Poesia,

O sentido poético da liberdade

O filósofo e escritor Rodrigo Suzuki Cintra analisa um poema de Camila Assad sobre liberdade

27set2019

Porque hoje é sábado, a revista dos livros convida um poeta para recomendar outro aos nossos leitores. O filósofo e escritor Rodrigo Suzuki Cintra, que acaba de lançar o livro Geometria de cosmos (Ateliê Editorial), indica o poema “XIII”, do livro eu não consigo parar de morrer (Urutau), publicado neste ano por Camila Assad. 

XIII

você deve saber que a palavra liberdade soa tão bela
como a imagem de pássaros voando
mas não é real
[os pássaros são reais, mas ninguém é livre,
nem aquele andarilho da estação rodoviária
que flana por aí há doze anos e meio]

*

sobre liberdade:
você pode ter certeza aos 15,
suspeitar aos 18,
ter alguma convicção aos 23
mas já aos 28 vai saber que é bobagem

*
aliás, é tudo bobagem

*

na china, veja bem, não existem biscoitos da sorte, para o azar dos chineses, isso é coisa de americano, assim como o hot dog, os cupons de desconto, a manteiga de amendoim na torrada pela manhã, os suv, o prozac e a felicidade forçada, aqui no hemisfério sul é tudo pecado, mas são facilmente perdoáveis. eu tenho a memória falha cometo um ato falho há falhas no sistema eu falho o tempo tentando te explicar essas coisas. você quer voar quer amar quer gozar comer hot dog dentro do suv tomar prozac sorrir forçado, mas se lembre que liberdade é só uma palavra bonita.

“Estruturado em quatro estrofes intermediadas por misterioso asterisco, o poema ‘XIII’ de Camila Assad faz parte da sessão ‘movimentos induzidos pela ação do vento’ de seu último livro, lançado nesse ano, intitulado ‘eu não consigo parar de morrer’”, escreve Cintra.

"Se por um lado, o argumento central do poema proclama ser a liberdade apenas ‘uma palavra bonita’, ou seja, o conteúdo temático do escrito aponta em todas as estrofes para a impossibilidade real da liberdade, por outro, o poema da autora é absolutamente livre em sua forma. Métricas e rimas ordenadas, número de versos por estrofe, sistemática de pontuação, coesão estilística entre as partes do poema: tudo isso é feito de maneira absolutamente libertária, meio propositalmente desregrada. Se o conteúdo do poema nos informa que a liberdade é impossível e, no fundo, ‘bobagem’, a forma liberta a poeta e o leitor porque paradoxalmente possibilita o contrário do que o argumento do texto proclama.

Na primeira estrofe, Camila opera uma distância entre a ‘palavra’ liberdade, ‘que soa tão bela’, e a ‘realidade’ da liberdade. A ‘palavra’, signo, se por um lado é bela, não dá conta do real, significante. Então, pássaros voando existem, mas não há liberdade na correspondência entre eles existirem e serem livres.

Já na segunda estrofe, a autora faz com que o leitor acompanhe uma dupla gradação associativa. Descreve a relação entre idades e percepções da ideia de liberdade. Assim, ‘15’, ‘18’, ‘23’ e ‘28’ remetem gradativamente a ‘certeza’, ‘suspeita’, ‘convicção’ e, finalmente: ‘bobagem’. A palavra ‘bobagem’, inclusive, organizará a terceira estrofe, composta de apenas um verso. Um quase-aforismo, quase leitura sábia da vida – mas, às avessas! E é nessa virada da segunda estrofe para a terceira que percebemos que o significado da palavra liberdade também está sob regime de risco nesse poema.

A última estrofe elenca, em uma prosa poética própria, elementos de uma liberdade meio medíocre, envolta em felicidade de se comer hot dogs em carros suv. Um saber crítico e ácido a esse tipo de liberdade aparece e a autora renova o compromisso, estabelecido desde o começo do texto, de demonstrar poeticamente a insuficiência da palavra (signo) em relação as coisas reais (significantes), onde o que se embota é o sentido da liberdade (significado). Os asteriscos a separar as estrofes vem bem a calhar para a estruturação do poema. Poema-forma que contradiz seu próprio conteúdo e possibilita liberdade, pelo menos no fazer artístico, muda de forma a cada estrofe. Como se os movimentos de estilo e ideias, a cada passagem dos asteriscos, essas brisas de ocasião, produzissem ‘movimentos induzidos pela ação do vento’. E, claro, se deixar levar poeticamente pelo rumo dos ventos bem pode ser um princípio, talvez mera inclinação, de liberdade artística."

Camila Assad nasceu em Presidente Prudente (SP) e está morrendo desde 1988. É autora de Comunonimbus (Quintal Edições, 2017) e foi contemplada pelo ProAC/SP com a obra Desterro, a ser lançada ainda neste ano. Rodrigo Suzuki Cintra é doutor em direito e filosofia pela Universidade de São Paulo e pós-doutor pela Universidade de Coimbra, em Portugal. Leciona na Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie e da Universidade São Judas Tadeu. Publicou, além de Geometrias de cosmos, o livro Liberalismo e Natureza: Propriedade em John Locke, ambos pela Ateliê Editorial.