Literatura,

Comida é pasto

Livro vencedor do Man Booker International Prize 2016 faz retrato poderoso e violento da sociedade coreana

28nov2018

“Eu acredito que os humanos deveriam ser plantas.” Com esse verso, o poeta modernista coreano Yi Sáng (1910-37) fez frente ao colonialismo japonês que se estendeu em seu país de 1910 até o final da Segunda Guerra. Duramente censuradas à época, as palavras de Yi ultrapassam os limites da desobediência civil e combatem o imperialismo vizinho pela defesa do direito a um alheamento vegetativo. 

Influenciada pelo poeta, com quem compartilha o gosto por imagens oníricas alusivas à violência colonial, a escritora coreana Han Kang escreveu A vegetariana, romance que recebe uma nova tradução brasileira pela Todavia (uma edição da Devir saiu em 2013 e está esgotada).  

Em 2007, ao consolidar numa narrativa única três contos já publicados, a autora lançou o livro, que dois anos depois foi adaptado para o cinema. Em 2016, sua edição em inglês arrebatou o Man Booker International Prize, deixando para trás autores consagrados como Kenzaburo Oe, Elena Ferrante e Orhan Pamuk.  

As três partes que compõem o romance contam em ordem cronológica, mas de pontos de vista distintos, a história de Yeonghye, uma mulher pacata e submissa que, num ato inesperadamente voluntarioso, decide parar de comer carne. O motivo, logo se descobre, são os sonhos noturnos que a perturbam. Os pesadelos (único momento em que a protagonista tem voz no romance) funcionam como parênteses do erotismo e da violência do marido de Yeonghye, narrador dessa primeira parte. 

Homem pouco afeito a excessos, que escolheu como esposa justamente uma moça a quem faltavam traços extraordinários, ele hesita entre a incompreensão e a raiva diante da intransigência silenciosa que ela manifesta quanto a sua resolução. A nova dieta de Yeonghye o faz perder pontos com o chefe e lhe vale comentários pouco afáveis num importante jantar de trabalho. “O vegetarianismo vai contra nossos instintos. Não é algo natural”, diz uma voz à mesa. 

Abdicando da carne, a jovem de fato refreia impulsos naturais, mas isso não a afasta do estado de natureza. A originalidade do romance se encontra no abandono da dicotomia entre humano e animal para inserir na equação um terceiro e decisivo componente, prenunciado pelo verso de Yi Sáng. Diante da opressão de uma sociedade hierarquizada e patriarcal, de cuja força castradora nem mesmo os homens escapam, o único ato de resistência possível é se bandear para o reino vegetal pela privação da carne e do sexo. Daí o poder subversivo e inquietante do silêncio no romance. 

A premissa, que poderia ser risível nas mãos de um escritor de estilo menos preciso, assume contornos trágicos na prosa elegante e bem traduzida de Han. Quando a esposa se recusa a fazer sexo, o marido a violenta (agressão recorrente na obra). Vencida, a jovem se deixa penetrar “olhando para o teto, em meio ao escuro, com uma expressão vazia, como se fosse uma escrava sexual em tempos de guerra”. 

Essa não é a única passagem que permite traçar uma analogia entre o conflito da protagonista e a Coreia: a dominação que resvala em barbárie, tema que perpassa a história do país, é personificada na figura do pai de Yeonghye, um veterano saudoso da Guerra do Vietnã que educou os filhos com castigos cruéis. 

Diante da opressão, o único ato de resistência possível é se bandear para o reino vegetal

Numa passagem de requintada violência em que lembrança e sonho se confundem, a jovem rememora o dia em que, ainda pequena, é mordida pelo cachorro da família. Seguindo a tradição local, o pai mata e cozinha o animal, oferecendo um banquete aos amigos. Mas ele vai bem além da obediência aos costumes: amarra a coleira do animal a uma moto e o faz dar voltas no quarteirão, pois “ouviu de alguém que os cachorros que morrem correndo têm a carne mais macia”. A criança assiste a tudo com a passividade de um filhote dócil: “Disseram que para curar a mordida do cachorro, eu devia comer um pouco de sua carne”. 

Talvez por isso a batalha de Yeonghye seja também contra a própria brutalidade. “Em meus sonhos, quando corto a cabeça de alguém com uma faca, quando não consigo cortá-la de uma ponta à outra e seguro-a pelos cabelos para assim finalizar o corte, […] sinto a saliva se acumular na boca.” Renunciando cada vez mais ao próprio corpo, que definha a olhos vistos, a jovem diz: “Só confio nos meus peitos. […] com eles não posso matar nada nem ninguém”.

A mudança abrupta dos hábitos da protagonista espanta e mobiliza a família. Em um almoço organizado para demovê-la da nova dieta, a insipidez habitual da jovem ganha ares de revolta quando ela ignora as súplicas da mãe e, pela primeira vez, desobedece a uma ordem paterna com uma resposta à la Bartleby: “Não como carne”. E a agressividade do pai se contrapõe à autonomia recém-adquirida da filha. 

A segunda parte é narrada em terceira pessoa, do ponto de vista do cunhado de Yeonghye, um videoartista que passa por um bloqueio criativo. Ao ouvir da mulher que a irmã nunca perdera sua marca mongólica — mancha na pele comum em bebês orientais —, ele é tomado por uma obsessão erótica. Enquanto o marido da jovem vegetariana responde à transformação da esposa pela repressão, ele o fará por meio da sublimação artística. Na cena mais plástica do livro, ele recobre o corpo dela e o próprio com uma pintura de flores e filma essa conjunção meio carnal, meio vegetal.  

Uma artista da fome

Os efeitos desse ato serão dramáticos, conforme se descobre no final, quando acompanhamos algumas horas da vida da irmã de Yeonghye, já divorciada e às voltas com os cuidados do filho pequeno e da irmã, agora internada num hospital psiquiátrico. Como todos os personagens, ela também procura uma via de acesso ao interior incomunicável de Yeonghye e, ao fazê-lo, é atravessada por uma epifania que remonta à infância das duas. 

Marcado por uma concisão poderosa, em que camadas de silêncio espesso mas eloquente encobrem o erotismo e a loucura latentes de uma sociedade, esse livro se desdobra em muito mais do que suas 176 páginas.

Quem escreveu esse texto

Rita Mattar

É editora na Companhia das Letras.