A cobertura especial d’A Feira do Livro, que acontece de 14 a 22 de junho, é apresentada pelo Ministério da Cultura e pela Petrobras
MINISTÉRIO DA CULTURA E PETROBRAS APRESENTAM

A FEIRA DO LIVRO 2025, Literatura brasileira,
Cronista da perplexidade
Ignácio de Loyola Brandão reflete sobre distopia, jornalismo e invenção, ao relembrar episódios marcantes de sua trajetória
17jun2025Aos 89 anos, Ignácio de Loyola Brandão segue sendo um dos grandes cronistas da perplexidade brasileira. Autor de romances fundamentais para um tipo de entendimento sobre os imaginários do país, como Bebel que a cidade comeu (1968), Zero (1975) e Não verás país nenhum (1981), sua literatura atravessa mais de seis décadas com um tom urgente e desobediente a convenções. Membro da Academia Brasileira de Letras desde 2019, construiu uma obra inquieta, política e formalmente impetuosa, sempre a partir de sua percepção aguda da realidade e da atenção à linguagem. Em todo esse tempo, mesclou a inventividade à grande narrativa de um Brasil de contradições, desigualdades e delírios autoritários.
Formado no corre-corre das redações de jornais e revistas, Loyola Brandão fez da efervescência das cidades, das idas e vindas às ruas e dos embates com a censura imposta pelo regime militar a grande matéria de sua ficção. Escreveu crônicas e entrevistou vedetes para suplementos de variedades, transformou notícias, cartas de torturados e recortes de jornal em elementos estruturais de seus romances e reconfigurou a noção de artesania literária ao absorver o próprio entorno para expandir o vulcão criativo de sua mente.
Na escola, recebia uma caderneta para anotações. Ainda hoje tenho esse hábito. São 2.576 em caixas
Nesta entrevista para a Quatro Cinco Um, o autor, que estará n’A Feira do Livro nesta quarta, às 15h30, relembra episódios marcantes de sua trajetória, reflete sobre o estado atual da literatura, fala de fracassos, influências, cinema, velhice, processo criativo e o espanto contínuo diante de um mundo em colapso. “Um bom exercício nesta manhã. Curioso reolhar para a gente mesmo”, escreveu a este repórter, logo depois de concluirmos a conversa abaixo, por e-mail, em 12 de junho.
O senhor começou a carreira como jornalista em Araraquara, escrevendo crônicas ainda muito jovem, e depois trabalhou na Última Hora, na Claudia, na Realidade e outras publicações importantes da imprensa brasileira. Que papel o jornalismo teve na formação do escritor? Nessa fase já escrevia ficção?
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Eu diria que comecei a escrever ficção no ensino fundamental. Criança, havia redação a cada dez dias na escola. As professoras Lourdes Prado e Ruth Segnini eram diferentes. No início, davam os temas ou abriam um cavalete de gravuras e diziam: “Inventem uma história olhando este quadro”. Depois, mudou: nos enviavam para a rua e diziam que observássemos tudo de bom, de ruim, de curioso, triste, engraçado. E com isso escrevíamos a redação. Eu tinha oito anos. Todos recebíamos uma cadernetinha para anotações. Ainda hoje tenho esse hábito. Meu pai guardou todas da minha infância, eu guardei as outras, nem tenho mais onde guardar. São 2.576 em caixas. Aos onze anos, comecei a escrever em parceria com o Zé Celso [Martinez Corrêa], futuro diretor teatral, um romance chamado Os imigrantes, que ficou inacabado por uma divergência no nome da personagem. Ficção mesmo escrevi em julho de 1966, trabalhava na revista Claudia. O editor Thomaz Souto Corrêa perguntou se eu escreveria um conto para o Dia dos Pais e Professores. Arrisquei, escrevi uma memória de infância, “O menino que vendia palavras”. Décadas depois, eu já tinha escrito meus grandes livros, reescrevi o conto, publiquei, ganhei o Jabuti de melhor livro do ano em 2008, vencendo livros adultos.
Seu primeiro romance, Bebel que a cidade comeu, é considerado um livro de ruptura, pelo estilo fragmentado e colagem de imagens da cidade, da mídia e do cotidiano. Como foi estrear no romance em caminhos formais tão fora do convencional num momento em que o Brasil vivia censura, repressão e mudanças culturais tão profundas?
Comecei a anotar elementos para Bebel ainda no jornal Última Hora, onde trabalhei de 1957 a 1966. Fui crítico de cinema, repórter de rua, editei a UH Revista, suplemento de variedades, entrevistava atrizes, vedetes e bailarinas. Bebel foi baseada em três estrelas: Eneida Jalena, bailarina da Record; Jaqueline Myrna, vedete romena de televisão; e uma atriz de cinema. A estrutura do livro foi inspirada no romance Manhattan Transfer, de John Dos Passos, que expandi ao extremo em Zero. Bebel foi a vítima do machismo que existia e existe na televisão e esmaga e corrói pessoas. Posso considerar Bebel uma experimentação, totalizada na audácia em Zero, até hoje um romance único em seu formato na literatura brasileira.
Zero e Não verás país nenhum vieram em plena ditadura e se tornaram obras fundamentais da literatura política brasileira ao usarem a distopia para confrontar a violência e a desilusão nacional. Em que medida considera que os romances foram críticos àquele momento e o que acha que ainda nos falam no contexto em que estamos hoje?
Sofri com a censura, com a ditadura e, emputecido, busquei uma forma de me liberar, protestar, ser livre, fazer o que eu queria, da maneira que queria. Como editor na Última Hora, guardei durante anos tudo que os censores proibiram. Levei para minha casa uma montanha de material: fotos, notícias, entrevistas, reportagens, cartas que torturados enviavam às redações. Levei dez anos fazendo e refazendo. Zero foi publicado primeiro na Itália, depois no Brasil. A ditadura proibiu. Usei ruídos, gritos, choros, risos, peidos, bombas explodindo, assassinatos — tudo que me viesse à cabeça, que eu visse, vivesse, que amigos vivessem, tudo que transmitisse o clima de terror, violência, medo, perseguição, dor, censura.
Brasil? Complicadíssimo com a podridão da política. Nunca tantos se revelaram tão escrotos
Em Não verás país nenhum, assim como em outros títulos, o senhor costura recortes de jornal, fotografias, diários e fragmentos do cotidiano, transformando memória e registros em ficção. Como esse processo de montagem e justaposição de realidades contribui na sua forma de narrar?
Sabe que não sei? Uso o que tenho à mão. Vou usando, usando. Que método é esse? Um que vou inventando, por necessidade, sei lá, e que acaba funcionando. Crio, não sou crítico literário, professor, analista de literatura etc. Faço.
O senhor sempre revelou seu fascínio pelo cinema, dizendo que gostaria de ter sido cineasta e que a linguagem cinematográfica o marcou. Essa paixão moldou sua construção literária de alguma forma?
Sonhei, e ainda sonho, aos 89 anos, em fazer cinema. Persegui uma coisa, fiz outra. Vendi livros para o cinema, nunca fiz um roteiro. Agora, se isso me mudou, não sei. Não olho tanto assim para mim mesmo. Só sei que, se me desviei do sonho, continuei com uma escolha que me faz feliz, mesmo quando fracasso, como em livros como Deus, o que quer de nós? (2022). Um fracasso me obriga a me dedicar com mais atenção ao novo livro, Risco de queda, sobre a velhice.
Em Acordei em Woodstock (2000), o senhor constrói uma narrativa que mescla memória, viagem, música, cinema, política e contracultura. O que o motivou a explorar esse formato híbrido e pessoal?
Woodstock foi tentativa de usar tudo. Fui usando. Deu certo. Confesso que fui escrevendo, indo para lá e para cá, sem medo, sem ficar olhando e me perguntando: “é assim mesmo?”. Não me questiono enquanto escrevo. Claro que às vezes paro, paro totalmente, depois de um tempo releio. Digo: “assim não!”. Ou: “é por aqui mesmo”.
O senhor já disse que não relê seus próprios livros depois de publicados para não cair na tentação de mudá-los. Como lida com o distanciamento da própria obra?
Minto um pouco, sabe? Para fazer gênero. Acontece que às vezes deixo para reler muito tempo depois. Tenho medo de me desiludir. Em 1985, fui a Portugal com um grupo de escritores e uma das visitas foi a Miguel Torga, grande figura. Fiquei abismado quando ele nos contou (estavam lá Ricardo Ramos, filho do Graciliano; João Ubaldo Ribeiro; Marly de Oliveira, a poeta; Nélida Piñon e outras figuras) que a cada nova edição de cada livro, ele mexia. Fiquei maravilhado e em dúvida. Deve o autor fazer isto?
Sua obra transita entre gêneros: romances, contos, crônicas, peças, textos infantojuvenis, com vários prêmios. Alguma delas lhe oferece mais liberdade criativa? Há um gênero ao qual sempre retorna com mais prazer?
O romance. Mas adoro a crônica, ainda que Mario Prata tenha declarado à Folha de S.Paulo que ela morreu. A crônica me obriga a procurar ideias, motivos, experimentação.
Com livros mais recentes, como Desta terra nada vai sobrar, a não ser o vento que sopra sobre ela (2018), o senhor retomou a distopia, agora com foco na destruição ambiental e num esgotamento civilizatório. Como enxerga o mundo e o Brasil de hoje?
Brasil? Algo complicadíssimo com a polarização, com o despertar do escrotismo nas pessoas, com a podridão da política. Nunca tantos se revelaram tão escrotos. Estava certo eu quando, em Desta terra…, coloquei parlamentares, juízes e ministros se dissolvendo. Senado e Câmara são bbbs multiplicados por mil. E o meio ambiente nas mãos do agro? E as (e os) influencers bilionários? E o horror das redes sociais? Argh, como dizia O Pasquim.
O senhor acompanha a literatura contemporânea brasileira? Do que lê ou toma contato, que autoras ou autores lhe chamam atenção?
Vou citando os que me agradam: Luiz Ruffato, Socorro Acioli, Rodrigo Lacerda, Itamar Vieira Junior, Jeferson Tenório, Djamila Ribeiro, Tati Bernardi, Eliane Brum, Chico Buarque, Tony Bellotto, Chico Lopes, Nathalia Timerman, Sidney Rocha, João Almino, Ana Maria Gonçalves.
A Feira do Livro 2025 · 14 — 22 jun. Praça Charles Miller, Pacaembu
A Feira do Livro é uma realização do Ministério da Cultura, por meio da Lei Rouanet – Incentivo a Projetos Culturais, Associação Quatro Cinco Um, organização sem fins lucrativos dedicada à difusão do livro e da leitura no Brasil, Maré Produções, empresa especializada em exposições e feiras culturais, e em parceria com a Prefeitura de São Paulo.
Porque você leu A FEIRA DO LIVRO 2025 | Literatura brasileira
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JUNHO, 2025