Trechos,
A novela de uma vida
Em ‘Meu passado me perdoa’, Aguinaldo Silva revela seu percurso marcado por reviravoltas e sua paixão pela escrita
19jul2024Um dos grandes nomes da teledramaturgia, Aguinaldo Silva rememora sua trajetória em Meu passado me perdoa: memórias de uma vida novelesca, que acaba de ser lançado pela Todavia. Na biografia, o autor de novelas como Fina estampa (2011), Duas caras (2007) e Senhora do destino (2004), narra suas passagens pelo jornalismo, suas experiências com a dramaturgia e a televisão e sua paixão pela escrita.
Nascido em Carpina, Pernambuco, em 1943, Silva se mudou para o Rio de Janeiro em 1964, atuando como repórter do jornal O Globo. Mais de dez anos depois, passou a escrever para a emissora onde se consagrou no horário nobre da televisão brasileira.
Na literatura, Silva é autor de diversos livros, entre eles os romances Vendem-se corações despedaçados (Casa de Artes, 2021), 98 tiros de audiência (2006) e Prendam Giovanni Improtta (2005), ambos pela Geração Editorial.
Em Meu passado me perdoa, ele expõe histórias que vão da cena gay do Recife nos anos 60 às baladas cariocas. Leia um trecho a seguir.
Trecho de ‘Meu passado me perdoa: memórias de uma vida novelesca’
Meus verdíssimos anos
Mais Lidas
No final dos anos 1950 havia duas turmas de pessoas, digamos assim, “diferentes”, que frequentavam as noites do Quem-Me-Quer, um jardim plantado às margens do rio Capibaribe, no Recife: as “arlecãs” e as “arlequetes”. As segundas éramos nós — meninos entre os catorze e os dezesseis anos, mas já entregues aos tortuosos prazeres da chamada vida airada. As primeiras eram os que chamávamos de “velhas”: homens gays acima dos trinta, ou seja, que já estavam na vida airada havia mais tempo e por isso, para nós — as assim chamadas “meninas” —, já eram putas velhas, ancestrais e caquéticas.
Nós, as arlequetes, na nossa inocência de trêfegos infantes, nutríamos profundo desdém pelas “velhas” arlecãs, das quais desprezávamos até mesmo o cheiro. E fazíamos questão de demonstrar isso sempre que possível. Mas eles, cultos e discretos, sob a proteção (ou o disfarce) dos seus paletós e gravatas, exibiam condescendência em relação a nós. Pois já sabiam que, se tivéssemos muita sorte e sobrevivêssemos ao ataques da Turma da Lambreta, talvez — sim, isso mesmo, talvez — um dia chegássemos à idade deles e nos tornássemos mais sábias e menos trêfegas.
Sim, porque havia um terceiro grupo de rapazes a bater ponto noturno nos jardins do Quem-Me-Quer — eram os filhinhos de papai da Turma da Lambreta, que travavam uma guerra quase mortal contra o nosso grupo tão diferente deles, pois o desvio desses rapazes de famílias tradicionais era outro: talvez por serem vítimas do tédio provocado pela vida provinciana do Recife naquela época, ou pelo excesso de regalias que as fortunas dos seus pais lhes dava, eles eram irresponsáveis, cruéis, violentos e pérfidos.Quando estacionavam no Quem-Me-Quer suas caras motos italianas — que então estavam na moda —, sabíamos que, junto com elas, o que vinha para todos nós era a mais perigosa das encrencas.
Nessas ocasiões de perigo iminente as arlecãs apelavam para a própria respeitabilidade e ficavam lá, enfiadas nos seus paletós e gravatas — falando um francês cheio de biquinhos e fingindo-se de mortas para não interferir na situação de perigo por que passava o nosso grupo. Assim, nós, as arlequetes, tínhamos que nos safar a nós mesmas. Então nos espalhávamos feito moscas a voejar em todas as direções, pois sabíamos que, se uma de nós caísse nas mãos dos chamados “lambreteiros”, o menos ruim que podia nos acontecer seria levar uma bela de uma surra ou acabar com o rosto desfigurado… O que, para pessoas que se consideravam para sempre lindas, verdadeiras rainhas da eugenia — como era o nosso caso —, seria um desastre de consequências irreparáveis.
Lembro-me como se fosse hoje das muitas vezes que corri pela avenida Guararapes com os lambreteiros no meu encalço, entrei nos prédios dos Correios cujos meandros conhecíamos nos mínimos detalhes e, depois de atravessar os seus longos corredores em geral desertos àquela hora, lança-me de uma porta que parecia se abrir para um abismo, mas na verdade ia dar num caminhão que, lá embaixo, tinha montes de sacos cheios de cartas já expedidas, sobre os quais — como se caísse em cima de um colchão de macias plumas — eu aterrissava.
Ou de uma vez em que meia dúzia de nós estávamos na praia de Boa Viagem apenas de sunga quando os lambreteiros chegaram e, sem que ao menos pudéssemos pegar nossas roupas amontoadas ali do lado, saímos todos a correr (como sempre, cada um para um lado). Eu atravessei a rua em meio aos carros, entrei no Edifício Califórnia — no qual, tempos depois, um gay chamado Boni seria morto em casa com 44 facadas — e, perseguido por um dos lambreteiros e aos gritos de “socorro”, subi os catorze andares sem que ninguém abrisse se quer uma porta até que, na cobertura, fiquei acuado.
Foi Otacília, nome de batismo Fernando, quem teve a coragem de subir no nosso encalço e lá em cima, mesmo correndo o risco de me substituir como vítima e ser atirada de uma varanda, conseguiu convencer o lambreteiro a me deixar em paz, pois — ele repetiu esse argumento sem sentido várias vezes — eu “não passava de um menino sem a menor noção de higiene e completamente abestalhado”. Enquanto isso, na praia, outro
Fernando, o Maysa, junto com Virgínia e Brigitte, nomes de batismo Wilson e Expedito, resgatavam minhas roupas do mar onde os lambreteiros as tinham lançado e já estavam sendo levadas pelas ondas para bem longe.
Não se pode dizer que as arlecãs lamentavam a perseguição implacável que os lambreteiros exerciam contra nós. Uma delas, de nome Jairo, mas batizada por nós de “Areia Mijada”, tinha a opinião mais radical de todas quanto a isso: dizia que, por sermos nós sempre tão escandalosas, atentávamos contra a moral e os bons costumes das pessoas que também frequentavam o Quem-Me-Quer e por isso, sim, aqueles rapazes de boa família tinham razão, todas nós merecíamos ser severamentcastigadas e talvez até mortas depois de ter os lindos rostos jovens devidamente desfigurados.
Peraí. Esquecemos de perguntar o seu nome.
Crie a sua conta gratuita na Quatro Cinco Um ou faça log-in para continuar a ler este e outros textos.
Ou então assine, ganhe acesso integral ao site e ao Clube de Benefícios 451 e contribua com o jornalismo de livros independente e sem fins lucrativos.
Porque você leu Trechos
O legado armorial em ‘7 cordéis brasileiros’
Novo lançamento de Luiz Antonio Simas é coletânea de cordéis ilustrados que retratam realidades sociais e tradições brasileiras
DEZEMBRO, 2024