Literatura,

A infância pelas costas

Encanto de romance assinado por Romain Gary está no protagonista, órfão que sonha com uma família para chamar de sua

01maio2020 | Edição #33 mai.2020

A infância do pequeno Mohamed (ou Momo) não foi moleza. Ele não sabe como foi parar sob os cuidados de Madame Rosa, no sexto andar sem elevador de uma casa detonada, dessas que no Brasil chamamos de cortiço. Naquela época, Momo ainda não entendia bem as coisas. Só que a inocência teve vida curta: “Deixei de ignorar com três ou quatro anos e às vezes sinto falta disso”.

A sabedoria conquistada, no entanto, tem tudo a ver com estes versos de um poema em prosa de Charles Baudelaire: “O mundo só caminha pelo mal-entendido. Sem o mal-entendido, seria impossível que nos entendêssemos”. É pelo mal-entendido que a criança capta verdades que se pretende esconder dela. A partir dessa constatação de abertura, A vida pela frente segue com uma leveza desconcertante. O narrador, afinal, sabe que é um pirralho órfão, ou abandonado, aos cuidados de uma velha judia chamada Madame Rosa, prostituta aposentada que ainda não se deu conta do fim irremediável de seus encantos.

Émile Ajar é pseudônimo do escritor Romain Gary, lituano que viveu e publicou seus livros em Paris. Conheceu o sucesso: em 1956 ganhou o prêmio Goncourt, maior honraria da língua francesa, pelo livro As raízes do céu, que virou filme de John Houston. Foi casado com a norte-americana e musa do cinema francês Jean Seberg. Outro livro seu, Promessa ao amanhecer (1960), também virou filme em 2018, protagonizado pela atriz Charlotte Gainsbourg.

Nesse A vida pela frente, o protagonista é um personagem encantador, só que pelos motivos opostos àqueles pelos quais esperamos que uma criança nos encante. Não é fofo. Não faz gracinhas, nem para os adultos que o cercam nem para o leitor. A prosa em primeira pessoa que Gary inventa para seu personagem é inteligente, desafiadora e salpicada das maluquices inevitáveis que passam pela cabeça de qualquer criança — até mesmo daquelas que descobrem, desde muito cedo, que estão no mundo por sua conta e risco.

Moïse, o menino judeu que por um tempo compartilhou com Mohamed os cuidados de Madame Rosa, já estava na casa de uma família judia que, para adotá-lo, “só queria se certificar de que ele não tinha nada de hereditário, como eu tive a honra, porque é a primeira coisa em que se deve pensar antes de começar a amar um pirralho se você não quiser ter aborrecimentos futuros”. Mohamed não tem ilusões sobre a dureza da vida, mas isso não o impede de cultivar grandes afetos. E de ter fantasias otimistas, como a de um dia também ganhar pais adotivos.

O protagonista é uma criança encantadora, só que pelos motivos opostos ao esperado: não é fofo

Sente muita pena de uns e outros. Sobretudo dos velhos. Mas não de si mesmo — observador, entende e não entende o que se passa com os adultos que vivem e frequentam o cortiço onde ele reparte o quarto com sua querida Madame Rosa. Seus comentários sobre os adultos combinam a esperteza de quem se viu desde cedo por conta própria a uma grande capacidade de afeiçoar-se a pessoas sem discriminar ninguém. Afeiçoa-se, sem questionamentos, à travesti Madame Lola, ao velhíssimo seu Hamil, ao africano Waloumba, que ainda pratica, no quarto da pensão, rituais de seu passado mais tradicional. Sabe que Madame Rosa está nas últimas e promete cuidar dela até o fim. Enquanto isso, fantasia com a família que gostaria que o adotasse.

Tempo que não é francês   

Quando seu Hamil agoniza, Mohamed grita seu nome algumas vezes. Não para chamá-lo de volta à vida, mas “assim, para ele se lembrar que ainda existia alguém que o amava e sabia seu nome e que ele tinha um. Fiquei um bom momento com ele, deixando o tempo passar, aquele que vai lentamente e que não é francês”.  Esse é o tempo árabe, judeu, africano. “O tempo em que o tempo não contava”, como observa Walter Benjamin em seu famoso ensaio “O narrador”, escrito em 1936.

Cercado de velhos, a quem se apega e tenta proteger, o pequeno Mohamed observa que eles têm o mesmo valor que todo mundo. Mas “são atacados pela natureza, que pode ser uma boa de uma sacana e os faz morrer em fogo brando”.

Melhor que o leitor não imagine, em todo caso, que se trata de um chato menino precoce. Mohamed é só um menino inteligente, com o senso agudo de observação que se desenvolve entre os desamparados. Quando Dr. Katz, o médico que vem ver Madame Rosa, o chama de “minha criança”, o menino responde de bate-pronto: “Não sou sua criança, nem criança eu sou. Sou um filho de puta e meu pai matou minha mãe, e quando a gente sabe disso sabe de tudo e não é mais nem um pouco criança”.

Quando sua querida Madame Rosa, que tem muitos quilos pelo corpo todo e poucos fios de cabelo na cabeça, começa a se empetecar na tentativa de recuperar os antigos encantos, o narrador se constrange. “É bom dizer que ela estava ficando careca como um homem e que isso incomodava os olhos porque não foi previsto para as mulheres.”  Tem muito medo do que vai lhe acontecer quando sua protetora morrer. Sonha em ser adotado por um casal bonito e gentil. E não se separa do grande amigo “de infância”: seu guarda-chuva Arthur — “E eu fiquei ali com meu guarda-chuva Arthur olhando Madame Rosa deitada de costas como uma tartaruga gorda que não era feita para aquilo […]. Até chorei um pouco”.

Enquanto espera a morte de Madame Rosa, sem nenhuma ilusão a respeito, não consegue comer nada. Lola, a travesti, vem lhe dizer que é preciso se alimentar. “Estou me lixando para as leis da natureza, Madame Lola. Ela caiu na risada: — Eu também”. Parece que o pequeno Momo nos encanta porque acreditamos que ele existe. A grande arte de um escritor é fazer o leitor se esquecer de que alguém inventou tudo aquilo.

Émile Ajar é o pseudônimo árabe com que Gary assina esse A vida pela frente, cuja primeira edição é de 1975. Seus livros lhe renderam muito sucesso. As raízes do céu e Promessa ao amanhecer viraram filmes. Este último é recente, e sua protagonista é uma mãe que, na beira da morte, escreve dezenas de cartas a serem remetidas regularmente para seu único e adorado filho que está no front. Aos 66 anos, em 1980, Romain Gary deixou, por ato de sua própria vontade, a vida para trás.

Quem escreveu esse texto

Maria Rita Kehl

Psicanalista, é autora de O tempo e o cão e Bovarismo brasileiro, ambos pela Boitempo.

Matéria publicada na edição impressa #33 mai.2020 em abril de 2020.