Palermo, explicou o dono, mas não deixe darem voltas com a senhora, tem certeza de que não quer que a levemos? Elena foi embora sem responder, porque já respondera à mesma pergunta antes e para ela tudo era difícil demais para ainda ter de responder a mesma coisa duas vezes. 

Constitución, Nueve de Julio, Libertador, Figueroa Alcorta, Planetário, Monumento dos Espanhóis, Libertador, Olleros, uma porta de madeira, ferragens de bronze, uma porta, Olleros, Libertador, Nueve de Julio, Constitución. De trás para frente, de frente para trás. Não lembra em que lugar da reza deve enfiar o Hipódromo. Espera, pensa, conta de novo as ruas. As cinco que a separam da estação e as outras, as que não conhece, ou de que não se lembra, aquelas para onde está indo cobrar uma dívida na qual acredita por necessidade. Rei sem coroa. Ela. De onde está, sentada, tenta levantar o pé direito no ar, e o pé agora está ciente e se levanta. Então está pronta, sabe. Apoia a palma de cada mão nas coxas, junta os pés para que as pernas fiquem num ângulo de noventa graus em relação aos joelhos, depois cruza a mão direita no ombro esquerdo e a mão esquerda no ombro direito, começa a se balançar na cadeira e, com o impulso, se levanta. É assim que o doutor Benegas a faz levantar quando a examina, e ela sabe que é mais difícil desse jeito, mas tenta sempre que pode, pratica, porque quer estar treinada na próxima consulta. Quer impressionar o doutor Benegas, mostrar a ele que consegue, apesar das coisas que ele disse na última vez que a viu, quinze dias antes de Rita aparecer morta. 

De pé em frente à cadeira que acaba de deixar, ela levanta o pé direito, ergue-o no ar, apenas alguns centímetros, move-o para a frente até ultrapassar o pé esquerdo, o suficiente para que esse movimento signifique um passo, então ela o desce-o, e agora é a vez de o pé esquerdo fazer o mesmo, exatamente igual. Erguer-se. Avançar no ar. Descer. Erguer-se, avançar no ar, descer. Trata-se disso. Apenas isso. Andar, para chegar a tempo de pegar o trem das dez.