Criançada antirracista

Literatura infantojuvenil, Rebentos,

Criançada antirracista

Como uma viagem pela África, infantojuvenil da escritora e professora Lavínia Rocha questiona os estereótipos sobre o continente africano em sala de aula

26maio2025

Um ditado africano diz que o eco das primeiras palavras fica sempre no coração. Ainda que existam mil interpretações acerca dessa frase, a mais comum é a de que toda palavra seguida da outra e da outra tem importância e capacidade de influenciar e marcar profundamente a memória e o sentimento de quem as ouve, sejam elas positivas ou negativas. É por isso também que a personagem da professora de O que você pensa quando falo África? (Yellowfante) se esforça muito para recomeçar a conversa do zero com seus alunos a respeito do que entendem sobre o continente africano.

É assim que se transforma para sempre um coração — ou inúmeros, como poderia dizer a professora e escritora Lavínia Rocha, que ficcionaliza o experimento que fez com os alunos do quinto ano, em 2022, no qual trazia “um antes e um depois” ao ensiná-los sobre a África.

Em entrevista para a Quatro Cinco Um, a escritora mineira conta sobre o projeto que transformou o conhecimento de seus alunos (e o próprio), formas de pensar a educação antirracista nas escolas e o compromisso do país em honrar as histórias afro-brasileiras e indígenas desde a infância de seus cidadãos.

A escritora e professora mineira Lavínia Rocha (Rafaela Perdigão/Divulgação)

Como nasceu O que você pensa quando falo África?

A ideia do livro foi trazer o episódio do vídeo, que foi um projeto que desenvolvi com os meus alunos em 2022 e em 2024, de forma que outras crianças pudessem viver a mesma experiência. Um professor postou no antigo Twitter um quadro escrito ‘África’ com um antes e um depois da imagem que seus alunos tinham sobre o continente. Pensei em fazer o mesmo.

A partir de um conto que falava dos baobás e da tradição oral, desenvolvi com um professor de língua portuguesa o projeto “África: um continente diverso”. Quando postei, o vídeo viralizou e atingiu muitas pessoas, que queriam que eu explicasse como foi o processo de mudar, de uma maneira tão profunda, a imagem que as crianças tinham sobre a África. Por isso, o livro.

Como foi aprender e ensinar mais sobre o continente africano?

Pensando na minha experiência universitária na UFMG como exemplo, é interessante que tenhamos somente a matéria História da África I, e que só passou a ser oferecida, se não me engano, entre 2009 e 2011.

Como só estudei o período pré-colonial, tive de sentar e estudar para poder ensinar para os meus alunos. Foi divertido, mas é, ao mesmo tempo, muito triste pensar que não tive essas disciplinas na faculdade e na escola.

O que você, quando criança, pensava quando diziam ‘África’?  

A minha ideia não era tão diferente da que os meus alunos tinham. Lembro muito daquelas frases como “Você tem que comer, tem muitas crianças passando fome na África e você está desperdiçando comida”. Se a minha professora na época tivesse feito essa atividade, eu teria dado as mesmas respostas cheias de estereótipos e depois provavelmente teria tido a mesma surpresa que os meus alunos.

Como foi contar sobre os povos iorubás, diáspora, o Antigo Egito, a ancestralidade e a pluralidade cultural africana?

Há muitas diferenças dependendo do povo que você trabalha. Falar dos iorubás, por exemplo, é enfrentar muito racismo religioso dentro das escolas.

O Egito, por fazer parte da cultura pop, é mais conhecido, mas sempre há uma criança que pergunta: “Mas o Egito fica na África?”. Eles costumam ter a ideia de um país branco, mas sabemos que eles não eram europeus brancos, como costumam ser representados, por exemplo, nas novelas bíblicas.

Gosto de levar essa discussão para os alunos e pensar como essa ideia colonial do Egito deturpou o que a nação foi no passado. Dessa discussão, posso levá-los a outras, como o Machado de Assis, que por muito tempo foi embranquecido.

Como você enxerga os impactos dos pequenos lerem obras com temas mais complexos?

O complexo e o difícil fazem parte da vivência da criança. Negar esses temas a elas é negar a história e a tentativa de reparação do que nos foi roubado e do que merecemos saber. E as crianças são ótimas e muito boas em entender.

De que outras formas podemos pensar a educação antirracista nas escolas?

Eu utilizo música, dança, teatro, pintura, esculturas, literatura etc. Mas tenho visto o trabalho de professores que vão por outros caminhos. Uma professora de matemática que conheço fez uma prova com temas do continente africano, em que elencou iniciativas espalhadas pelos países, acompanhadas de problemas matemáticos.

Essa é uma forma, pois as leis que tornam obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e brasileira em todas as instituições de ensino fundamental e médio no Brasil preconizam que esse ensino é obrigatório em todas as matérias e não somente nas disciplinas de história, arte e literatura.

Como foi pensar e trabalhar nas ilustrações com a Letícia Moreno?

Queria que as ilustrações representassem a diversidade de forma geral. Pensamos na representação de alunos com deficiência, alunos com um cordão de girassol (que representa as deficiências ocultas ou não visíveis) e os alunos com autismo. Também há crianças brancas, negras e indígenas. Quando mostro o livro para os meus alunos que participaram dos projetos em 2022 e 2024, digo que os representa, que eles fazem parte dessa história.

Quais livros você gostaria de ter lido na infância e juventude?

Queria ter tido mais livros que pensassem uma infância e juventude negra de uma perspectiva antirracista. Queria ter tido acesso a mais autores negros — o que teria me ajudado a acreditar com mais força que eu mesma poderia me tornar escritora, porque eu tinha uma ideia muito branca do que era a literatura, alisava o cabelo porque achava que precisava me modificar para ser mais aceita nesse universo.

Quem escreveu esse texto

Jaqueline Silva

É estudante de Jornalismo na ECA-USP e assistente editorial na Quatro Cinco Um.