Especial Pantanal, Memória,
Floresta de pesadelo
O premiado fotógrafo Lalo de Almeida conta o que encontrou e descobriu sobre o Pantanal desde o grande incêndio de 2020
01ago2022 | Edição #60
Fotos de Lalo de Almeida do incêndio de 2020 Lalo de Almeida
Durante 2020 e 2021, o fotógrafo Lalo de Almeida foi várias vezes ao Pantanal. Nessas viagens, fotografou o incêndio que destruiu mais de 20% do bioma, em 2020, para uma série feita com o repórter Fabiano Maisonnave para a Folha de S. Paulo. As fotos venceram a categoria meio ambiente do World Press Photo, uma das mais importantes premiações da área. Passado o incêndio, Lalo voltou várias vezes ao local, reunindo imagens de outros desastres ambientais, como o transbordamento de rios assoreados e, também, da recuperação de áreas devastadas pelo fogo. Neste depoimento para a Quatro Cinco Um, ele conta sobre sua experiência.
“Em junho de 2020, começou a entrar no radar a questão das queimadas no Pantanal. Eu e o [repórter] Fabiano Maisonnave tínhamos viagem agendada para a Amazônia, mas propusemos ao jornal passar uma semana no Pantanal. No final de julho fomos para Cuiabá, para entrar no Pantanal Norte por Poconé. Um pouco antes de chegar ao Sesc Pantanal, veio um bombeiro desesperado dizendo que a estrada estava interditada. Não dava nem para chegar ao Sesc, que era a base dos bombeiros.
Ali perto fica a Fazenda São Francisco do Perigara, a maior concentração de araras azuis do mundo. Pegamos um carro 4×4 para ir à fazenda. Na estrada de terra, a paisagem era toda preta e cinza. Quase chegando à sede da fazenda, vimos uma manchinha marrom nesse chão preto: era um veado morto. Enquanto eu fotografava, o Fabiano foi um pouco para a frente. Quando o encontrei, ele estava quase chorando. Embaixo da árvore havia vinte macaquinhos-pregos carbonizados; pareciam crianças mortas. Entendi que as queimadas no Pantanal eram muito diferentes do que eu tinha visto até então. O que mais me impressionou foi a quantidade de bichos mortos, os filhotes que perderam os pais e ficaram perambulando sozinhos.
Saí do Pantanal com o coração partido; precisávamos voltar. Propus isso ao jornal, mas não quiseram, não tinha dinheiro, aquele papo. Decidi ir por minha conta. Era começo de setembro, peguei minha mulher e minha filha e fui para a Transpantaneira. Fiquei fotografando ao longo da estrada, as pontes pegando fogo, os corixos, que são como umas lagoas que se formam ao longo das pontes, secando, lontras e jacarés fugindo. Também era muito louca a falta de empatia das pessoas. No hotel em que estávamos, os turistas ficavam na piscina, no meio da fumaça, tomando cerveja como se nada fosse. Minha mulher ficou duas semanas deprimida quando voltou para São Paulo.
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Viajei a trabalho de novo, fui para o Parque Estadual Encontro das Águas, que concentra uma população enorme de onças-pintadas, e para a Terra Indigena Guató. No começo de outubro, voltamos ao Pantanal Sul, à Serra do Amolar. Na estrada saindo de Cuiabá, a gente viu mais de trinta cervos pantaneiros abrigados nas lagoas. Em Corumbá, o ar estava tão quente que ardia no rosto, um ambiente apocalíptico mesmo. Antes de chegar à Serra do Amolar tivemos que recuar por causa do fogo. Voltamos no dia seguinte e parecia que tinha nevado, por causa das cinzas. A gente começou a andar nessa floresta de pesadelo, e uma das primeiras coisas que achamos foi uma ave carbonizada, presa num galho. O fogo passou com tanta velocidade que nem as aves conseguiram voar. Vimos uma anta, já perto do lago, totalmente carbonizada, uma família de bugios e sucuris a poucos metros da lagoa. Já fotografei várias queimadas na Amazônia; nunca vi nada igual.
‘Não vamos abandonar’
As coberturas jornalísticas têm essa mania de dar a notícia e depois esquecer o assunto. Falamos: ‘Não vamos abandonar’.A gente queria se aprofundar e mostrar um pouco as ameaças que rondam o Pantanal: o assoreamento dos rios, a bacia do Alto Paraguai tomada pelo agronegócio. Vimos a tragédia do rio Taquari, que por causa do assoreamento e mau uso do solo estourou a margem e inundou permanentemente uma área, deixando as fazendas desertas. Um dos fazendeiros não se conformou e começou a construir uns diques com sacos de areia. Hoje ele já conseguiu recuperar quatrocentos hectares.
Também fizemos uma reportagem sobre o Pantanal um ano depois do incêndio. Voltamos para os mesmos lugares, a fazenda das araras, o Parque Encontro das Águas, a Terra Indígena. A sensação que eu tive é de que o Pantanal vai se recuperar. Talvez algumas áreas tenham sido perdidas para sempre, mas muitas estão se recuperando. Na Transpantaneira, eu tinha feito algumas imagens de drone em 2020 com tudo queimado. Fiz as mesmas fotos no ano seguinte, tudo verde, só algumas árvores mortas. O que aconteceu no Pantanal foi uma conjunção de fatores climáticos, o descaso das autoridades e uma certa cultura de renovar pasto com fogo. Mas as pessoas da região, em geral, têm uma relação diferente com a terra. Não que só tenha anjinho — tem desmatamento, crime ambiental, mas a maior parte das pessoas tem essa ligação com a terra, e isso me deixa um pouco mais otimista.
Nota do editor
Depoimento de Lalo de Almeida a Iara Biderman
O especial Pantanal tem o apoio de Documenta Pantanal
Matéria publicada na edição impressa #60 em julho de 2022.