Coluna

Djaimilia Pereira de Almeida

Onde queremos viver

Uma pestana

Dois livros assinados por fotógrafos levam a refletir sobre a presença e a ausência de nossos pais

21fev2020 | Edição #31 mar.2020

Passei as últimas semanas na companhia de dois livros: Não pai, do fotógrafo e escritor português Daniel Blaufuks, e Mother, do fotógrafo inglês Paul Graham. Não pai reflecte sobre a ausência do pai na vida do seu autor: “Descobri que o meu pai tinha morrido mais ou menos um mês depois do acontecimento. Um curto e-mail da sua viúva resumia tudo ao meu irmão e a mim. Estranhamente, o e-mail tinha sido enviado para o meu irmão, que deveria ter sido mais difícil de encontrar do que eu, um texto curto e seco, mas não muito diferente da nossa não relação desde que ele e a minha mãe se divorciaram quando eu teria uns dois anos apenas”.

Mother colige as fotografias que Graham tirou à sua mãe, na velhice. São imagens de rosto de uma mulher idosa cabeceando, cujo foco é subtilmente deslocado para diferentes pontos da sua face envelhecida: de uma ruga para outra, de uma pestana para a olheira e depois para a menina do olho, numa atenção paciente do fotógrafo (notada pelo crítico Sean O’Hagan, no The Guardian) à progenitora sentada, devedora do Whistler de Arranjo em cinza e negro, privilégio de alguns filhos, como lembra Não pai.

Ambos os livros desafiam a sua condição de possibilidade, na medida em que se debatem com a constituição dos seus ascendentes. Mais do que a existência ou a aproximação da morte dos progenitores, questionam a busca e o logro antecipado por uma fotografia derradeira: no caso de Paul Graham, um olhar sobre o fim de vida da sua mãe; no caso do testemunho de Blaufuks, uma fotografia do pai que não chegou a ser tirada, não fotografia, perseguida, quem sabe, a vida inteira.

Vemos o avesso do não pai de Blaufuks no rosto da matriarca de Graham, a ponto de nos questionarmos sobre aquilo que damos como adquirido. A consciência, na maioria das vezes indisputada, que os nossos progenitores têm da nossa presença, dada de barato em todas as vezes em que vimos o nosso pai e a nossa mãe adormecerem diante de nós: o afrouxamento das maçãs do seu rosto à medida que o sono toma conta dele, a oferenda da sua fragilidade, que nos põe em contacto com a nossa finitude, visões que não costumamos considerar nem minoritárias, nem privilegiadas.

Lado a lado, o não pai e a mãe fotografada de perto. Não pai coloca a tensão na medida mais extrema possível. Que espaço ocupa aquele que não tem lugar, pergunta, o que desloca o foco para a ocupação do espaço da nossa vida. Se quem nunca fez parte dos nossos dias está por todo o lado (estará: como sabê-lo?), de que modo confiar no visível: na imagem capturada pela lente, na própria fotografia, que assim vê a sua condição de possibilidade questionada? O que nos mostra uma imagem, qualquer uma, se não podemos confiar nos espaços vazios tomando-os como vazios, nas cadeiras desocupadas, nas mesas às quais ninguém se senta, nas imagens em que não aparece ninguém, mas estão apinhadas de gente?

Não pai reenvia-nos a Mother, o tributo de Graham, cujas imagens revelam uma mulher velha com sono. Que nos mostrarão que não estamos a ver? Como voltar a confiar naquilo que nos parece mostrar seja que imagem for, depois de lermos a história do não pai? Ambos os livros levam-nos a fazer contas à vida e olhar para os nossos pais como pessoas independentes de nós. Seres que nos ignoraram, ou que se dedicaram a nós por inteiro, que, em alguns casos, veremos partir à nossa frente, que tiveram suas razões e desejos, que compreendemos ou não, conhecemos ou não. Não consigo deixar de olhar para as fotografias da mãe de Graham e questionar-me sobre os sonhos daquela senhora velha, drogada de sono, a vida dentro da sua testa enrugada. Com que sonhará? Saberá que o filho a fotografa? Dará pela sua presença antes de, a certo ponto, abrir os olhos e o olhar de frente? Mesmo nesse instante em que os seus olhares se cruzam, mediados pela câmara, será que se veem? Não sabemos bem quem são os nossos pais, nem se será possível, alguma vez, fotografar o fio de sonhos de alguém.

Mistério

Dormindo, a mãe de Graham é revelada pelo filho como um mistério. As fotografias de Mother testemunham que suas imagens revelam uma pouquíssima parte daquilo que se propôs fotografar. Vemos tanto, de tão perto e, afinal, tão pouco, apenas uma pestana do que vai na cabeça da velha mulher à medida que adormece, quase tão pouco como vemos do pai de Não pai, pai como uma pestana que entra no olho, coisa ínfima que perturba o olhar — e o inflama.

Diante da presença ostensiva, no caso de Graham, Daniel Blaufuks põe-nos frente ao todo que uma fotografia não alcança, deixando-nos de mãos quase vazias. O que é uma fotografia? E o que é o foco, numa imagem? As deslocações miniaturais de foco de Paul Graham são como os circunlóquios que usamos perante as nossas mães quando não as queremos magoar, nos momentos em que as tratamos como se fossem feitas de vidro.

Quem nunca se questionou sobre a felicidade de testemunhar o curso de vida dos seus pais enquanto pessoas, pessoas de cuja fotografia podemos ou não ser o punctum, sai da leitura destes dois livros acordado. Os outros poderão encontrar neles irmãos que desconheciam ter.

Quem escreveu esse texto

Djaimilia Pereira de Almeida

Escritora angolana, publicou Esse cabelo (LeYa).

Matéria publicada na edição impressa #31 mar.2020 em fevereiro de 2020.