Infâncias em conflito

Rebentos,

Infâncias em conflito

Em ‘Nicky e Vera’, o premiado ilustrador Peter Sís narra o encontro entre um herói silencioso e uma das crianças salvas por ele às vésperas da Segunda Guerra

11nov2024
Ilustrações de Peter Sís (Divulgação)

Na maioria das vezes, guerras são narradas sob o prisma dos homens: aqueles na linha de frente das batalhas, os negociantes em cúpulas, revolucionários, combatentes e até os organizadores dos relatos. Mas assim como historiadores e jornalistas têm resgatado a presença das mulheres nesses capítulos, o mundo vem discutindo o quanto os períodos de tensão abalam crianças e seus futuros, principalmente acerca dos conflitos em curso no século 21, como a guerra entre Rússia e Ucrânia, os embates na República Democrática do Congo e o conflito Israel-Hamas. Seja na vida real ou na literatura, suas histórias costumam se misturar às de outros adultos que, como sempre era de se esperar, ajudam a garantir sua segurança. Um dos protagonistas-título de Nicky e Vera: o discreto herói do Holocausto e as crianças que ele salvou (Companhia das Letrinhas), do escritor e ilustrador tcheco Peter Sís, dá um passo a mais nessa função.

O escritor tcheco Peter Sís (Reprodução)

No livro, Sís narra o final do ano de 1938, às vésperas da invasão de Praga pelo regime nazista, quando o jovem inglês Nicky Winton se torna responsável por, sigilosamente, organizar a retirada de 669 crianças da então Tchecoslováquia, por meio de viagens de trens que as levariam a abrigos e lares adotivos no Reino Unido. O feito heroico se manteve em segredo até 1988, quando a BBC o convidou a contar a história. Só ao final do programa That’s Life, Nicky descobriu que toda a plateia era composta pelos pequenos que salvou, já adultos. Entre uma das “crianças de Winton”, estava a escritora tcheco-britânica e judia Vera Gissing, que contou em uma série de entrevistas e livros a história da retirada, o retorno à Praga e a perda dolorosa da maioria de seus familiares.

Ricamente ilustrada por Sís, que baseou sua pesquisa gráfica e textual em documentos históricos e nos relatos de familiares de Nicky e Vera, a história entrelaça o destino dos dois e parece afastá-los da sombra onipresente dos conflitos, do medo e da morte. Nessa entrevista para a Quatro Cinco Um, o vencedor do Prêmio Hans Christian Andersen comenta sobre a compreensão infantil das guerras, fala dos heróis e heroínas do cotidiano e da literatura como saída para a barbárie.

Afinal, quem são Nicky e Vera?
Nicholas Winton era um jovem inglês que veio a Praga nas férias de Natal e Ano Novo de 1938 para se encontrar com um amigo. Ele percebeu que as criancinhas estavam em perigo porque a guerra podia começar a qualquer momento. Assim, providenciou o transporte ferroviário de 669 crianças para a Inglaterra, o único país que concedia vistos para crianças menores de dezessete anos naquela época. E Vera Gissing era uma garotinha tcheca de origem judia que foi inscrita no trem pela mãe “por precaução”, como ela dizia.

De onde surgiu a inspiração para contar essa história?
A viagem de trem do livro aconteceu em 1939. Nicholas Winton não falou sobre isso até 1989, quando estava em um famoso programa de televisão [That’s Life, da BBC]. A história era quase perfeita demais para ser contada. Eu não sabia como fazer isso até ouvir falar do livro de Vera Gissing (escrito antes de ela saber sobre os feitos de Winton). Minha esposa teve a ideia de juntar as duas histórias. Ela é editora de filmes e uma pessoa muito inteligente.

Como foi escrever sobre um dos episódios mais dolorosos dos últimos tempos para o público infantojuvenil? Quais são os impactos dos pequenos terem acesso a temas como esses e suas complexidades?
Eu não vejo como uma história triste, mas como a história de alguém que pode ajudar — fazendo uma coisa boa na vida sem pensar em reconhecimento. Ele salvou todas essas crianças simplesmente porque decidiu agir como um herói silencioso… Só quando estava terminando o livro que me dei conta de que a maioria dessas crianças perderam suas famílias.

Quanto ao tema mais profundo, é difícil mesmo no nosso conceito de histórias infantis. Queremos que as crianças sejam felizes e inspiradas, mas a partir de uma certa idade temos de dizer “Cuidado, existem obstáculos nesta jornada chamada vida”. Tinha em mente que estava tentando fazer livros para crianças pequenas e também para os mais velhos — como na história de Galileu, em Starry messenger, ou em The wall: Growing up behind the iron curtain (ambos ainda sem tradução para o potuguês). Quero informar e inspirar. Mas realmente é difícil.

Embora seja um tema difícil, você traz delicadeza ao tratar de guerra e Holocausto. Como a literatura infantojuvenil pode falar sobre conflitos sem pesar totalmente o tom?
Boa pergunta. Não posso fingir que sei. Quando trabalho em meus projetos mais complexos, acho que a convicção e o entusiasmo ajudam. Acho que tento usar a parte ilustrada do livro em um equilíbrio cuidadoso com um texto simples. Algumas crianças gostam de acompanhar o diálogo, mas acho que o mundo está mudando com as telas e o fluxo constante de informações.

Como as crianças deste conflito no século 20 se relacionam com as crianças que vivenciam os atualmente em curso — como a guerra Ucrânia x Rússia, os conflitos na República Democrática do Congo e a Guerra Israel-Hamas?
Existe uma ligação entre os conflitos de hoje e os do passado. A estação de trem em Praga onde as crianças dos comboios de Nicholas Winton partiam é a mesma onde chegam agora as crianças ucranianas. Um dos filhos de Winton, Lord Alfred Dubs, está auxiliando no Parlamento Britânico os refugiados a irem para o Reino Unido. No entanto, não sei neste momento como poderia sequer começar a abordar um projeto sobre o Congo (e as crianças que lutam) e os conflitos Ucrânia-Rússia e Israel-Hamas. Mas todos esses pequenos leitores merecem explicação, perspectiva emocional e de alguma forma uma ideia de solução e paz. Especialmente porque as crianças são a única esperança para todos nós.

O que significa ser um herói nessa situação? E por que você o chama de ‘discreto’?
Acho que todos nós podemos ser heróis. Pequenos heróis fazendo pequenas coisas. Você dá um copo d’água para alguém ou leva alguém para a emergência, por exemplo. Nicholas Winton era jovem e enérgico, viu muitas crianças em perigo, muitas instituições de caridade diferentes fazendo listas longas, mas sendo lentas. Então ele traçou o próprio plano e o executou. Quando terminou, ele sentiu que havia feito sua parte. Sempre fico surpreso ao ver pessoas ajudando em todo o mundo, em situações de fome, inundações, desastres. Tenho certeza de que existem muitos heróis sobre os quais nada sabemos.

Dentre todas as crianças, por que a história de Vera Gissing foi a que mais chamou a sua atenção?
Pearls of Childhood: The Poignant True Wartime Story of a Young Girl Growing Up in an Adopted Land (sem tradução para o português), de Vera Gissing, foi um livro que nos revelou muita coisa. É sobre sua infância feliz e ensolarada até a guerra começar. Ela não sabia nada sobre esse lado ruim do mundo até os nove anos. O fato de ser judia não era importante na Tchecoslováquia antes do conflito. E as pessoas não acreditavam que Hitler cruzaria a fronteira. A pequena Vera — graças à mãe — embarca no trem apenas algumas semanas antes [da invasão]!

Tive acesso a outros livros dos chamados “filhos de Winton”. A maior parte deles queria ajudar outras pessoas depois que cresceram.

Como foi trabalhar nas ilustrações? Você pesquisou referências da época, os acervos das famílias dos dois protagonistas e seus contemporâneos?
Eu sabia que a parte da história de Nicholas seria mais discreta, sem muitos altos e baixos emocionais, enquanto Vera tinha que ser mais infantil como os desenhos de criança — que são impossíveis de imitar — então “criei” o mundo de Vera. Também consultei-a através de sua filha (o mesmo com a filha de Nicholas Winton) e todos concordaram.

Que livro você gostaria de ter lido na infância?
Eu gostaria de ter lido O ursinho Pooh, de A. A. Milne, As aventuras de Tintim e Babar, A revolução dos bichos, Alice no País das Maravilhas, os livros de Roald Dahl, todos esses livros sobre os quais não sabíamos nada porque vivíamos atrás da “Cortina de Ferro” e eram considerados “antissocialistas”, ou talvez ninguém tenha pensado em trazê-los para Praga.

Como podemos incentivar o hábito de leitura nas crianças e jovens?
Isso eu gostaria de saber. Mas acho que as crianças e jovens devem procurar um momento mais tranquilo e reflexivo, e fazê-lo quase como uma meditação.

Quem escreveu esse texto

Jaqueline Silva

É estudante de Jornalismo na ECA-USP e assistente editorial na Quatro Cinco Um.

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