Editora 451,

Meus 120 dias com o marquês

Tradutora de clássico da literatura libertina narra as dificuldades para transpor a obra maior de Sade

24abr2018 | Edição #13 jul.2018

Vivemos, à beira-mar, num verdadeiro deserto de letras quando o assunto é oceano. Por isso, é oportuna o lançamento da edição brasileira de A Terra é azul, livro da bióloga marinha Sylvia Earle, publicado em 2009 pela National Geographic Society.

Sylvia Earle só dispensa apresentações para os poucos letrados que se dedicam a evitar o iminente colapso da etnobiodiversidade nos mais de 3,5 milhões de quilômetros quadrados do Atlântico sob soberania econômica exclusiva do Brasil. Para os demais, é importante ressaltar que não se trata de uma autora ordinária escrevendo sobre um tema extraordinário. Sylvia é uma cientista marinha pioneira, certamente a mais influente do planeta.

Sua carreira como ficóloga, ou estudiosa das algas, ganhou impulso meteórico a partir da década de 70, quando liderou uma equipe 100% feminina em um ambicioso projeto de residência submarina. No auge da corrida espacial, a General Electric e o governo dos Estados Unidos estavam interessados em testar equipamentos e avaliar como seria a vida em confinamento, sob ambientes extremos. Para isso, construíram uma “estação espacial” submarina nas Ilhas Virgens.

O oceano é o espaço sideral no quintal de casa: desconhecido, extremo, irrespirável. Com sua dupla paixão pela ciência e pela tecnologia de exploração submarina, compartilhada com o ex-marido e a filha, Sylvia rompeu inúmeras barreiras no universo masculino da ciência, da engenharia, do empreendedorismo e da política. Desceu sozinha, em um traje blindado, a quatrocentos metros de profundidade, participou da concepção e dos testes de submersíveis tripulados abaixo dos mil metros, fundou empresas, criou e integrou diversas ongs ambientalistas e foi estrela da revista Time, das conferências ted e da Netflix.

Também atuou como cientista-chefe da agência norte-americana do clima e oceano, a poderosa nooa (National Oceanic and Atmospheric Administration), no governo de Bush- pai — a despeito de ser uma crítica feroz dos impactos da indústria do petróleo. Por tudo isso, ao imergir no “mundo azul” de Sylvia constatamos que ele está para o oceano assim como “o mundo redondo” de Pelé está para o futebol — ou seja, nem sempre as coisas são tão azuis nem tão redondas quanto esses craques gostam de pintar.

Sylvia Earle no submersível Deep Worker

Biodiversidade

Obra de divulgação científica, e por isso longe de ser um tratado de oceanografia, o livro contextualiza, com sólida base documental, a trajetória de declínio dos ecossistemas oceânicos a partir da relação da sociedade pós-industrial com a biodiversidade marinha. O fio condutor é a interdependência entre a existência humana e a saúde do oceano, provedor não-tão-incansável de rotas de comércio, combustíveis, matérias-primas, alimento e de boa parte do oxigênio que respiramos. Entre os capítulos dessa história está a carnificina promovida pela caça indiscriminada às baleias e outros animais gigantes, muitos deles já extintos, o colapso recente dos estoques pesqueiros e o entupimento do oceano por lixo plástico, narrados em paralelo às aventuras da autora, tanto submarinas como as que viveu em mesas de negociação.

De modo suave e acurado, o autora faz uma introdução aos principais avanços nas ciências do mar e à relação estreita entre atmosfera e oceano.

Os céticos das mudanças climáticas antropogênicas, que se regozijam com a última onda de frio siberiano na Europa, têm no livro uma excelente oportunidade para revisar sua base factual e aprender que o oceano, destino final dos gases do efeito estufa, está cada vez mais quente e ácido, pois absorve a maior parte das emissões de dióxido de carbono (co2).

Estão dadas as condições para o segundo efeito do co2, a acidificação do oceano, fenômeno que compromete uma longa lista de processos fisiológicos e ecossistêmicos, tais como a biomineralização do carbonato de cálcio (conchas, cascas e esqueletos!). Em resumo, co2 + h2o = h2co3 (ou ácido carbônico).

Fascinação

Otimista incansável, a partir da segunda metade do livro a autora tira o foco desse quadro de melancolia e desgraça para apresentar um cardápio de possibilidades menos sombrias (e pouco prováveis). Antes de partir para o indigesto tema da governança global sobre o oceano, Sylvia contagia o leitor com a sua fascinação pelo rompimento das barreiras tecnológicas que nos impedem de conhecer os dois terços do planeta que estão sob água salgada gelada, alta pressão, e escuridão perpétua. O tema flui gostosamente em meio a aventuras com pilotos de submarinos nucleares e conversas com concorrentes russos que fincam bandeiras nas profundezas do Polo Norte.

Quem escreveu esse texto

Rosa Freire d’Aguiar

Tradutora, escreveu Memória de tradutora (Escritório do Livro).

Matéria publicada na edição impressa #13 jul.2018 em junho de 2018.