Fichamento,

Ana Johann

Roteirista e diretora de cinema paranaense estreia na literatura com romance sobre uma mulher em busca de seu desejo e de liberdade

01set2023 | Edição #73

Para não morrer de verdade, a protagonista de História para matar a mulher boa (Nós) rompe com as expectativas de seu meio para criar sua própria narrativa de vida.


História para matar a mulher boa, de Ana Johann, lançado pela Nós

Por que matar a mulher boa?
Para matar um tipo de mulher, a que eu entendo nesse arquétipo de “boa”. A subserviente, que está sempre cuidando dos outros. É só olhar para nossas famílias: são as mulheres que cuidam dos idosos, dos filhos, dos maridos, das casas, e ainda trabalham, fazem um milhão de coisas. Essa mulher tão boa que não questiona seu papel. Eu cresci com essa mentalidade cristã de que a gente não pode ser egoísta — mas isso não se aplica aos homens. É egoísmo pensar nas minhas vontades, nos meus desejos? Como posso me relacionar com o mundo se eu não me entender primeiro? É preciso matar essa mulher que é tão boa a ponto de não mudar nada.

E a sua mulher boa morreu?
Não é possível matá-la totalmente, porque a gente está inserida em uma cultura. Uma das coisas que trato em meus filmes e no livro é do desejo e da sexualidade. Acredito mesmo que o gozo é uma resposta, porque o prazer foi negado para as mulheres. Essa imagem cristã da Maria, a mulher que tem um filho sem desejo e sem sexo, é muito forte. Muitas Marias aparecem na vida da Helena [protagonista do romance] e em certo momento ela não sabe mais quem é quem. O primeiro título que pensei para o livro era “Histórias para ela não morrer de verdade”. Está até bordado em um paninho. Mas desisti dele por ser muito literal.

No livro, você fala também da violência física, mas, principalmente, da violência psicológica contra a mulher. Você se inspirou em histórias reais?
Sim, de amigas próximas, ou de amigas contando sobre outras amigas. Vou misturando as personagens, construindo histórias de mulheres que passaram pela minha vida. Eu nasci numa vila rural, falo sobre isso nas minhas narrativas. Na cidade, a gente tem uma delegacia, os vizinhos, a polícia. Na vila rural, temos a igreja e o padre. A protagonista do livro foi se reprimindo, principalmente por causa das violências que foi sofrendo. A gente tem medo mesmo de ser morta, mas por quantas mortes não passamos? Escrevo também de coisas que aconteceram comigo, todas as violências que sofri e nem sabia que eram violência. Hoje eu estou dentro da terceira onda do feminismo porque trabalhei muito para estudar, me desconstruir, e isso não é feito sem dor e sem risco. Mas quem está discutindo o feminismo hoje? Eu faço parte de uma bolha, muitas pessoas ainda acham certo ser machista ou misógino.

A protagonista começa a sair da bolha pelas leituras?
Uma vez, fiz um roteiro de cinema em que a personagem começava a se modificar pelos livros, e uma pessoa que trabalhava no projeto achou isso pouco crível. Mudar por meio dos livros e da leitura é lento. A literatura aceita essas minúcias, mas o cinema, fora o de arte ou o experimental, não. Os livros me modificaram e me modificam. Não que precisem fazer isso, me irrito quando acham que temos que cumprir essa missão, como se não bastasse escrever e viver. Mas podem fazer, como para a protagonista, que na leitura se depara com universos e questões antes desconhecidas.

Quais livros foram transformadores para você?
Vou me entregar aqui. Um livro que realmente marcou a minha infância, e uso na história da personagem, é o Marcelo, marmelo, martelo. É um infantojuvenil e foi um divisor de águas na minha vida. Para alguém vivendo em um mundo sem aberturas, se deparar com um personagem que pode fazer perguntas fora de uma lógica a que estamos acostumados abre possibilidades imensas. É simples, mas potente: ao inverter as coisas e os nomes delas, você está questionando toda uma cultura.

Quem escreveu esse texto

Iara Biderman

Jornalista, , editora da Quatro Cinco Um, está lançando Tantra e a arte de cortar cebolas (34)

Matéria publicada na edição impressa #73 em agosto de 2023.