Trechos,

As obsessões de Pedro Almodóvar

Coletânea de contos ‘O último sonho’ reúne textos sobre diversos períodos da vida do cineasta e reflexões sobre suas fixações como artista; leia trecho

22jul2024
(Nico Bustos/Divulgação)

Não há cinéfilo que não aprecie algum filme do espanhol Pedro Almodóvar. Realizador de clássicos como Tudo sobre minha mãe (1999), Má educação (2003), Mães paralelas (2021) e Estranha forma de vida (2022), ele lança agora a coletânea de contos O último sonho, que chega ao Brasil pela Companhia das Letras na terça-feira (23). 

Assim como no cinema, a marca de Almodóvar na literatura envolve melodrama, humor irreverente, citações da cultura popular e narrativas profundas e complexas, como na ficção erótica Patty Diphusa e fogo nas entranhas (Tusquets, 2023). 

Em O último sonho, o autor traz doze textos que abordam diversos períodos de sua vida desde os anos 60 até hoje, além de reflexões sobre algumas de suas obsessões como artista. Segundo ele, este é o livro que escreveu que mais se aproxima de uma autobiografia. Leia um trecho a seguir. 

Trecho de ‘O último sonho’

Mais de uma vez pediram que eu escrevesse minha autobiografia, e sempre recusei; também sugeriram que outra pessoa a escrevesse, mas continuo tendo uma espécie de alergia à ideia de ver um livro inteiro falando de mim como pessoa. Nunca mantive um diário, e quando tentei fazê-lo não passei da segunda página; este livro, no entanto, parece ser minha primeira contradição. É o mais próximo que escrevi de uma autobiografia, ainda que fragmentada, incompleta e um pouco enigmática. 

Contudo, creio que o leitor conseguirá obter o máximo de informações sobre mim como cineasta e como fabulador (escritor), e sobre a maneira como essas coisas acabam se misturando em minha vida. Porém há mais contradições no que acabo de escrever: nunca consegui manter um diário, eu disse, e no entanto há aqui quatro textos que demonstram o contrário: o que fala da morte de minha mãe, o relato de minha visita a Chavela em Tepoztlán, a crônica de um dia vazio e “Um romance ruim”. Esses quatro textos são excertos da minha vida no instante em que eu a vivia, sem um pingo de distanciamento. Esta reunião de contos (chamo todos de contos, não faço distinção de gêneros) mostra a estreita relação entre o que escrevo, o que filmo e o que vivo.

Lola García havia arquivado esses contos inéditos em meu escritório, junto a uma infinidade de outros papéis. Lola é minha assistente nessa e em muitas outras áreas. Para reuni-los, retirou-os de pastas azuis velhas, resgatadas em meio ao caos de minhas múltiplas mudanças. Ela e Jaume Bonfill decidiram espanar o pó desses escritos. Eu não os havia lido desde que os escrevi; Lola os arquivara e eu já tinha me esquecido deles. Nunca teria parado para lê-los depois de décadas se ela não tivesse sugerido que eu desse uma espiada. Lola selecionou criteriosamente alguns, para ver qual seria minha reação ao lê-los. Nos momentos de isolamento entre a pré e a pós-produção de Estranha forma de vida, diverti-me lendo esses textos. Não os retoquei, porque o que me interessava era lembrar de mim mesmo e lembrar deles da maneira como haviam sido escritos, cada um em seu momento, e perceber como minha vida e tudo o que me cerca havia mudado desde que saí da escola.

Eu me via como escritor desde criança, sempre escrevi. Se havia algo que estava claro para mim era minha vocação literária, e se há algo de que não tenho certeza são minhas conquistas. Há dois contos em que falo do meu gosto pela literatura e pela escrita (“Vida e morte de Miguel” — escrito durante algumas tardes entre 1967 e 1970 — e “Um romance ruim”, escrito em 2023).

Reconciliei-me com alguns deles e me lembrei de como e onde os escrevi. Vejo a mim mesmo, no pátio da casa da minha família em Madrigalejo, escrevendo “Vida e morte de Miguel” em uma Olivetti, debaixo de uma parreira, com um coelho esfolado pendurado por uma corda servindo como o tipo mais repugnante de caça-moscas. Ou no escritório da Telefónica, no começo dos anos 1970, escrevendo escondido tão logo termina va o trabalho. Ou, é claro, nas diferentes casas em que morei, escrevendo em frente a uma janela.

Estes contos são um complemento a meus trabalhos cinematográficos: por vezes serviram como reflexo imediato do momento que eu vivia, e acabaram virando filmes muitos anos depois (Má educação, algumas sequências de Dor e glória), ou acabarão virando um dia.

Todos são textos de formação (ainda não dei por encerrada essa etapa) e muitos nasceram como forma de fugir do tédio.

Em 1979, criei Patty Diphusa, uma personagem transbordante em todos os sentidos (“Confissões de uma sex symbol”), comecei o novo século com a crônica de meu primeiro dia de orfandade (“O último sonho”) e diria que, em todos os textos posteriores — incluindo “Natal amargo”, onde me permiti incluir uma set piece sobre Chavela, cuja voz aparece, inesquecível, em vários de meus filmes —, volto o olhar para mim mesmo e me torno o novo personagem sobre o qual escrevo em “Adeus, vulcão”, “Memórias de um dia vazio” e “Um romance ruim”.

Esse novo personagem, eu mesmo, é o oposto de Patty, embora sejamos a mesma pessoa. Neste novo século me tornei alguém mais sombrio, mais austero e mais melancólico, com menos certezas, mais inseguro e mais medroso: e é aí que encontro minha inspiração. Prova disso são os filmes que venho fazendo, especialmente nos últimos seis anos.

Está tudo neste livro; também descubro que, recém-chegado a Madri, no começo dos anos 1970, eu já era a pessoa que me tornaria depois: “A visita” se transformou, em 2004, em Má educação, e, se eu tivesse dinheiro, já teria estreado como diretor com “Joana, a bela demente” ou “A cerimônia do espelho”, e teria continuado fazendo os filmes que fiz depois. Mas ainda há alguns contos anteriores à minha chegada a Madri, escritos entre 1967 e 1970: “A redenção” e o já mencionado “Vida e morte de Miguel”. Em ambos percebo, por um lado, que acabara de me formar no colégio, e, por outro, a angústia juvenil, o medo de continuar preso na cidadezinha e a necessidade de fugir o quanto antes para Madri (nesses três anos vivi com minha família em Madrigalejo, Cáceres).

Tentei manter os contos do jeito que os escrevi, porém reconheço que não resisti a dar uma repassada em “Vida e morte de Miguel”; o estilo me parecia muito arrogante e fiz alguns ajustes, respeitando o sabor original. Esse é um dos contos cuja leitura, mais de cinquenta anos depois, me surpreendeu. Eu me lembrava perfeitamente da ideia que movia a narrativa, a de contar a vida no sentido inverso. Isso era essencial e, se me permitem, original. Décadas depois, pensei que tinham copiado minha ideia em O curioso caso de Benjamin Button. A história em si é convencional e corresponde à minha trajetória de vida, tão escassa naquele momento. O importante era a ideia. Lendo hoje, descubro que a história fala sobretudo da memória e da impotência diante da passagem do tempo. Com certeza escrevi o texto tendo isso em mente, mas havia me esquecido, e isso me surpreende. A educação religiosa, no entanto, está presente em todos os contos dos anos 1970.

A mudança radical acontece em 1979 com a criação de Patty Diphusa; eu não poderia ter escrito sobre essa personagem nem antes nem depois do turbilhão do final dos anos 1970. Visualizei a mim mesmo na máquina de escrever, fazendo de tudo, vivendo e escrevendo a uma velocidade vertiginosa. Encerro o século com “O último sonho”, meu primeiro dia de orfandade; quis incluir essa pequena crônica porque reconheço que suas cinco páginas estão entre as melhores coisas que escrevi até hoje. Isso não demonstra que eu seja um grande escritor; seria o caso se tivesse conseguido escrever ao menos duzentas páginas do mesmo calibre. Para poder escrever “O último sonho” foi preciso que minha mãe morresse.

Além da relação de Má educação com “A visita”, já há nestes textos muitos dos temas que aparecem e dão forma a meus filmes. Um deles é a obsessão por A voz humana, de Cocteau, que já se via em A lei do desejo, estava na origem de Mulheres à beira de um ataque de nervos, reapareceu em Abraços partidos e por fim se tornou A voz humana, com Tilda Swinton, em 2020. Em “Mudanças de gênero em demasia” também falo de um dos elementos chave de Tudo sobre minha mãe: o ecletismo, a mistura não apenas de gêneros, mas de obras que me marcaram — além do monólogo de Cocteau, Um bonde chamado desejo, de Tennessee Williams (o nome da minha produtora é El Deseo), e Noite de estreia, o filme de John Cassavetes. Tudo o que caiu em minhas mãos ou que passou diante de meus olhos foi por mim apropriado e misturado, transformado em algo meu, embora sem chegar ao extremo de León em “Mudanças de gênero em demasia”.

Como cineasta, nasci em plena explosão pós-moderna: as ideias vêm de qualquer lugar; todos os estilos e épocas convivem, não há preconceitos de gênero ou guetos; tampouco existe um mercado, apenas a vontade de viver e fazer coisas. Era o terreno fértil perfeito para alguém como eu, que queria devorar o mundo.

Eu podia ter me inspirado nos pátios de La Mancha, onde passei minha primeira infância, ou no salão escuro do Rockola, detendo-me, se necessário, nas áreas mais sinistras da minha segunda infância no colégio-prisão dos salesianos. Anos turbulentos e radiantes, porque o horror salesiano tinha como trilha sonora as missas em latim que eu mesmo cantava como solista do coro (Dor e glória). Agora posso dizer que esses foram os três lugares em que me formei: os pátios manchegos onde as mulheres faziam renda de bilro, cantavam e criticavam toda a cidadezinha; a explosiva e libertina noite madrilenha de 1977 a 1990; e a tenebrosa educação religiosa que recebi dos salesianos no começo dos anos 1960. Tudo isso está concentrado neste volume, junto com outras coisas: o Desejo não só como produtor dos meus filmes, mas como loucura, epifania e lei à qual precisamos nos submeter, como se fôssemos protagonistas da letra de um bolero.

Peraí. Esquecemos de perguntar o seu nome.

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