Literatura infantojuvenil,

As histórias de Ana Maria Machado

A autora carioca fala das suas obras mais recentes, do imposto sobre os livros e dos sonhos que tem para o Brasil

19maio2021 | Edição #46

Um dos grandes nomes da literatura brasileira e ganhadora do Prêmio Hans Christian Andersen (o mais importante da literatura infantojuvenil), a carioca Ana Maria Machado está lançando três livros pela Editora Moderna: Igualzinho a mim (com ilustrações de Maria José Arce), A história que eu queria e O mesmo sonho (ambos ilustrados por Elisabeth Teixeira). Ela já havia publicado neste ano o livro de poemas O olhar passeia, pela editora Global, com ilustrações de Claudia Furnari. 

Conhecida tanto por seus livros voltados para as crianças quanto para adultos e integrante da Academia Brasileira de Letras (ABL), Machado, que também é professora, jornalista e pintora, tem sua trajetória marcada pela defesa de políticas públicas de incentivo à leitura. Em entrevista à Quatro Cinco Um, ela falou sobre as inspirações para os seus livros mais recentes, a tentativa do governo federal de taxar os livros e quais são os seus sonhos para o Brasil.

Seguindo a premissa do livro A história que eu queria, você está cansada de ler algum tipo de história? Que outras histórias você ainda quer contar?
Há uma confusão entre autor e personagem. Eu não me canso de ler. Jamais. E não escolho leitura exatamente pelo tipo de história, mas por muitos outros fatores — principalmente autor. Por outro lado, nunca sei antecipadamente que outra história ainda vou contar. E, se soubesse e falasse nisso, ela sumiria da ideia.

Quais histórias marcaram a sua infância?
Eu fui uma criança muito leitora e tive a sorte de também ser muito ouvinte, havia muita gente que me contava histórias. Oralmente ou de livros. De todo tipo, e elas foram me marcando aos poucos. De princesas, dragões, piratas, gigantes, mitologia grega, personagens do folclore, personagens literários como Gulliver ou Robinson Crusoé, uma infinidade. Eu simplesmente devorava o que me caía nas mãos.

Igualzinho a mim trata das diferenças entre as pessoas, um tema cada vez mais importante pois abrange tolerância e combate a preconceitos e ao racismo, por exemplo. Como tratar de temas tão complexos como esse para as crianças?
Eu acho que não há fórmula. Cada autor encontra seu próprio jeito de tratar dos mais diferentes temas, mesmo muito complexos. Dificílimo deve ser fazer livro bom com tema simplório e rasteiro. Creio que o importante é que se escreva com verdade, fiel ao que se pensa, a uma visão de mundo consistente, a um domínio do ofício da escrita e ao afeto que se sente pela criança.


Ilustração de Maria José Arce para Igualzinho a mim

A ideia de O mesmo sonho surgiu de um sonho? E, aproveitando, qual sonho você tem para o Brasil?
Não. Surgiu exatamente dessa pergunta inicial do livro, feita por uma criança a sua mãe [“Mãe, se a gente dormir com a cabeça no mesmo travesseiro, vai sonhar igualzinho?”] — e eu a ouvi no interior dos Estados Unidos, em uma viagem, há mais de trinta anos. Fiquei com ela na cabeça. E sonho para o Brasil uma democracia plena, com liberdade, justiça social, igualdade, felicidade, plena imersão em nossa cultura tão rica e variada — e sem este ódio ignorante em que estamos imersos atualmente. Mas vai passar.

Você trabalha ativamente defendendo políticas de leitura no Brasil. Como vê o trabalho feito pelo governo nessa área?
Este governo não fez nada que contribuísse nessa área. E ainda atrapalhou de várias maneiras — desde tentativas de censurar bibliotecas escolares até querer taxar livros com a desculpa de que quem consome livros é quem ganha mais de dez salários mínimos. Eu prefiro ver de outra maneira: quem ganha mais de dez salários mínimos é exatamente quem consome livros não didáticos. Temos que incentivar que mais gente possa consumi-los, melhorando a renda do cidadão brasileiro.

Mas, por outro lado, é bom não esquecer que o Estado brasileiro, independentemente de quem estivesse no governo, vinha desenvolvendo desde os anos 90 uma série de projetos  diferentes, em grande parte muito interessantes e eficientes, sobretudo no incentivo à leitura a partir do ambiente escolar. Nos diferentes níveis — federal, estadual e municipal — e muitas vezes com apoio da iniciativa privada houve projetos consistentes e fecundos. Sabemos fazer. É só não regredir.


Ilustração de Elisabeth Teixeira para O mesmo sonho

Qual a diferença entre escrever para crianças nos dias de hoje e nos anos 70?
Não acho que tenha mudado, do meu ponto de vista. Mudam as circunstâncias das histórias (cenário, roupa, tecnologia à disposição, comportamento, costumes). Mas não muda o cuidado com a linguagem, com a construção dos personagens, com a estruturação da narrativa, esse tipo de coisa. E não muda o espírito humano. Continuamos às voltas com as mesmas questões: medo, sonhos, ciúmes, angústia, compaixão com quem sofre, solidariedade, vontade de ser livre e não ter de obedecer ao que não faz sentido, desejo de questionar, revolta contra injustiça, abertura para a alteridade, empatia…

E como é escrever para o público adulto e o infantil?
Quanto a diferenças no escrever, do ponto de vista de minha atitude como autora, não existem grandes diferenças. Para qualquer dos dois públicos, é um trabalho sério e exigente, de respeito com o leitor e de elaboração sensível do material literário. Mas há pequenas diferenças, evidentemente. Para um público infantil eu procuro explorar situações concretas e evito considerações mais abstratas. E, principalmente, tenho que me limitar à exploração de uma intertextualidade mais limitada, para me comunicar com um leitor presumivelmente de repertório cultural menos vasto. Então tenho de desenvolver minha escrita dentro de outros parâmetros, o que torna essa atividade bem mais difícil.

Você acredita que a literatura voltada para crianças e jovens hoje é mais respeitada do que décadas atrás?
É um setor em que não podemos nos queixar. Poucos países demonstram ter tanta estima por ela como o nosso. A universidade tem quadros de primeira grandeza que se ocupam da crítica e análise da literatura infantil. Os escritores ditos “para adultos” estão sempre fazendo incursões críticas no gênero, examinando com muita seriedade nossa produção. E, diferentemente do que acontece em outros países, nossos autores não se recusam a encarar esse público com respeito. Inclusive os clássicos, de Graciliano Ramos a Clarice Lispector, de Cecília Meireles a Vinícius de Morais, de Erico Veríssimo a Carlos Drummond de Andrade. Os autores ditos “infantis” são premiados, reconhecidos e campeões de venda. Apenas a mídia tem dificuldade de perceber isso, não sei por quê.

E, por fim, como incentivar o hábito de leitura nas crianças?
Lendo diante delas. Criança aprende pelo exemplo. Ao ver adulto lendo, tem vontade de ler também.

Este texto foi feito com apoio do Itaú Social.

Quem escreveu esse texto

Paula Carvalho

Jornalista e historiadora, é autora e organizadora de Direito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo).

Matéria publicada na edição impressa #46 em abril de 2021.