Uma conversa com Karl Ove Knausgård

Literatura,

Uma conversa com Karl Ove Knausgård

Norueguês que escreveu sobre a própria vida diz que o romance não tem limites e que publica uma obra após a outra como jeito de se livrar de si mesmo

18jun2024 - 15h59
O escritor norueguês Karl Ove Knausgaard, no Festival Literário de Cheltenham, na Inglaterra, em 2023 (David Levenson/Getty Images)

Karl Ove Knausgård entra pontualmente na reunião pelo Zoom, do mesmo lugar onde conversamos pela primeira vez, em 2020: o escritório de sua casa em Londres. Agora, além da biblioteca ao fundo, um violão desponta em um dos cantos da tela. Solícito, calmo, talvez um pouco mais cansado, mas não mais envelhecido, ele se mantém atento a cada pergunta, como se a disponibilidade para o momento presente que norteia sua escrita valesse também para conceder entrevistas.

Em seu inglês com forte sotaque norueguês, entremeado a algumas pausas não constrangidas para pensar, Knausgård comenta o projeto de Estrela da manhã, publicado neste ano pela Companhia das Letras, relembra o de Minha luta, prevê o futuro da própria escrita e também me escuta, surpreso e sorridente, contar sobre a viagem que fiz aos lugares de sua infância.

Esta semana, sonhei que precisava enterrar meu pai de novo, e na sala do velório, você aparecia. Nós conversávamos amenidades, eu dizia que iria te entrevistar e temia, mas também desejava, que você me transformasse em personagem. Já sonhei outras vezes com você, o que considero uma prova de como sua literatura se entranha em mim. Como é ter a consciência de poder chegar tão fundo nas pessoas?
Nunca penso sobre isso quando estou escrevendo, mas acho que esse é o maior privilégio que um escritor pode ter, se entranhar em quem lê. Eu comecei a escrever porque era um leitor, e me sinto um pouco assim também. Já senti a urgência de escrever uma carta para um autor, mas nunca escrevi. Ao receber cartas de leitores, você percebe que os tocou em lugares importantes. Mas não me relaciono com essas coisas, não penso nisso, mesmo sabendo que existem. Eu foco na escrita de todos os dias, no que estou escrevendo hoje, é só o que faço.

Em Minha luta, imagino que sua vida era o lastro. Você podia deixar a escrita correr solta porque não havia o risco de se perder nela ou dela. Em Estrela da manhã, esse risco parece maior. Como manter o controle, se é que precisa ser mantido? Quando você começa uma digressão, sabe até onde vai e para onde volta?
A primeira vez que pensei nesse jeito de contar uma história foi quando li Marcel Proust. Ele podia simplesmente deixar a história ali e voltar depois. Quando escrevi meu primeiro romance [Fora do mundo, sem tradução para o português], a questão era sempre quão longe e por quanto tempo você poderia deixar [a história] antes que a narrativa principal perdesse força e intensidade. Eu meio que experimentei ali, havia digressões spin-off , e eu podia ir embora por vinte páginas e voltar.

‘Eu foco na escrita de todos os dias, no que estou escrevendo hoje, é só o que faço’

A mais longa tinha setenta páginas, era uma história que se desdobrava em si mesma. Meu editor queria desesperadamente que eu a removesse porque arruinaria o ritmo do todo, mas eu insisti em mantê-la ali — é uma fraqueza do livro. Em Minha luta é mais fácil, porque a direção é dada mais pela pessoa que está narrando do que qualquer outra coisa, não é uma história propriamente dita.

Eu sinto prazer em deixar uma cena, construir algo em outro lugar, como um pequeno mundo, e depois voltar. Mas é tudo sobre ritmo, o senso do ritmo, sobre o que funciona e o que não funciona. Em Estrela da manhã, há menos dessas digressões, há mais personagens em suas pequenas bolhas, em seus pequenos mundos.

Mas há algumas
A primeira vez que li Guerra e paz, de Tolstói, havia uma única tradução para o norueguês em que haviam retirado os trechos ensaísticos, era uma tradução antiga, e eu achei chato, desinteressante. Mas aí saiu uma tradução completa, e aí sim — esses ensaios, essas partes são de fato a melhor coisa do livro, então nem sempre a manutenção do suspense é o mais valioso. Eu nunca escrevi com um roteiro, essa nunca foi a questão principal, eu realmente gosto de que a escrita seja livre. Mas claro que precisa haver alguma forma e estrutura e você precisa também querer continuar lendo.

Em Estrela da manhã, a realidade é distendida, ultrapassada, na mesma medida em que a racionalidade é questionada. A morte é identificada como limite entre a ciência e o mistério. Seu segundo livro [Um tempo para todas as coisas, sem tradução para o português] já tinha anjos. Há algo de pessoal nesse retorno ao místico, ao mítico?
Eu sempre gostei de literatura fantástica, na adolescência lia Gabriel García Márquez, adorava Salman Rushdie, li Cortázar e Borges e toda essa tradição. Com uns vinte anos, tentei escrever um pouco daquele jeito, mas não era para mim, não era para o meu mundo, porque a tradição europeia era muito diferente. Mas com Estrela da manhã eu experimento a sensação de que o mundo é uma versão do mundo, que poderia ser diferente, que as fronteiras e os limites poderiam ser outros e então o mundo seria outro.

Se você volta na história para 1221, as pessoas de fato viam anjos, viam o diabo, que então existiam, eram parte da realidade, e sempre foi assim. Esse livro é bastante sobre o fato de fixarmos o mundo de uma maneira específica. Existe a psicologia ali, a filosofia, a biologia, a química, tudo separado, e a vida diária, o romance, o ensaio, tudo compartimentado. Eu queria transgredir isso de algum jeito, também porque as coisas estão acontecendo no mundo agora, estão mudando, e eu acredito que um dos lugares em que você consegue colocar as mãos nisso é num romance, que à sua maneira não tem limites, não tem regras.

‘A estrela é o que não sabemos, e isso nunca acontece, porque temos conhecimento sobre tudo’

A estrela é o que não sabemos o que é, e isso nunca acontece, porque temos conhecimento sobre tudo, absolutamente tudo. Se aparece alguma coisa nova, em dois dias os cientistas vão nos explicar o que é, então sabemos tudo. Dito isso, não sabemos o que é a consciência, não temos a menor ideia. Não sabemos como a vida emerge, não sabemos o que é a morte, não sabemos realmente nada, mas sentimos como se soubéssemos tudo. Então esse livro coloca essas coisas em movimento. Não que eu acredite em fantasmas, mas há alguns.

E em Deus, você acredita?
Deus e a religião são, nesse livro e para mim, parte da maneira como vemos o mundo, como o mundo é. Meu interesse nas escrituras, na Bíblia, é mais filosófico, não sou religioso de fato.

Você começou a escrever o livro na pandemia?
Comecei logo antes da pandemia. Escrevi cinquenta páginas antes e terminei durante.

Parece até meio premonitório.
Sim, há algumas similaridades entre a estrutura da pandemia e a estrutura do livro. Estávamos cada um e cada família numa bolha e havia essa ameaça lá fora para a qual todos estavam olhando e estava como que se aproximando de nós.

Qual é a relação entre sua escrita e a realidade?
Acho que a relação é com a presença, com estar no mundo. As coisas no mundo estão preparadas para nós, quase prontas de antemão. Desculpe, não sei muito bem como formular, mas é um lugar importante para mim, exatamente a relação entre a escrita e a realidade. Acho que é a maneira como a escrita te conecta com o tempo presente e o espaço presente, não há nada pronto com antecedência, tudo é improvisado no momento, que é exatamente como o mundo funciona quando estamos nele. Há uma conexão entre ser e escrever, é sobre o que está acontecendo aqui e agora, sem futuro nem passado.

E com a morte, qual a relação da sua literatura?
Isso eu não sei. Sempre me perguntam porque a morte é um assunto tão importante ou recorrente nos meus livros. A morte é quase a última parte que resta da natureza. Há tanto que se torna visível na morte. Quando meu pai morreu, ele estava lá e então não estava mais, a relação com ele, um dos lados simplesmente havia ido embora. E outra coisa era a fisicalidade, era apenas uma coisa, como a mesa onde ele estava deitado. E esses dois níveis, o físico e o mais abstrato, são algo em que estou constantemente interessado, especialmente agora, com todos esses computadores e telas onde tudo é de alguma forma abstrato e não físico. A morte apresenta algo com que estamos quase perdendo contato. E esses livros são sobre o desaparecimento da morte, que é algo que parece estar acontecendo — penso cada vez mais que é realmente possível a morte ser superada. O segundo livro é sobre isso.

Você acha que isso vai acontecer, que superaremos a morte?
Sim, acho que é uma possibilidade algo acontecer nessa frente. Não acho que viveremos para sempre, talvez por muito mais tempo. E eu temo isso. É um pesadelo. Eu não quero que isso aconteça.

Conseguimos relacionar alguns dos personagens de Estrela da manhã com outros de Minha luta, como se fosse possível saber de onde vem sua ficção. Mas há também referências, sinais a outros artistas. De onde surgiram as narrativas e os personagens de Estrela da manhã?
É como se todos viessem de mim, de minhas experiências, leituras, do que vejo e penso e sou. Eu fiquei, aliás, temeroso que encontrassem algo de um livro anterior em um posterior, não há como definir uma fronteira entre eu e os personagens, mas ao mesmo tempo eles não são eu, os estou inventando e preenchendo com o que eu quiser. Eu frequentemente escrevo de maneira a usar o que primeiro me vem à mente, e frequentemente as mesmas coisas me vêm à mente (risos), então eles dividem aspectos com as pessoas de Minha luta.

Qual é seu personagem preferido?
Há uma que se chama Line, que aparece pouco no primeiro volume, mas tem um papel importante no segundo — gosto de sua história, mas ainda não sabia dela quando estava escrevendo Estrela da manhã. Gostei de escrever o ensaio na voz de Egil, isso me deu alguma liberdade, eu não precisava ser dono do ensaio ou dos pensamentos dele. A diversão de escrever um romance é fingir ser outro, com outras opiniões e tudo.

Ainda sobre o autor ou narrador de Minha luta: me identifico com a sensação de exposição que você descreve — de voltar de entrevistas e precisar se recolher e até chorar, como se houvesse uma ressaca pela exposição. Também queria continuar sabendo da sua vida, que Minha luta  não tivesse fim. Como a série mudou sua relação com a intimidade? Você segue mantendo distância de redes sociais, resenhas e avaliações dos seus livros?
Não os leio, não tenho redes sociais, então sim, fico longe de tudo isso. Para mim, Minha luta são romances. Eles representam a mim, é claro, mas não são eu. Se eu me sentasse agora e escrevesse seis volumes da Minha luta, sairiam incrivelmente diferentes. Eles são uma pessoa de quarenta anos olhando para a própria vida, perguntando quem é. Mas isso mudou. Agora tenho 55 anos, minha vida é diferente e eu a teria escrito de forma diferente. A exposição foi absurdamente intensa quando o livro foi publicado e alguns anos depois, mas agora isso não está me incomodando.

Que bom que isso não te incomoda, porque preciso confessar uma coisa: fui à Noruega atrás dos seus rastros. Fui a Bergen, a Kristiansand, conheci a fachada da casa onde seu pai morreu, entrei na casa da sua infância em Tromøya, tomei um café no quintal com os simpaticíssimos Prestbakmo — senti afeto por eles, um desejo de que fossem meus avós [ele reage com surpresa, sorri]. A cada lugar, era tomada pela sensação de invasão, como se tivesse invadido não só os limites da sua vida, mas da literatura, como se eu tivesse transposto a barreira entre realidade e ficção. Como tudo isso soa para você?
Acho que entendo. Em Estocolmo há placas por toda parte com citações de romances ou livros sobre aquele lugar. E há algo quase obsceno em ter a literatura e o lugar real lado a lado, porque não há correspondência, são dois mundos diferentes. Mas acho interessante porque, como você diz, isso gera outras histórias e leva para outros lugares, fora do livro e fora da literatura, que é onde as coisas são criadas, com transgressão, com invasão, porque isso gera conflitos e tensão. Então sim. Eu mesmo fiz isso, com Tchekhov, na Rússia.

Menos mal, fico aliviada…
Fui à casa, e ao lugar de uma de suas grandes histórias. E também segui Lênin um pouco. É interessante, mas é realmente assim, você acha que vai encontrar literatura lá, mas não, porque [o real e a literatura] nunca se encontram, há sempre um intervalo.

Você relê seus livros?
Não se eu não precisar. Em Estrela da manhã havia tantas coisas diferentes com as quais eu tinha que relacionar a escrita que tive que lê-lo. Quando escrevo um livro novo tenho que ler os outros para saber o que se passava nos anteriores. Eu não gosto disso. Ia participar de um evento sobre o Munch, então tive que ler meu ensaio sobre ele novamente. Não recomendo. Escreva livros, não os leia.

Você sentiu vontade de mudar coisas? Por que não gostou?
Nunca penso em mudar nada, nunca mudo minha escrita quando estou escrevendo. Mas, bem, você tem uma impressão sobre o livro — ah, escrevi este livro há cinco anos, acho que ele é bom —, aí você abre o livro e percebe que não, não é.

‘Há uma conexão entre ser e escrever, é sobre o que está acontecendo aqui e agora, sem futuro nem passado’

Há sempre uma espécie de ingenuidade nos meus livros que não percebo quando estou escrevendo, mas que vejo logo depois. As muitas coisas que não gosto em mim estão presentes nos livros, e não quero me confrontar com elas dessa forma. Provavelmente é também por isso que penso assim. Basta publicar um livro e deixá-lo, esperando que aquilo vá melhorar por si só.

Mas você edita o livro?
Mudo algumas coisas quando estou escrevendo, no momento. Aí quando está pronto, eu deixo e há muito pouca edição depois disso. As coisas se deram assim a partir de Minha luta. Eu e meu editor editamos o primeiro livro de maneira bastante tradicional, mas no segundo, ele disse: esse não é um tipo de livro que podemos editar. Então não fizemos. E não fazemos muito disso.

Desde então?
Não. Mas eu tenho uma ótima leitora, Monika Fagerholm, uma excelente escritora finlandesa. Ela sempre lê o livro pronto e sempre tem algo… O livro mais recente, ela disse que tinha um final americano demais e deu sugestões. Às vezes eu sigo as instruções dela: reescrevi o final do último livro, por exemplo. Isso é um tipo de edição.

Você prefere ler ou escrever?
Prefiro escrever, mas é muito mais difícil. Ler é muito mais prazeroso, mas escrever é de alguma forma mais gratificante, é algo quase físico, um resultado concreto que não existia antes. É a mesma coisa com a leitura, existe algo que não existia antes, mas não é visível, então é como se não estivesse ali. Por isso acho que prefiro escrever.

Você escreve todos os dias?
Não nos finais de semana, só nos dias de trabalho mesmo.

E o que você está escrevendo agora?
Comecei um romance novo há dois dias, escrevi dez páginas, o que é a parte mais difícil e a mais interessante, porque não tenho a menor ideia do que vai acontecer, tenho só um contexto e uma pessoa e todo o resto está aberto, e isso é estimulante. E estou escrevendo também a quinta parte de Estrela da manhã.

Ler Estrela da manhã teve algo de assustador para mim. Meu filho estava doente, e eu tinha que me dizer o tempo todo: calma, isso é literatura, não é um sinal de que ele vai morrer. Há uma atmosfera, e entramos nesse clima. Você não tem medo de escrever essas coisas?
Sim, tenho um pouco. No quarto livro, há uma criança que morre. E isso foi muito, muito difícil de escrever. É uma cena importante, e foi terrível, porque quando você escreve é como se fosse verdade, sabe? É como se estivesse acontecendo mesmo.

Você considera que cada livro seu é um projeto independente, ou que tem um projeto literário maior, consciente?
Meu projeto é escrever no momento e me permitir não pensar muito sobre o que é nem sobre a qualidade daquilo, apenas publicá-lo. Isso sempre vai representar onde você está, o que está pensando, e o que você não consegue ver por você mesmo quando está lá. Eu vejo os livros como uma parte da vida, de algum jeito, e que estão todos conectados. Eu vejo meus livros subindo e descendo por talvez uns quarenta anos e então eles vão parar. É isso.

Quem escreveu esse texto

Natalia Timerman

Psiquiatra e escritora, é autora de Copo vazio (Todavia).