A Feira do Livro,
Encontro entre Geni Guimarães e Eliane Marques tem emoção, poema inédito e memórias de família
Representantes de duas gerações de ficcionistas negras também falam de racismo e legado na mesa Louças de família
10jun2023 | Edição #70Numa mesa literária carregada de emoção, as escritoras Geni Guimarães e Eliane Marques falaram sobre infância, família, processos criativos e leram trechos de alguns de seus livros na manhã deste sábado, 10, n’A Feira do Livro.
Representantes de duas gerações de escritoras negras, as ficcionistas iniciaram a conversa, mediada pela professora de literatura e também autora Luana Chnaiderman, falando sobre suas infâncias, cujas memórias estão presentes em poemas e romances.
“Desde criancinha, eu fazia questão de aparecer em todos os lugares. Sabia que o negro tinha que chamar atenção para existir”, disse Guimarães, que recitou um poema sobre a infância. A escritora paulista lembrou ainda das dificuldades para estudar, numa família de nove irmãos que viviam na roça, e da alegria da família quando ela se formou professora.
A escritora Geni Guimarães [Sean Vadaru/Divulgação]
“No dia da minha formatura, minha família inteira se levantou e me aplaudiu”, disse. “Meu pai me pediu o diploma e disse que queria dormir com ele debaixo do travesseiro para sonhar sonhos bonitos.”
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Natural de Sant'Ana do Livramento, na fronteira do Brasil com o Uruguai, Eliane Marques, autora de Louças de família (Autêntica), romance que deu nome à mesa, relembrou suas “ancestras”, como se referiu às suas ancestrais. “Minha trajetória começa bem antes de mim, com minhas ancestras, como se diz na fronteira. Minha avó lia enquanto tirava o pó das casas dos ricos”, disse.
Nova linguagem
A escritora gaúcha disse se inspirar no poeta martinicano Aimé Césaire (1913-2008) — que “rasurava” o francês do colonizador em suas obras — em seu projeto literário, que adota expressões de origem iorubá e neologismos. “Tenho um projeto de criar uma língua nova em meus textos. Primeiro escrevo e vejo se é um poema ou se vai pra outro lugar.”
Com parte da família na plateia, Geni Guimarães homenageou vários familiares, tema de parte de sua obra. Recitou um poema feito para a mãe, benzedeira, em que afirma que ela era “tão inocente que até acreditava que a escravidão acabou”. “A gente sabe que não acabou, a gente sente o racismo até hoje”, disse. Na sequência, leu um poema inédito, que “nasceu ontem”, chamado “Serviço de preto”.
A ganhadora de um prêmio Jabuti com o autobiográfico A cor da ternura (Quinteto) também se emocionou ao falar de ler um poema que fez para a irmã “especial” com quem vive, Iracema. “Me perdoem, eu sou muito emotiva. É que ela é muito linda”, disse. “Esses dias fomos dormir e eu disse: ‘Cema, dorme com os anjos’. E ela respondeu: ‘Geni, não cabe aqui.’ Não é coisa de Deus?”
A escritora Eliane Marques [Sean Vadaru/Divulgação]
Eliane Marques também leu um trecho de Louças de Família e pediu licença para ler um poema de Geni Guimarães, “Constatação”, do livro Terceiro filho (Malê). Ao responder a uma pergunta da plateia sobre a presença da religiosidade em sua obra, a escritora disse preferir falar em tradição de matriz africana.
“Essa tradição nos enlaça, ela é responsável pela possibilidade de mudança, de criação de um novo pacto social que envolve negros e não negros”, disse. “Enquanto seguirmos nos negando como pertencentes a isso, vamos continuar matando, morrendo, passando fome nas ruas.”
A Feira do Livro acontece de 7 a 11 de junho na praça Charles Miller, no Pacaembu, em São Paulo.
Matéria publicada na edição impressa #70 em maio de 2023.