Capa,

Diante do espelho

Num rolo de filme preto e branco de 1961, duas grandes artistas expatriadas se encontram

01abr2019 | Edição #21 abr.2019

Esta tira de filme foi feita em 1961 pela jovem fotógrafa Claudia Andujar a convite da recém-criada revista Cláudia, publicada pela editora Abril. 

Claudia desembarcara no Brasil seis anos antes e aqui pegara a câmera pela primeira vez. Ainda sem dominar o português, encontrou na fotografia uma forma de se aproximar das pessoas e conhecer o país. Algum tempo atrás, havia oferecido suas primeiras fotos de índios brasileiros à revista O Cruzeiro, mas fora despachada pelo repórter Jorge Ferreira: “Você acha que foi você quem descobriu os índios? Mulher aqui não tem lugar. Mulher não pode ser fotógrafa”, recordaria ela. Meteu os Karajá debaixo do braço e não desistiu. 

Com a ajuda de contatos nos Estados Unidos, onde morara antes de chegar no Brasil, conseguiu publicar algumas fotos. Aos poucos, as portas se abriram. Anos depois, foi também o interesse estrangeiro que a ajudou a salvar o povo que adotara como família. Aqui, Claudia ainda dava os primeiros passos em sua carreira no jornalismo. 

“Eu sou tímida e ousada ao mesmo tempo. Eu chegava lá na revista e dizia: eu tenho um conto, o senhor não quer publicar?”, lembraria Clarice, que estreou na imprensa em 1940 graças à ajuda de editores como Raimundo Magalhães Júnior e Tasso da Silveira. Clarice também construiu seu caminho no jornalismo, depois de abandonar a carreira em direito: “Minha ideia era estudar advocacia para reformar as penitenciárias”, dizia. A preocupação com a vulnerabilidade humana era uma das coisas que unia Claudia e Clarice.

Ucrânia e Hungria 

As 26 fotos desta tira são fruto da notoriedade de Clarice, “simpática e interessante contista”, como descreve a matéria da revista. Mas são também um jogo de espelhos, com reflexos cujos contornos só vão emergir com o tempo. De Nikon em punho, suspeito que Claudia só visse a si mesma quando olhava pelo visor os ângulos agudos daquele rosto europeu. Tinha diante de si uma escritora que transforma em linguagem os cantos obscuros da vida psíquica, que tornava palpável o que era abstrato. Claudia faria o mesmo em sua pesquisa fotográfica sobre o universo espiritual Yanomami. 

Nas fotos em que uma sombra cobre o rosto de Clarice, ela chega a lembrar a jovem Claudia, sobrepondo a história de desterro das duas crianças. “Me vi criança na Europa. Uma Europa na guerra, uma criança que tenta desesperadamente se ligar a alguém. Amar e ser amada, compreendida, era o desejo de minha infância. E não consegui”, disse Claudia. Mas, de olho na lente da câmera, Clarice também só via a si mesma. “O adulto é triste e solitário”, dizia, “quando me comunico com um adulto na verdade estou me comunicando com o mais secreto de mim mesma”.

Haia e Claudine cresceram entre amigos imaginários. Clarice e Claudia mudaram de nome porque não podiam mudar seus traumas históricos. A perseguição dos judeus na Ucrânia e o massacre dos judeus na Hungria, a Guerra Civil Russa e a Segunda Guerra Mundial. Neste encontro fotográfico, não falaram sobre isso. Estavam sozinhas, acompanhadas de sotaques carregados. O rosto eurasiano de Clarice ecoava seu estranho português. A vida itinerante de Claudia estava contida na riqueza de sua pronúncia. Claudia e Clarice usavam a língua de forma precisa. 

A sessão de fotos muda de tom quando entra a máquina de escrever. Clarice mergulha em seu mundo

Levemente constrangida na fotografia, Clarice parece encontrar alívio ao imitar seu próprio retrato, um quadro pintado por Giorgio de Chirico, companheiro metafísico. Clarice conta que em seu encontro com o pintor na Itália ele dividira as mulheres em dois tipos, sopranos e contraltos: ou sempre nervosas, porque nunca atingem o máximo, ou calmas e pacíficas, “pois não precisam se esganiçar para alcançar o que jamais poderão”, explica a revista. 

A beleza destas tiras fotográficas está no movimento da sessão, na forma como Claudia se distancia e se aproxima de Clarice, uma aproximação musical. Nas fotos de plano aberto, é possível ver a integridade da escritora, perfeitamente legível para o jornalismo. Mas as fotos não rendem, Clarice não está ali. O quadro na parede é mais complexo e expressivo. 

A sessão muda de tom quando entra a máquina de escrever. Aninhada no colo, a máquina permite a Clarice abandonar a sala e mergulhar em seu próprio mundo. Parece mais à vontade. Ela então se entrega à fotografia. Também permite que Claudia avance sutilmente. Os retratos se aproximam, a tensão cresce. 

Por um breve momento, Clarice fecha os olhos, como se estivesse inteiramente absorta. É uma imagem sublime. “Enquanto eu não escrevo, eu estou morta”, disse em sua última entrevista. Uma frase paradoxal, que parece capturada pela fotografia. 

Anos depois destas fotos, Claudia usaria a fotografia para salvar um povo inteiro do genocídio. 

Quem escreveu esse texto

Thyago Nogueira

Curador e editor, dirige o departamento de Fotografia Contemporânea do Instituto Moreira Salles e é editor-chefe da revista ZUM.

Matéria publicada na edição impressa #21 abr.2019 em março de 2019.