A caixa de livros “Imagens da Mulher no Ocidente” (Edusp), de Isabelle Anchieta, contém os livros “Bruxas e Tupinambás Canibais”, “Maria e Maria Madalena” e “Stars de Hollywood”. Conheça a seguir algumas das imagens e as histórias por trás delas. (Jules Josef Lefebvre, “Maria Madalena na caverna”, 1876)
De virgem a carnal, a história social da imagem de Maria, entronizada no momento da afirmação da nova religião católica em Constantinopla, é capaz de assumir diversas formas, mantendo um equilíbrio entre o natural e o sobrenatural. Ao contrário das bruxas e canibais diabólicas, a imagem de Maria passa por um processo de humanização. Mas até determinado limite, e um limite inegociável: sua sexualidade (ou a ausência dela). A partir do século 14, consagram-se as imagens de Maria que exibem sua cumplicidade com o menino Jesus ao amamentá-lo, como na figura de Di Bartolo. O aleitamento cria um vínculo carnal com o filho e aproxima ambos da condição humana. (Giorgio di Andrea di Bartolo, “Madona da humildade” ou “Madona do leite”, 1412)
Entre os elementos que compõem o estereótipo de Maria, a cor da pele e a etnia são aqueles que sofreram maior silenciamento. Esta imagem da virgem polonesa que se encontra no convento de Jasna Gora, documentada no século 15 e descoberta supostamente por Santa Helena em Nazaré, é uma das primeiras virgens representadas com a pele escura. (Autor desconhecido, “Virgem de Czestochowa”, s/d)
Escrita pelo médico e cartógrafo alemão Hartmann Schedel sob o patrocínio de dois ricos comerciantes alemães, “A crônica de Nuremberg” circulou intensamente na Europa e na América. O livro pretendia contar a história do mundo por meio de uma amálgama de fatos, dados geográficos e relatos bíblicos constitutivos da ordem de crenças do período. Dentre as mais de 1800 imagens, traz esta de uma mulher sendo raptada pelo diabo em um cavalo — em alusão ao mito de Perséfone e Hades —, reforçando o estereótipo da bruxa. (Ilustração de Michael Wolgemut no livro “A crônica de Nuremberg”, de Hartmann Schedel, 1493)
Maria Madalena representa uma nova fase da Igreja romana e uma mudança de mentalidade da sociedade, no momento em que o pecado passava a ser compreendido como o fundamento carnal do ser, e o arrependimento, o caminho da salvação. Sua imagem é um passo em direção a uma profunda mudança das relações sociais, geradora do individualismo e do humanismo modernos. Não por acaso, é a prostituta que toma o lugar central ao pé da cruz, antes ocupado por São Francisco de Assis e São Domingos, como se vê nesta figura. (Albert Dürer, “Crucificação”, 1495-1496)
No início do século 16, as bruxas eram representadas manuseando não um caldeirão canibal, mas pequenas panelas e vasilhas, como nesta imagem. Sua função, acreditava-se, era fazer poções mágicas, destinadas a provocar doenças, abortos, metamorfoses e morte. A imagem do caldeirão só circularia a partir de 1557, inserindo-se no imaginário europeu após a divulgação de imagens da obra do aventureiro mercenário alemão Hans Staden, que passou nove meses escravo dos índios tupinambás no Brasil e publicou um relato de suas experiências. (Xilogravura de Hans Baldung Grien, “As bruxas”, 1510)
No século 16, artistas e editores começaram a encontrar na temática das bruxas um mercado potencial. Nenhuma figura deleitava mais o público do que elas, na medida em que reuniam, em um só personagem, todas as notícias de maior sensação dos panfletos: sexo, traição, violência e o sobrenatural. Neste panfleto de 1575, no texto que acompanha a imagem, a mãe é acusada de iniciar a filha nas artes sexuais, e ambas são acusadas de se casarem com o demônio durante uma festa com excesso de bebida, comida e música. São julgadas e mortas na fogueira. (Panfleto da coleção Wickiana, 1574)
As imagens das bruxas e das índias tupinambás canibais brasileiras dos séculos 15 e 16, representadas nesta imagem, têm como denominador comum a construção da sobre-humanidade das mulheres. Elas estão, simultaneamente, acima e abaixo dos homens. Não se trata de misoginia pura e simples, mas de um mecanismo de marginalização daquilo que fascina e que não está sob domínio. São mulheres “diabolizadas” por agirem contra uma ordem tida como natural. A peste, a fome e a violência encontram uma culpada: a mulher que não atende às normas sociais “naturais”. Ela irá pagar com a vida pelos males humanos e pelas tragédias naturais em um dos mais importantes holocaustos não quantificados da história. ( Detalhe de ilustração da obra de Théodore de Bry, “América terceira parte”, 1592)
O nu e a prostituta como tema se tornam emblemáticos para a compreensão das transformações sociais em curso na modernidade, quando aumenta a incredulidade popular no poder divino da nobreza, que coloca em risco posições sociais fixas. Isso se traduz nas imagens cada vez menos idealizadas do ser humano, como naquelas de Maria Madalena nos séculos 18 e 19, nas quais o corpo não mais se aproxima e nem negocia com os tradicionais símbolos religiosos. Na imagem de Lefebvre, sem uma função religiosa clara, o suporte da imagem passa a ser o próprio corpo da mulher. (Jules Josef Lefebvre, “Maria Madalena na caverna”, 1876)
Com o estereótipo virginal e inocente dos primeiros anos do cinema concorria o de uma mulher com carga amoral, sexual, maligna e destruidora: a mulher fatal. Theda Bara (um anagrama de “arab death”, morte árabe) foi uma das atrizes que inaugurou a categoria das “vamps” hollywoodianas e a transbordou também para fora das telas: ficou conhecida por dar entrevistas acariciando uma cobra e usar maquiagem azul-escura e figurinos ousados e transparentes. Seus filmes apresentavam lares desfeitos e homens cegos de amor, levados quase sempre à ruína social e à morte. (Cartaz original do filme “A bela russa”, com Theda Bara, 1915)
A partir dos anos 40, por um suposto exotismo e porque os EUA resolvem entrar na Segunda Guerra Mundial, restringindo a circulação de seus filmes, a América Latina é cenário de diversos filmes. A estrela desse momento é Carmen Miranda, que explode em cores, lantejoulas, sorrisos largos e piscadelas marotas — uma imagem perfeita para o cinema que estava aprendendo a usar as cores com o advento do Technicolor. (Fotograma da abertura de “Entre a loura e a morena”, com Carmen Miranda, 1943)
O cinema criou diversos estereótipos femininos, entre eles as mulheres que aparentam ser cruéis e se revelam boas no final — as “bad good girls”. Um célebre exemplo é Rita Hayworth como Gilda, uma mulher que simula um comportamento infiel e amoral para se vingar do homem que ama. Ava Gardner repete a fórmula cinco anos depois, interpretando Pandora Reynolds em “Os amores de Pandora”. (Fotograma de “Gilda”, com Rita Hayworth, 1946)
Depois, numa nova fase de “sexualização da cultura”, quem rouba a cena é Marilyn Monroe, com uma visualidade feminina familiar à das “pin-ups”, mulheres sensuais e ingênuas que são o símbolo das artes gráficas nos anos dourados. Os desenhos, como este, repetem fórmulas visuais como a da saia levantada pelo vento na cena que celebrizou Marilyn em “O pecado mora ao lado”, de 1955. (Gil Elvgren, Mirando alto, 1959)
Personagens livres, rebeldes e sexualizadas como Marilyn Monroe não reinaram sozinhas: Elizabeth Taylor, por exemplo, personificou a mulher que consegue se impor por sua determinação e beleza. “Cleópatra” explorou sua sensualidade como nenhum outro filme, com nus parciais, decotes e transparências, e reforçou sua aura de mistério e poder. Foi a produção cinematográfica mais ousada e cara feita até então. (Fotograma de Cleópatra, com Elizabeth Taylor, 1963)
Em “Bonequinha de luxo”, de 1961, Audrey Hepburn sintetiza a mulher elegante que finge ser de uma classe social superior à sua, demonstrando o poder da dissimulação das imagens na representação de classes e na ascensão social. A mais radical transformação de sua imagem, no entanto, acontece em “Minha bela dama”, onde passa de uma florista de rua suja, com linguajar vulgar, para uma mulher que é confundida com uma duquesa. O filme foi adaptado do livro “Pigmaleão”, do irlandês George Bernard Shaw. (Audrey Hepburn como Eliza Doolittle em “Minha bela dama”, 1964)