
Fichamento,
Rafael Gallo
Escritor paulista lança romance vencedor do prêmio Saramago sobre a derrocada de um artista e a masculinidade catastrófica
01mar2023 | Edição #67Dor fantasma (Globo), terceiro livro do premiado Rafael Gallo, narra a descida ao inferno de um pianista autocentrado e cruel que sofre uma amputação na mão.
O protagonista de Dor fantasma é um pianista clássico. Qual é sua relação com a música?
Sou formado em música. Trabalhei com trilhas para audiovisual, dei aulas sobre isso. Mas, no trabalho, apesar de eu amar música, eu só gostavam mesmo de 10% do que eu fazia, 90% era gastura. Queria fazer algo mais autoral e fui para a literatura. Quando cheguei aos trinta anos, escrevi meu primeiro livro de contos, sem ter exatamente um projeto de ser escritor. O livro ganhou o prêmio Sesc de Literatura e foi publicado; e escrever passou a ser meu ofício e a música, um hobby.
Seu livro de estreia foi premiado, o segundo ganhou o prêmio São Paulo de Literatura e o terceiro levou o Saramago. Tudo o que você escreve vira prêmio?
Cara, não me pergunte por quê. É também um bocado de sorte você pegar o jurado feito para ler seu livro. O Saramago eu achava que não ganharia nem a pau. Comecei a escrever Dor fantasma em 2016, mandei a primeira versão para a editora no final de 2019 e veio a pandemia. Em 2020 e 2021 não escrevi quase nada. As pessoas que leram a primeira versão não gostaram. Pensei: “Pronto, escrever foi dos trinta aos quarenta, agora vai ser outra coisa”. Daí saiu o edital do Saramago com um novo limite de idade, quarenta anos, a idade que eu tinha então, e resolvi tentar. Ninguém tinha gostado da primeira versão de Dor fantasma, mas não consegui escrever outra coisa. Fiz então uma nova versão e mandei — fui o último a mandar a inscrição.
Como surgiu Rômulo, o protagonista?
Eu tinha algumas ideias. Uma era a do grande pianista que sofre uma amputação na mão. Quando comecei a escrever, tinha passado num concurso para escrevente no Tribunal de Justiça. Tive muita dificuldade para me adaptar ao novo emprego e estava passando por problemas pessoais. Achei que a saga do Rômulo falaria mais do meu momento do que se eu contasse a história de um cara que virou escrevente e não conseguia mais escrever — isso seria muito chato. Mas eu não queria só falar de um artista que deixa de ser artista. Queria escrever sobre o que é mais tipicamente masculino em nossa cultura. Rebentar, meu livro anterior, foi o livro da mãe, e Dor fantasma, o do pai, do patriarcado. Para falar do que a escritora portuguesa Inês Pedrosa chama de analfabetismo afetivo dos homens. Aí surgiu o filho de Rômulo. Em Rebentar, há uma mãe e um filho ausente que é uma presença absoluta para ela. Em Dor fantasma, há um filho presente, mas que é uma ausência absoluta para o pai. Se pudesse, ele faria o filho sumir.
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Essa alienação é a dor fantasma dos nossos tempos?
Foi uma das coisas das quais quis tratar. Criar um protagonista detestável talvez não seja uma boa ideia, mas eu queria mostrar que, apesar do acidente trágico na vida de Rômulo, é ele que provoca a sua ruína. Em vários momentos ele tem chance de encontrar uma saída, mas não, ele sempre foi aquilo que se tornou. É esse o jogo: ele se enxerga naquilo que ainda não é e não se vê naquilo que sempre foi.
Foi difícil lidar com um personagem tão detestável?
Ele era mais ainda, dei uma amenizada. Quando comecei a escrever, não estava pensando nisso, mas ele é o tipo de figura que está por trás do bolsonarismo, um poço de ressentimento com suas certezas absolutas. É a tragédia desses caras todos: eles se afundam no próprio buraco, mas, até chegar lá, destroem muita gente. Antes de perder a mão, o Rômulo já vinha causando estragos, o acidente só tornou isso mais agudo. Na ficção, essa agudização é boa, mostra como esse tipo de vida pode dar uma merda muito grande.
Matéria publicada na edição impressa #67 em março de 2023.
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