Fichamento,
Marcelino Freire
Pedra sobre pedra, escritor pernambucano constrói ‘romance megalítico’ sobre um pai, um filho e o silêncio entre eles
01dez2024 • Atualizado em: 29nov2024 | Edição #88 dezEscalavra (Record), segundo romance do autor, fricciona a linguagem sob as bênçãos de Iansã para fazer uma arqueologia poética do sertão, da solidão e do descaso.
O que é um livro megalítico?
Sou muito apaixonado por assuntos de civilizações antigas, que envolvem múmias, ruínas. Quando era adolescente, queria ser arqueólogo. A capa de Ralé, meu livro de contos de 2003, são duas múmias abraçadas, o casal gay mais antigo da Holanda. Meu primeiro romance, Nossos ossos [2013], eu chamava de romance arqueológico. Daí para o megalítico foi um passo.
Inclusive tem um monumento megalítico no vale do Catimbau, bem pertinho de onde eu nasci, Sertânia [PE]. Essa realidade de pedras, de deserto, óssea e funérea, é muito sertão pernambucano. Eu procurava uma linguagem que friccionasse com o livro, pedra sobre pedra. Romance megalítico é uma espécie de ambição de sair dessa convenção de capítulos.
Foram dez anos para lançar o segundo romance?
Depois de vários livros de contos, acreditava ter encontrado uma técnica para o romance. Fiquei feliz: “Maravilha, agora vai ser fácil”. Que nada. Eu já tinha o título, Escalavra, de escalavrar, friccionar. E já sabia que seria a história de um pai, um filho e o silêncio entre eles, que era o silêncio entre mim e meu pai, que, quando eu nasci, tinha quase sessenta anos. Já sabia o que era, mas não tinha encontrado o tom nem a linguagem. Quando me aproximei mais da linguagem megalítica, o livro começou a me emocionar. Eu ficava me perguntando quem sou eu no meio dessas pedras.
Quem é Marcelino na fila das pedras?
Só um pó. Desde que nasci, tenho muita preguiça para viver. Eu falava para minha mãe: “A senhora saia de Sertânia”, porque se eu continuasse lá, acho que morreria. Ela saiu de Sertânia quando eu tinha três anos. A família toda se mudou para Paulo Afonso, na Bahia, de lá para o Recife e depois para São Paulo. Eu sou o pó que o vento vai levando e esse processo migratório está no que escrevo.
Em certo ponto de Escalavra está a pergunta: “é mais um livro sobre pobreza?”. Volto a pergunta: é isso?
A cantora Mercedes Sosa, que eu amo, falava: “Enquanto existir uma pessoa passando fome, canto para ela”. Eu canto para um lugar que ainda está nessa desigualdade. Infelizmente, é mais um livro sobre isso. E também é um livro sobre solidão, descaso, silêncio.
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Depois de ter escrito, percebi que escalavra tem calar no meio e pensei: “Ave Maria, é por aí mesmo. Palavra, lavra, lavoura”. Na versão final, foi ficando mais metalinguístico, a feitura do livro foi tomando conta: quem refila, quem dobra, quem entrega o livro que a gente compra? E na minha vida pessoal: meus irmãos mais velhos trabalhavam na construção civil, viajavam para construir ferrovias e pontes e mandavam o dinheiro para que os mais novos pudessem estudar. Da mesma forma que muita gente morreu para erguer aqueles monumentos megalíticos, quem é que morreu, quem é que abriu mão de seu sonho para eu poder fazer esse livro, publicado lindamente?
Mas também, no meio da escrita, apareceu Iansã [na personagem de uma avó chamada Bárbara] e a narrativa vai para essa força da natureza, é o vento de Iansã que eu quero. É a possibilidade de mudança, então é também um livro sobre a esperança de que as coisas mudem.
Escrever é uma esperança?
Terminei o livro, agora o mistério está entregue. O mistério da fé: sempre digo que a fé remove frases. E a poesia é a fé suprema, a comunhão inclusive com quem veio antes. Esse fogo é muito antigo, vem passando de um para o outro, minha missão é deixar aceso, em ebulição. Para mim, a revolução sempre será poética.
Matéria publicada na edição impressa #88 dez em dezembro de 2024. Com o título “Marcelino Freire”
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