Biografia,
Com crise, sem crise
Relançamento sobre Casagrande revê história do ex-jogador com as drogas e tem acréscimos acerca da sobriedade
05dez2024Os ídolos de Walter Casagrande Júnior ainda são os mesmos. O comentarista esportivo e ex-jogador de futebol fala sobre Janis Joplin, Jim Morrison e Jimi Hendrix dando ênfase à devoção que deposita nesses ícones do rock, ainda que se resigne em um ponto: “Não valorizo mais a história destrutiva deles, não vejo mais glamour”.
A mudança do olhar sobre uma geração de artistas que usou à vontade heroína, LSD, maconha, cocaína e otras cositas más para abrir as portas da percepção não veio só com o tempo. Casagrande teve sua própria trajetória como dependente químico, narrada no livro Casagrande e seus demônios, que ele assina com o jornalista Gilvan Ribeiro, um parceiro das redações. Publicada originalmente pela Globo Livros em 2013, a obra foi relançada pela Record com acréscimo de seis capítulos. Neles, os dois se aprofundam na relação de Casagrande com a Globo, trazem informações sobre o romance com a cantora Baby do Brasil e se estendem sobre atuações filantrópicas.
Todos os capítulos tiveram alguma atualização, conta Ribeiro em entrevista, sendo que o investimento mais robusto da nova edição recai sobre períodos de sobriedade. Ribeiro conta que Casagrande passou “a se empenhar em causas antirracistas e se dedicou ao Esporte pela Democracia, que reúne atletas e ex-atletas com visões mais progressistas”. “Na eleição de 2022, fez o L em apoio a Lula. Evidentemente, ninguém o proibiu, mas como é recomendado que equipes de jornalismo não se manifestem politicamente, ele sabia que havia um desgaste ali com a Globo, e algumas circunstâncias acabaram levando-o a sair da emissora”, diz o jornalista.
A pareceria entre Ribeiro e Casagrande vem de longa data. Eles se conheceram nos anos 80, quando Casagrande jogava na Europa mas vinha ao Brasil e dava seus pulos no Corinthians, time que o revelou. Ribeiro era repórter, tendo passado pelas redações da Folha de S.Paulo e do Diário Popular. Mais adiante, como editor adjunto, tornou-se colaborador da coluna que Casagrande assinava no Diário. Depois, tornou-se editor do jornal. Voltou, ainda, a reencontrar o ex-jogador no time de cobertura esportiva do canal ESPN. Compartilhavam uma visão de mundo parecida, progressista, e ficaram amigos. Assim, Ribeiro acabou sendo também personagem do livro, uma espécie de autor-intruso.
Por causa da proximidade, há descrições detalhadas do cenário desolador que Casagrande viveu em seu apartamento na zona Oeste de São Paulo sob as circunstâncias do uso abusivo de cocaína, heroína, álcool. Mesmo com três filhos e casado, ele não era capaz de frear a compulsão. O título do livro vem de episódios em que, depois de virar noites e mais noites sem dormir e sem comer, o ex-jogador alucinava e via demônios dentro de casa. O interesse por figuras satânicas vinha de outras datas, tinham valor estético e origem no deboche sobre comportamentos padronizados e o bom-mocismo. A influência da contracultura vai enriquecendo o perfil de um jogador de personalidade já muito atípica. Até que os demônios tomam forma. Um filme de que Casagrande gostava muito era O exorcismo de Emily Rose, clássico do terror. Ele passou a evitar.
O ex-jogador e comentarista esportivo diz gostar de falar o que lhe vêm à cabeça. Foi esse traço que o levou a abrir o jogo e se expor publicamente, ainda durante o período de internação ocorrido entre 2006 e 2007. A primeira entrevista foi dada à revista IstoÉ. Casagrande também detalhou seu périplo de embriaguez na Globo, em entrevista para Serginho Groisman. A ideia do livro tomou forma em seguida.
‘Cada entrevista que eu dou é como se estivesse com minha psicóloga contando minha história’
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A obra mostra a face de um homem sem medo da exposição. Espontâneo, Casagrande vai conquistando as pessoas ao seu redor, expande seu círculo de amizades para além da família e do trabalho. Muitos dos amigos são músicos. Conheceremos um homem afetuoso, o que fica evidente em um reencontro com Sócrates, velho parceiro de campo no Corinthians, durante a gravação de um programa de TV. Foi pouco antes da morte de Sócrates por problemas decorrentes do alcoolismo, como uma cirrose hepática, em 2011. Com aparência debilitada, Sócrates contorna questões sobre o vício. Casagrande percebe o desconforto, elogia o ex-parceiro, ainda que contrariado com a omissão.
Um texto de despedida por ocasião da morte de Sócrates é reproduzido em um dos momentos mais tocantes do livro, que está longe de ser um compêndio de dores e tragédias. Seja pelo amor dirigido a parceiros de futebol e aos filhos, seja pela pregação religiosa de Baby do Brasil em momentos flagrantes, essa é uma história de superação que não abandona o bom humor. E o final, sabemos, é feliz.
Como foi expor algo tão íntimo? Como foi recebido por amigos e fãs?
Eu sou uma pessoa com característica espontânea. Quando vou dar entrevista não me preparo, quando vou fazer um palestra não sigo roteiro nenhum. Gosto de falar o que me vem à cabeça, como estou fazendo neste momento com você. No geral, fui muito bem acolhido, foi muito bem vista a minha história, o modo como eu contei. Quando a história veio a público, depois da minha internação, eu saía às ruas e as pessoas me paravam, me desejavam força. Daí, Gilvan Ribeiro me procurou para que escrevêssemos minha biografia. Falei que tinha acabado de sair de alta e que não estava com cabeça. Eu tinha ficado isolado um ano, três pessoas na calçada para mim já era multidão. Em 2013, ele me procurou de novo e eu disse que topava, mas que queria que o foco fosse o meu problema com as drogas.
Por qual razão?
Queria contar a história detalhadamente para as pessoas entenderem o risco que é você se tornar um dependente químico. Usar droga não é o problema. Tem muita gente mundo afora que usa droga e trabalha, tem família e cuida dos filhos, não dá mancada. Mas quando você vira dependente químico, você não tem mais o controle de nada. Fica sem dormir, não se preocupa se tem trabalho de manhã. É bem diferente. Quando saiu o livro, conversei com pessoas que me abordavam chorando, diziam: “Olha, peguei seu livro, dei para o meu filho que estava com problema, e ele se internou”. Foi a consequência positiva do livro. Isso me fez bem porque entendi que estava ajudando pessoas com a minha história. Cada palestra, cada entrevista que eu dou falando sobre isso, para mim é uma terapia, porque é como se eu estivesse com a minha psicóloga contando minha história, colocando para fora.
Mudou a forma como vê Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison, entre outras celebridades que tiveram problemas com drogas?
Meus ídolos continuam os mesmos. A minha idolatria por eles é exatamente a mesma. O estilo de música de que gosto é rock’n’roll, blues, heavy metal, rock psicodélico, rock progressivo. É essa linha que me dá prazer. O que mudou? Eu não valorizo mais como valorizava a história destrutiva deles. Antes, o que me chamava atenção no Jim Morrison era ver que ele estava muito louco no palco, cair, sair preso. Eu pensava: “Que do caralho! Maravilhoso! É isso aí!”. É uma visão distorcida da realidade. Hoje olho para o Jim Morrison e acho ele simplesmente um puta poeta, um compositor. Para mim é um dos maiores vocalistas do rock da história, mas o cara acabou com a banda dele. Ele dava mancada no palco. Shows eram cancelados. Depois que eu fiquei limpo, comecei a rever isso e disse: “Porra, o cara era egoísta para caralho”. Ele não pensava nos outros caras da banda, só pensava nele, no prazer dele, na vida dele.
E Janis Joplin, que é uma ídola sua?
Com a Janis Joplin eu comecei a me identificar pela solidão que ela sentia, não mais pelo uso de drogas, mas pela melancolia, a ansiedade, a dificuldade de lidar com a própria fama. Quando se vira uma pessoa famosa, que todo mundo conhece, para quem todas as portas se abrem, quando se é idolatrado, a cabeça de qualquer um pira. Fui ver o documentário dela no cinema com minha psicóloga e chorei o filme todinho. No outro dia, voltei para assistir e pegar detalhes. Fui já sabendo como assistir. Comecei a ter uma visão dos meus ídolos primeiro por causa do talento deles, o que eles ofereciam como produto, música, show. Depois, olhando para a dependência, eu comecei a pensar que aquilo não tem nada de legal. Todos eles morreram.
Esse talento que você identifica neles pode derivar de uma forma de enxergar o mundo, uma maneira empática ou cheia de revolta?
Rebelde ninguém vira, você nasce, está dentro de você, da sua personalidade. As contestações fazem parte de sua personalidade. Quando você é jovem, não tem domínio dessa rebeldia. Quando você é excessivamente pensador, vê as coisas que acontecem no mundo, e ao mesmo tempo tem rebeldia, muitas vezes você quer colocar as coisas para fora e muitas vezes elas não saem totalmente, a angústia não se resolve, e a droga entra nesse espaço.
‘Rebelde ninguém vira, você nasce, está dentro de você, as contestações fazem parte de sua personalidade’
Com uma droga você desliga, com outra, você viaja, com outra, você ouve um som, fica mais agitado, ou vê cores. Cada uma tira você do seu normal de um jeito, e você para de sentir aquilo que sentia quando estava careta. A angústia e a melancolia somem. Daí você vai querer usar mais porque não suporta ser daquele jeito.
Eu acordava às dez da manhã melancólico tendo o dia inteiro pela frente, três filhos pequenos para brincar, e casado. Acho que eles lá atrás tinham os mesmos problemas, como todos nós temos. Todo mundo que vira dependente químico se identifica com boa parte dos sintomas. Eu me senti um peixe fora d’água por muitos anos. Você tenta encontrar um lugar, ou um grupo de pessoas que te façam se sentir pertencente. E a droga entra nesses momentos.
A vida é difícil para cacete. Você se sente em risco, se sente ameaçado o tempo todo. Você não quer mais, mas o corpo pede. Hoje eu entendo, mas quando era adolescente, eu via como escolha, como rebeldia.
O que o sofrimento te causou além do próprio sofrimento? Despertou em você um sujeito melhor?
Eu me conhecia muito pouco sem droga. Comecei a fumar maconha com catorze anos. Nos anos 80, passei para cocaína, drogas injetáveis. Sóbrio e são, fiquei quando fui para a Itália, por sete anos. Quando voltei para o Corinthians e o São Paulo, tudo começou de novo. Eu não sabia como eu era sem esses pensamentos distorcidos, que só fui entender quando me tratei.
O que a sobriedade me trouxe foi mais clareza. Tudo o que eu penso hoje eu sempre pensei. Sempre fui um cara preocupado com a política social do país, com a desigualdade, com a diversidade. Sempre tive tudo isso na minha cabeça. Tanto que muito jovem eu estava em um movimento pela anistia. Mas não tinha muita atitude, porque as drogas me desviavam. Depois que fiquei limpo, entendo a profundidade de todos os problemas. Tanto que trabalho com povos indígenas hoje. E me preocupo muito com dependente químico em situação de rua. Vou ao encontro de pessoas que me procuram e que precisam de ajuda.
Arrependeu-se de algo?
Não me arrependo de nada do que fiz porque senão eu não seria como sou hoje, uma pessoa esclarecida sobre esse assunto, porque passei por tudo isso. Talvez seja uma missão, porque estive várias vezes perto da morte. Se não morri, estou aqui para contar essa história e para passar tudo aquilo que adquiri de conhecimento. Não que eu saiba tudo. Minha palavra não é absoluta. Mas essa é uma história real.
O morador de rua, que você menciona, pode ter esperança ao conhecer a sua história, mas me parece também que pode haver um confronto entre a realidade dele e a realidade de alguém como você.
Primeiro, a coisa mais importante para acender a luz no fim do túnel é você se identificar com a história do outro. Quando a gente está no fundo do poço, acha que é só com a gente. Aí você vê as pessoas andando na rua, as pessoas na televisão e pergunta: “Por que comigo?”. Quando você percebe que muitas outras pessoas estão na mesma situação, você começa a se identificar e percebe que aquilo não está acontecendo só com você e que você não está sendo punido por nada. Acontece com um monte de gente.
Lá na Cracolândia, tem muitas pessoas que vieram de classe média e alta. Que fizeram faculdade, que eram empresários, médicos, eram garotos saudáveis que surfavam. O crack levou eles para a rua. Os familiares tentaram mais de dez vezes recuperar o cara. Conheci pessoas que passaram por mais de vinte internações e depois a família abandonou. Na Cracolândia não há só pessoas que não tiveram oportunidades como as minhas.
Mas e as pessoas que não têm essas oportunidades?
Isso aí precisa ter um trabalho governamental, não só do governo federal, mas também do estado e da prefeitura. Ir lá dar porrada, prender, ou empurrar de um lugar para o outro não resolve problema nenhum. Ajuda tem que ser por meio da saúde pública, da saúde mental. Aí vem gente dizer: “É, mas eles roubam os carros, eles tacam pedras”. Isso é consequência de a saúde mental estar abalada por muitos anos, de eles terem fissura da droga e não terem o dinheiro. Daí roubam.
‘Perto da morte eu estive várias vezes. Se não morri, estou aqui para passar o que aprendi’
É tão claro: bandido se esconde, foge depois de roubar; o viciado em crack rouba e volta para o mesmo lugar para comprar a pedra de crack dele, usar e ficar jogado lá no chão. A polícia acha qualquer um. Muitos lá não roubam porque são bandidos. Roubam porque são doentes, estão com a saúde mental abalada. Se estivessem limpas, essas pessoas não estariam no farol roubando ninguém.
Então faz parte do abraço ao dependente químico entender a maluquice?
Sim, e existe profissional para isso. Psiquiatras especializados, psicólogos especializados. Não é delegado, não é policial que vai resolver. Não é o prefeito, o vereador, senador, ou o governador. É o profissional especializado em dependência.
O que teria sido de você sem esse amparo?
Eu ia morrer, fácil.
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