

Literatura,
A infância negra em ‘Febre de Carnaval’
Em seu premiado primeiro romance, a equatoriana Yuliana Ortiz Ruano desvela a violência contra as mulheres pelo olhar de uma menina
28fev2025“Talvez o Carnaval seja um animal que sobe na sua cabeça e tira sua razão”, conclui Ainhoa, a protagonista de Febre de Carnaval. O pensamento ocorre enquanto a menina tenta encontrar sua casa, caminhando suja e descalça por ruas desconhecidas, em meio a rios de sangue, mijo, bebida e o calor exalado de corpos frenéticos, entregues à festa da insensatez.
A aventura da garotinha numa noite de celebração é também o ápice de uma experiência que nada tem de romântica na passagem da infância à pré-adolescência, descrita no livro pela DJ, poeta e escritora Yuliana Ortiz Ruano.

Em seu primeiro romance, a equatoriana explora as múltiplas violências vividas por mulheres pretas na perspectiva de uma criança, sob a responsabilidade de mães e tias que, por mais amorosas que sejam, são incapazes de protegê-la. Numa narrativa que se desenrola entre a prosa, a poesia e os sons caribenhos, Febre de Carnaval é um livro poderoso, composto em ritmo frenético e numa linguagem crua e inventiva, que levou Yuliana a conquistar os prêmios Primo Romanzo, na Itália, e Joaquín Gallegos Lara, de Quito, na categoria melhor romance de 2023.
A aventura da garota numa noite de celebração é também ápice de uma experiência nada romântica
“Queria escrever uma história cheia de música, ruído e de uma poética negra, infantil, anti-adulta e proletária”, explica a autora. A fábula de Ainhoa se passa em Esmeraldas, cidade no litoral do Equador em que Yuliana nasceu e viveu seus primeiros anos, cercada por mãe, avós e tias como a protagonista de Febre de Carnaval.
“Minha mãe e tias recitavam e liam poesia para mim. A palavra viva é uma parte fundamental da comunidade em que cresci, mas só quando me mudei para Guayaquil é que comecei a escrever poemas”, diz ela. Essa necessidade, explica, veio da impossibilidade de se comunicar com as pessoas da cidade, onde ela descobriu racismo e preconceito.
Autora de três obras de poesia — e com mais uma pronta para ser publicada —, Yuliana conversou com a Quatro Cinco Um sobre seu interesse pela infância, suas influências e a cena literária do Equador. Leia a seguir.
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Estamos às vésperas do Carnaval e não consigo parar de pensar em seu livro: como relaciona as festas no Brasil e no Equador?
Moro em Guayaquil, um dos dez lugares mais perigosos do mundo. Então, posso estar romantizando o Brasil, mas como uma equatoriana preta, que visitou São Paulo e Rio, mesmo com suas complexidades, nessas cidades as pessoas estão nas ruas, algo quase impensável atualmente no Equador. Há um viés político no fato de tantas negras e tantos negros ocuparem espaços públicos, pois não temos essa possibilidade aqui. É verdade que, no Carnaval, vamos às praias, às ruas, mas não há segurança pública, e como se trata de uma celebração majoritariamente preta e indígena, foi muito perseguida e apagada. Na minha opinião, o Carnaval brasileiro traz um grande aprendizado de como a organização social e a politização podem dignificar a população subalternizada.
Febre de Carnaval é seu primeiro romance, depois de ter lançado três livros de poemas. Como foi a transição da poesia para o romance?
Muito orgânica. Não faço divisão entre poesia e romance. Acho que o formato de novela me permitiu brincar com todas as minhas obsessões: a infância, a música popular e os versos. A escrita, para mim, é sobretudo uma busca pelo poético. O formato não importa muito.
Por que escolheu uma menina como narradora de Febre de Carnaval?
Há muitos anos penso na infância. Na forma como se desenrolam os acontecimentos dessa fase, que para mim nunca acaba, pois podemos mapear seus vestígios em nossa vida adulta. Sempre quis narrar a infância, compreender ou imaginar como é que um corpo que não tem poder na cidade ou no espaço público põe suas potências em marcha, se revela e descobre o mundo com toda a violência dessa experiência.
Você escreve mesclando poesia, música e prosa. Qual sua intenção ao fazer essa mistura?
Queria fazer uma intervenção na linguagem dos adultos. Gosto muito dos livros que têm crianças falando, porque a infância como invenção faz com que os países ocidentalizados a tratem como o período da inocência, em que os corpos não têm possibilidade política. Para mim, se a criança não vive num contexto em que seus direitos são preservados, pode ser um período bastante hostil. Além disso, me interessa tratar o sistema da tutela, que pode ser muito bom, mas as pessoas também usam seu poder para corromper e colonizar os corpos das crianças. No Equador, a maior parte das violências é praticada por familiares, nas escolas, então, é importante mostrar o outro lado desse esquema de proteção.
Por isso a família tem uma presença muito poderosa em seu livro?
Queria desromantizar a família. Pensar na instituição de obediência que ela é e nas formas como perpetua inconscientemente a violência. Minha intenção era abordar minha geografia afetiva pelo olhar de Ainhoa, minha menina que saiu do naufrágio incapaz de nomear tudo e de se dirigir ao objeto interno de um corpo minado pela mais cruel agressão sexual, aquela que engendra e ensina a maternidade precoce.
Como tratar de temas tão duros sob a perspectiva de uma menina?
A única possibilidade de escrever uma história tão ruim e tão forte era pelo olhar de Ainhoa. Tive de me esforçar para deixar de lado minha experiência política. Há um capítulo do livro Mil Platôs, escrito pelos filósofos [Gilles] Deleuze e [Félix] Guattari, em que eles falam que toda a pessoa que escreve, de algum jeito, está sempre ficando menor, fazendo de si mesmo pequeno para ter a possibilidade de contar uma outra coisa, com outros olhos. Eu me fiz menor para narrar essa história.
Você utiliza muitas metáforas e imagens poderosas no romance. Como desenvolve essas conexões?
Minhas influências vêm da literatura de Cuba, de Porto Rico e das Antilhas; no Caribe, eles têm essa forma muito linda de contar histórias, com uma carga forte de poesia. Nas letras hispânicas, temos a tradição do realismo mágico, mas o cubano Alejo Carpentier trata de um conceito de que gosto, o da realidade maravilhosa.
Gosto de tratar da família e de como as pessoas justificam a violência no núcleo familiar
Quando moramos em ilhas, perto da beira do mar, dos corpos de água, há realidades maravilhosas acontecendo a toda hora, e era sobre isso que queria refletir. São realidades maravilhosas que acontecem poeticamente sem que as pessoas façam nada. A poesia está aí. Só precisamos de olhos para enxergá-la.
Voltando à infância: como iniciou sua relação com a literatura?
Começou em casa, com minha mãe e as tias. Elas liam poesia, recitavam. A palavra viva é uma parte fundamental da comunidade em que cresci [Esmeraldas]. No entanto, só quando me mudei para Guayaquil é que comecei a escrever poemas. Poemas horríveis e bregas, mas ainda assim tentativas de falar sobre a falta de sentido da cidade e a segregação. Viver sozinha me ajudou a explorar, falhar e tentar. Acho que continuo a abordar a literatura dessa maneira.
Nesse contexto, o que te levou a escrever?
Isso aconteceu porque minha fala atrofiou. Não sabia como me comunicar em Guayaquil. As pessoas não me entendiam e eu me sentia em um delírio incomunicativo. Escrever foi uma forma de lidar com um problema que ainda não consegui resolver.
Como é o panorama literário no Equador?
Hostil, estranho. Tenho sorte por ter uma editora que me apoia. Todo o resto não compreendo. Fico feliz por existirem autoras como Mónica Ojeda, Daniela Alcívar, Gabriela Ponce, Natalia García. Também gosto da escrita de Shaskya Hurtado e Anthony Guerrero. Mas não creio ser possível ter uma opinião formada sobre o panorama literário de um país que vira as costas a tudo o que não se encontra no centro. A tudo o que não é mestiço.
Você acredita que vivemos um momento especial para as escritoras latino-americanas?
Ainda há uma ausência de afrodescendentes. Nós existimos, mas nossas obras não têm o mesmo espaço que as de outras autoras. Gosto da visibilidade de escritoras negras no Brasil, na Colômbia e em Porto Rico. Acho que elas abrem caminhos para muitas outras mulheres, mas é preciso ler não só o que é visível e, sim, buscar e ir além do que o mercado nos oferece.
Que histórias te interessa contar?
Gosto de tratar da família enquanto instituição e de como as pessoas justificam a violência no núcleo familiar — “apanhei porque queriam me corrigir”, “me insultaram para que aprendesse a ser um homem”, “me ensinaram a ser uma boa mulher” etc. Tenho interesse em tratar também da infância e da religião às margens do Pacífico, o que, na minha opinião, eleva exponencialmente as dificuldades, e refletir sobre como a beleza acontece nesses lugares terríveis.
No que você está trabalhando agora?
Estou escrevendo um novo romance, mas não quero dar detalhes, porque fico tímida para falar sobre coisas que ainda não são realidade. Neste ano, vou publicar um livro de poesia, Mãe, não falemos de Deus, feito durante uma residência da qual participei em Granada, na Espanha.
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