A margem é o meu centro

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A margem é o meu centro

Autora de ‘Mau hábito’, Alana Portero reivindica direito de ser universal e diz que seu livro não pode ser reduzido a ‘romance transmarginal’

30out2024 • Atualizado em: 13nov2024
A escritora espanhola Alana S. Portero (Patricia Garcinuño/Divulgação)

Hoje um dos nomes centrais da literatura contemporânea, a espanhola Alana S. Portero é atriz, poeta, escritora, dramaturga e diretora teatral. Com formação em história, escreveu para jornais e revistas como a Vogue. Mas se tornou um fenômeno editorial com seu romance de estreia, Mau hábito.

Em 2022, a autora foi a sensação da Feira do Livro de Frankfurt e, antes de ser lançado em espanhol, o romance teve os direitos vendidos para mais de doze países. No Brasil, foi publicado em dezembro de 2023, inaugurando o selo Amarcord do Grupo Editorial Record. E até mesmo Pedro Almodóvar já citou o livro para cutucar um político conservador.

Atualmente em sua 13ª edição na Espanha, Mau hábito tem início nos anos 80, no bairro operário de San Blas, em Madri, num meio social tomado pelo uso da heroína. Um “bairro com nome de santo, mas abandonado pela mão de Deus”. Pelas páginas, acompanhamos o crescimento e o percebimento de uma mulher trans da infância à vida adulta, em que “imaginava mais do que vivia”.

(Flor Downes/Divulgação)

Meu primeiro encontro com Alana Portero foi em Madri há um ano, em outubro de 2023. Ela participava do encerramento do Outubro Trans, promovido pelo Ministério da Igualdade, com um adendo especial: a Lei Trans já aprovada na Espanha. Nessa época, soube de sua vinda ao Brasil para a Flip, em novembro, e comprei a versão espanhola do seu romance: La mala costumbre. Seu poder de descrição dos lugares, sentimentos, pessoas e segredos é um espetáculo. Me reencontrei com ela, via Zoom, no final de junho deste ano, depois de ter sido arrebatada por sua escrita e Mau hábito ter se tornado um dos meus livros prediletos.

Você diz que começou a escrever porque não existiam personagens bons para atuar, então resolveu criá-los. É um compromisso como autora escrever personagens trans?
Não necessariamente. Mau hábito foi importante [para minha literatura] por ter um personagem que tem muito a ver comigo. Por ser meu primeiro romance, eu queria caminhar por um território ficcional seguro, que eu conhecia bem, e uma personagem trans permitiu isso. Eu queria escrever um romance, e ser sobre o crescimento de uma mulher trans me pareceu a melhor maneira de explorar o gênero literário. Mas não tenho um compromisso em escrever apenas personagens trans, farei isso quando for bom para o trabalho.

Como é a solidão da sua protagonista e a forma como observa a vida?
Acho que é algo fundamental na forma como nós pessoas trans crescemos, especificamente mulheres trans. Há uma solidão muito específica e há uma maneira de ver a vida como se estivéssemos fora dela, alguém olhando para uma foto ou assistindo a um filme. É triste quando isso acontece na primeira pessoa, mas com o passar dos anos se torna útil para criar, para escrever. Eu mantenho essa capacidade de poder sair da vida e observá-la de fora.

Não é necessário reproduzir a violência, oferecer ao público cisgênero o prato do trauma trans

Estar dentro do armário é um pouco assim, e é isso que acontece com essa garota. Ela habita uma espécie de cadáver, tem que construir uma falsa masculinidade para sobreviver. Mas é um corpo sem vida, é matéria sem vida. O belo, o relevante, o especial está sempre acontecendo dentro dela ou em sua imaginação, pelo menos no início do romance.

Você retrata a violência que as personagens Margarida e Eugenia sofrem, mas não a detalha. Não reproduzir estereótipos é uma escolha?
Sim, não é necessário reproduzir de forma concreta a violência, como o público não trans espera que a gente faça, oferecer o prato do trauma trans. Há apenas um momento de violência muito explícita no livro, que acontece com a protagonista, e isso foi uma vingança pessoal. É o único episódio 100% autobiográfico do romance. Há coisas que se parecem com a minha vida, mas me deixei criar ficção em todos as partes. Nesse caso não, isso é puro realismo e eu queria contar como foi porque era também uma maneira de me livrar disso, de extrair de dentro de mim e até poder lucrar com isso.

A protagonista vive treze anos em um corpo-cadáver, durante os quais passa por um surto, visita clínicas psiquiátricas e escreve a carta na qual descreve a experiência. Como foi contar essa parte da sua vida, conferir poesia a uma tragédia pessoal?
Acredito que um dos elementos fundamentais da poesia está no trágico e no triste. Há referentes poéticos que me ensinaram isso, como Sylvia Plath e Anne Sexton — de quem aprendi que das coisas mais tristes do mundo podem ser escritos os textos mais belos. 

Me perguntei: como seria contar sobre o armário adulto quando você quase conseguiu ter a vida que queria? O que acontece se você for forçada a entrar novamente [no armário], a perder a esperança? Se tudo o que você investiu para ter uma vida real é subitamente arrancado de você? E a conclusão é isso que acontece com a personagem, ou o que tentei escrever: completa desesperança, quietude, o momento em que uma vida é reduzida a nada, pura inércia e não há mais forças para tentar, você está na vida, mas não vive. Nesse processo, que é muito difícil e muito triste, também tem muita poesia e algumas ferramentas para escrever literatura fantástica. É muito escuro, mas há muitas possibilidades.

A classe social e a cidade de Madri são dois personagens centrais em Mau hábito. Por que quis determinar a classe social dessa personagem nesse território específico?
Porque na vida dessa personagem, sua classe é tão importante quanto sua identidade trans, condiciona da mesma forma. Como acontece na vida real, a classe determina bem quem somos e quem vamos ser, independentemente de você ser trans. 

Também porque estou muito cansada de ler romances que falam da classe trabalhadora, das pessoas pobres, com um tom de turismo de classe, de fora, reduzindo as pessoas a uma caricatura, como fazem com a gente, mulheres trans. Muitas vezes escrevem sobre nós inventando quem somos, sem nos perguntar. Eu não queria que isso acontecesse comigo, me incomoda muito. 

Também queria escrever sobre o meu bairro porque conheço melhor  via literatura bairros onde nunca estive — o Brooklyn de Paul Auster, de Vivian Gornick, de muitos escritores  — do que o meu próprio. Queria explorar na literatura o lugar onde eu e muitas pessoas cresceram e ninguém nunca fala sobre isso.

Você reivindica o direito de ser universal porque pessoas cisgêneros nos colocam, pessoas trans, como o outro, o diferente, como se não fizéssemos parte do mesmo mundo.
Tomar nossas vidas, nossas possibilidades artísticas, profissionais, nossa capacidade de criar famílias, de criar amizades, como algo que não pertence ao mundo, que está à margem, é um ato de violência. O que os outros chamam de margem é o meu centro, o centro da minha vida, e não vou permitir a mim, aos meus, a você, que nos cataloguem de outra coisa. A história do mundo e da cultura universal não estão completas se não estivermos nós. É uma mutilação que a sociedade e a cultura cisgênero fazem a si mesmas. Se não estivermos lá, o mundo não está completo.

Se eu pertenço a outro mundo, por que tenho que sofrer os problemas que este mundo me causa? Esse mundo que você diz que é seu? Se você vai me afastar, me deixe em paz. Como sou forçada a viver neste mundo, quero estar no centro e não permitirei que meu livro seja reduzido a um romance transmarginal, da mesma forma que não permitirei que reduzam nossas vidas a uma espécie de fantasia marginal que essas pessoas inventaram para nos expulsar. Vou me rebelar a vida toda contra isso, porque sou tão universal quanto o mais branco, o mais aristocrata dos escritores da Europa.

Chamo as personagens Margarida e Eugenia de traviarcas, termo que uso para me referir a travestis e mulheres trans mais velhas, nossas transcestralidades…
Amo essa palavra e a partir de hoje vou fazê-la minha. Traviarcas é maravilhoso!

Num primeiro momento, quando a protagonista as encontra, sente repulsa, diz que não quer ser como elas. Depois, decide que não é uma maldição se parecer com elas, mas um presente. Como essa construção social sobre nós também nos afeta?
Na vida, não há nada que tenhamos desejado que não começa nos dando medo. A única coisa que essa garota vê em torno da Margarida é o desprezo, o escárnio, que não quer para si. Mas tem muita certeza de que Margarida é uma promessa de futuro para ela. Então, entende que é uma mulher que tem uma dignidade que nunca viu. Isso afeta Eugenia também. 

Ambas são uma homenagem às travestis dessa geração, que são as mulheres com quem aprendi tudo. Desde muito jovem, elas têm sido minhas amigas, mentoras, professoras, minhas segundas mães. E também foram a geração mais maltratada na história recente, pelo menos no meu país. São mulheres que estavam em prisões masculinas nos anos 70, quando houve um endurecimento da legislação espanhola com a chamada Lei de Perigo Social, e depois, durante a pandemia de aids.

Mulheres abandonadas e expulsas de todos os lugares em que tentaram viver. Para mim, são meu melhor exemplo de vida. Se eu escrevo, escrevo graças a elas; se tenho uma vida própria, é porque elas apontaram o caminho. Me esforcei muito para escrever essas duas personagens porque queria devolver um pouco da beleza e da luz que elas me ofereceram. 

Falei que não tenho um compromisso de escrever personagens trans, mas sempre vou falar sobre essas mulheres, porque para mim significam tanto quanto a minha própria mãe.

Li que você só consegue escrever quando sua vida está tranquila, então te pergunto: está escrevendo algo? Sua vida está tranquila?
Está complicado, há mais de um ano tenho tido compromissos das diferentes edições do romance, então estou longe de ter calma. Mas minha situação pessoal mudou muito. Quando posso ir para casa em silêncio, quando tudo isso acaba — e quero mais é que acabe, porque estou cansada — tenho uma tranquilidade que nunca conheci. É a primeira vez que vivo isso. Saber que posso pagar meu aluguel, ter tempo para escrever, isso mudou minha vida completamente. Comecei meu próximo romance meses atrás, agora parei porque é impossível fazer tudo, mas sim, tenho uma situação pessoal e material que me permite sonhar com tranquilidade. 

Quem escreveu esse texto

Renata Carvalho

É atriz, diretora, escritora e transpóloga, fundadora do MONART (Movimento Nacional de Artistas Trans).

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