Literatura,

A vida (in)visível

Romance de Ralph Ellison e ensaios de James Baldwin discutem a busca da identidade dos afro-americanos

01nov2020

“Sou um homem invisível. Não, não sou um espectro como aqueles que assombravam Edgar Allan Poe; nem sou um ectoplasma do cinema de Hollywood. Sou um homem com substância, de carne e osso, fibras e líquidos, e talvez até se possa dizer que possuo uma mente. Sou invisível — compreende? — simplesmente porque as pessoas se recusam a me ver. […] Quando se aproximam de mim, só enxergam o que me circunda, a si próprios ou o que imaginam ver — na verdade, tudo, menos eu.”

É esse o início de Homem invisível, romance premiado de Ralph Ellison (1914-94) que foi lançado nos Estados Unidos em 1952 e que, após vender milhares de exemplares e ser traduzido para dezenas de línguas, chega apenas agora por aqui. E, sorte nossa, vem acompanhado neste ano de 2020 do lançamento da edição brasileira de Notas de um filho nativo, de James Baldwin (1924-87), publicado em 1955. 

Quase setenta anos depois, os temas de ambas as obras ainda são, infelizmente, muito contemporâneos. Os dois lançamentos no Brasil foram  impulsionados provavelmente pelos acontecimentos recentes de exarcebação da violência racista e pelo alcance e impacto mundial de movimentos como Black Lives Matter. Ambos trazem nessas edições, coincidentemente, os prefácios comemorativos de trinta anos que Ellison e Baldwin escreveram respectivamente para suas obras. E de trinta em trinta anos, podemos perceber como quase nada mudou. 

Homem invisível e Notas de um filho nativo foram publicados no período em que foi gestado o movimento dos direitos civis nos Estados Unidos. Depois de os negros norte-americanos terem lutado ao lado de soldados de várias origens diferentes na Segunda Guerra Mundial sob a mesma bandeira e terem experimentado talvez a ilusão de uma vida “em comum” com seus compatriotas, além de terem vivido outras realidades de convivência “multirracial” na Europa, foi anunciado, em 1948, por meio de um decreto, o fim oficial da segregação racial nas Forças Armadas dos Estados Unidos, o que marcou o início do movimento pelos direitos civis no país. 

É nesse contexto que são publicados o segundo romance de Ralph Waldo Ellison e o primeiro livro de ensaios de James Baldwin. Logo depois, entre os anos de 1955 e 1956, aconteceram os boicotes aos ônibus em Montgomery, iniciados pela resistência da ativista Rosa Parks em se sentar na área reservada aos negros em um ônibus — ato que fez com que fosse presa em 1956.

Desafios

O fio condutor da história do personagem sem nome de Ralph Ellison é a busca da sua autorrealização e a superação dos obstáculos impostos por sua raça e classe social. As quase quinhentas páginas de Homem invisível —a ficção científica O homem invisível, de H.G. Wells, já tinha sido publicada no século anterior, mas mesmo assim Ellison insistiu para seu editor manter seu título original — contam a história de um homem em sua saga para construir a própria vida apesar das barreiras que encontra pelo caminho. 

O narrador expõe não apenas os desafios de ser um homem negro em uma sociedade que privilegia os brancos, mas também os desafios impostos pela sua posição social dentro de um sistema político e econômico que escolhe algumas pessoas em vez de outras, além de apresentar as reflexões de um indivíduo que quer acreditar no coletivo. Talvez por isso a maioria dos críticos norte-americanos o tenha distinguido dos “romances de protesto” dos autores afro-americanos que o precederam. 

Com esse romance, Ellison ganhou o maior prêmio literário do país em 1953, o National Book Award: foi a primeira vez que um autor negro entrou na lista dos vencedores. Depois dele, James Baldwin foi duas vezes finalista (com O quarto de Giovanni e Just above my head), mas demorou trinta anos para que o prêmio fosse concedido pela segunda vez para um outro autor afro-americano: Alice Walker ganhou a premiação, em 1983, com A cor púrpura

Com o prêmio, Ellison mostrou que tinha conseguido, assim, superar mais um desafio: o de alcançar um leitorado não exclusivamente negro ou politicamente engajado, e ainda acenar com a possibilidade de ser reconhecido como um autor norte-americano de literatura norte-americana. Sem abdicar, diga-se, de sua identidade e de relatar seu universo em sua obra.

A narrativa de Homem invisível veio da ideia de Ellison de escrever uma ficção sobre a história de um piloto afro-americano que, após ter lutado na guerra na Europa, tenta (re)encontrar um (novo) lugar na sociedade em que nasceu. Ellison desistiu desse romance, mas James Baldwin — que morou anos na França — viveu e escreveu sobre o que esse afastamento geográfico significava.

Sombras

Na coleção de ensaios Notas de um filho nativo, cerca de metade dos textos faz uma reflexão sobre como Baldwin via e vivia (ou não) o racismo ao cruzar o Atlântico, e como seria possível olhar sob outra perspectiva as questões da violência da desigualdade racial em seu país natal. 

“Por buscar um isolamento proposital, por fazer parte de um grupo pouco numeroso e, acima de tudo, por sentir uma necessidade esmagadora de — digamos — ser esquecido, o negro americano em Paris é praticamente o homem invisível”, conta-nos sobre sua vida estrangeira. 

Baldwin se mudou para Paris em 1948, mas voltou para os Estados Unidos em 1957 para se engajar no movimento dos direitos civis. Depois dos assassinatos de Medgar Evers, Malcom X e Martin Luther King, ele deixou definitivamente o país natal e viveu seus últimos dezessete anos de vida em Saint-Paul de Vence, no sudeste da França.

No ensaio “Muitos milhares de mortos”, fica claro que o que une Baldwin e Ellison é essa certeza transparente e afirmativa de que o destino dos Estados Unidos como nação está imbricado ao destino dos afro-americanos. Os negros não são uma nação à parte. Eles são a nação, assim como brancos, asiáticos, indígenas e latinos. 

“A história do negro nos Estados Unidos é a história dos Estados Unidos — ou, mais precisamente, a dos americanos. Não é muito bonita: a história de um povo nunca é muito bonita. O negro nos Estados Unidos, definido de modo sombrio como a sombra que atravessa a vida da nação, é muito mais do que isso. Ele é uma série de sombras, criadas por ele mesmo, entrelaçadas, que agora combatemos, impotentes. Pode-se dizer que o negro nos Estados Unidos só existe mesmo nas trevas de nossas mentes”, escreve Baldwin.

Em “Notas do filho nativo”, o ensaio que dá nome ao livro e que foi o único escrito originalmente para a coletânea, Baldwin conta sobre a morte de seu pai adotivo — que havia se casado com sua mãe quando ele tinha três anos —, o ódio, o desespero e a injustiça social. É talvez o texto mais importante e mais emocionado, apesar de sua clareza racional.

O que une Baldwin e Ellison é a certeza de que o destino dos EUA está imbricado ao destino dos negros do país

Ellison e Baldwin, é preciso lembrar, tiveram como mentor literário o escritor Richard Wright, autor de Native son (1940) e Black boy (1945). Wright foi quem convenceu Ellison a ficar no Harlem, desistir de sua carreira de músico de jazz e escrever; ele também foi a pessoa que conseguiu a primeira bolsa de estudos para que Baldwin pudesse se dedicar integralmente a sua arte. E apesar do sucesso, Wright deixou os Estados Unidos logo após o final da Segunda Guerra Mundial e foi para a França, onde viveu até sua morte, em 1960.

“A afirmação mais poderosa e célebre que já tivemos do que significa ser negro nos Estados Unidos é, sem dúvida, Filho nativo, de Richard Wright”, diz Baldwin em um de seus ensaios. [Mas] “Os americanos, infelizmente, têm a notável capacidade de transmutar todas as verdades amargas num confeito inócuo, porém saboroso, e transformar suas contradições morais, ou a discussão pública de tais contradições, em uma condecoração meritória, tais como as que são conferidas por heroísmo no campo da batalha.” 

Estamos atrasados, é preciso correr. Ler Wright, Ellison, Toni Morrison, Alice Walker e tantos outros. O importante, no entanto, como disse Baldwin, é a certeza de que alguma coisa já mudou: “Este mundo não é mais branco, e nunca mais voltará a ser”.

Quem escreveu esse texto

Izabela Moi

É diretora executiva da Agência Mural de Jornalismo das Periferias.