
Fichamento,
Ricardo Aleixo
A ‘vidapoesia’ do poeta, ‘performer’, músico e artista visual mineiro é contada em seu recém-lançado livro de memórias
01dez2022 | Edição #64Em Sonhei com o anjo da guarda o resto da noite (Todavia), Ricardo Aleixo recria suas lembranças entre análises, críticas e reflexões para falar de sua trajetória artística e do passado-presente do país.
Por que quis escrever suas memórias em prosa?
Pareceu pertinente contar minha história, porque é uma história muito improvável de um adolescente de uma família negra riquíssima (só não tinha dinheiro), que dominava as quatro tecnologias ensinadas para mim e para minha irmã: a leitura, a escrita, a escuta e a inter-relação entre os códigos. Não é mais só a minha história. É propício estarmos hoje falando de autoria negra e de uma demanda, como diz o Sílvio Almeida, não de reconstrução de um país, mas de construção.
Conseguiremos construir este país?
Vamos recuperar o fio do sonho, que nos foi roubado. A sociedade brasileira se omitiu e o preço está aí para ser pago em não sei quantas suaves prestações. Os fantasmas da ditadura civil-militar estão aí, a não punição dos responsáveis, a construção de pactos
de governabilidade. Tudo isso nos violenta, sobretudo as camadas mais pobres da sociedade, as mulheres, a população LGBTQIA+, os quilombolas, indígenas. Alguém vai pagar o pacto — e isso, infelizmente, é mais do que um joguinho de palavras.
Como foi sua conversa com o passado e o presente?
Faço isso continuamente. Sonhei com o anjo da guarda é maninho de outro livro que escrevi no mesmo período, Campo Alegre, a história do bairro onde vivo desde os nove anos. Isso me trouxe uma contemplação da história da minha família e de mais 555 famílias que foram jogadas naquele lugar terrível e como pudemos nos transformar. No final, toda a minha obra é sobre isso, até para não ser tomado como um exemplo raro de artista e intelectual negro e pobre. Eu não surgi do nada.
Por isso não quer ser considerado uma exceção, tampouco um autodidata?
A excepcionalidade é sempre evocada para falar daquela mulher, daquela pessoa negra, indígena, da periferia, nunca das pessoas que tiveram um berço. Eu sou muito vaidoso, qualquer pessoa que me leia saberá disso; não é por falta de vaidade que recuso a pecha de excepcional. O que quero dizer é que recebi a formação que me permitiu fazer a trilha que fiz. Ninguém usa autodidata para falar do João Cabral, do Ferreira Gullar. Não sou eu que vou carregar esse peso; arrumem outro.
Que outros rótulos incomodam?
Não me incomodam mais — uma das coisas boas do envelhecimento é poder me divertir com o que falam. Mas não vejo sentido em, em 2022, eu ser lido como poeta negro, a menos que a sociedade brasileira resolva falar “fulano é um dos grandes poetas brancos”. Parece que já está dado: escritor tem que ser homem, branco, bem-nascido. E eu estar dando esta entrevista em um hotel no bairro de Higienópolis é uma dupla piada, porque estamos falando do processo de higienização do Brasil. Minha mãe chamaria de ironia do destino.
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Acredita em destino?
Acredito em uma noção de destino que não é a que o Euro-ocidente definiu. Acredito em Ori, destino nessa medida em que está em você o que vai acontecer e, ao mesmo tempo, a possibilidade de alterar rumos.
E em anjo da guarda?
A figura do anjo é muito presente na minha formação. Falar da sua presença é também lançar luzes sobre o que o livro representa para mim: a despedida desse menino que sofreu muito pela origem pobre, por ter nascido negro num país racista, por ter perdido a visão. Agora ele pode seguir o rumo dele e eu sigo o meu. Ele fica com o anjo da guarda e eu, com o anjo da vanguarda.
Matéria publicada na edição impressa #64 em dezembro de 2022.
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