Literatura infantojuvenil,

O apelo do medo

Primeiro livro de Neil Gaiman voltado para o público jovem dá nova roupagem ao clima sombrio dos contos de fadas

01ago2020 | Edição #36 ago.2020

Coraline, primeiro livro infantojuvenil de Neil Gaiman, lançado em 2002, tem uma característica comum a todos os trabalhos do autor inglês, que vão dos quadrinhos aos romances: o clima sombrio que envolve suas narrativas fantásticas, muito bem capturado pelo premiado ilustrador Chris Riddell nesta nova edição lançada pela editora Intrínseca. 

Gaiman já era conhecido por seu trabalho com quadrinhos quando começou a escrever Coraline no fim dos anos 1980, para sua primeira filha, Holly, então com cinco anos. Como explica na introdução da obra, ele esboçou uma história assustadora porque era o tipo de coisa que atraía a filha na época. Mas a família se mudou para os Estados Unidos e a ideia foi esquecida por quase uma década, até que ele encontrou o arquivo e decidiu terminar o livro antes que a filha mais nova, Maddy, crescesse. 

Quando o livro finalmente foi publicado, em 2002, Gaiman já era o autor de Belas maldições (parceria com Terry Pratchett, publicada pela Bertrand Brasil), das fantasias O mistérios da estrela — Stardust (lançado no Brasil pela Rocco) e Deuses americanos (editado por aqui pela Intrínseca) e da série em quadrinhos Sandman (Panini), entre outros trabalhos. Foi mais um sucesso. Coraline seguiu o destino de muitas obras de Gaiman e migrou para outros formatos: deu origem a uma aclamada animação em stop motion em 2009, uma adaptação em quadrinhos, um musical, uma ópera e um video game. Chegou a receber o que muitos consideram como o epítome da celebração da cultura pop, uma homenagem no desenho Os Simpsons (o segmento “Coralisa” foi ao ar no especial de Halloween de 2017). 

O apelo de Coraline está no cerne de muitos contos de fadas e dos livros que encantavam Gaiman na infância, como a série Crônicas de Nárnia, de C. S. Lewis, e mesmo Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll: o medo trazido pelo desconhecido, pelo sobrenatural e pela possibilidade de perder quem se ama. E Gaiman sempre caminhou muito bem pelo lado sombrio da narrativa.

Simulacros

A premissa da história não é exatamente original: assim como Alice ou os irmãos Pevensie, Coraline descobre um portal para um mundo maravilhoso e assustador. O toque de Gaiman mora nos detalhes: o casarão antigo dividido em apartamentos, algo que não é incomum na Inglaterra; a excentricidade dos vizinhos, duas velhas atrizes aposentadas e um senhor que diz treinar ratos para apresentações. 

Numa sala da casa onde mora, há uma porta que fora bloqueada com tijolos durante a divisão do casarão. Durante uma tarde, entediada, ela abre a porta e encontra uma passagem para um apartamento muito parecido com o seu. Ali, cópias quase exatas da mãe e do pai — com grandes botões no lugar de olhos — a cobrem de atenções. Os brinquedos são encantados, têm vida própria. A comida é deliciosa. É como sua casa, mas muito melhor. 

A menina percebe que há algo errado quando os “outros pais” dizem que ela pode ficar ali para sempre: basta permitir que a Outra Mãe costure botões no lugar de seus olhos. Ela declina e volta para sua casa real — e descobre que seus pais verdadeiros desapareceram. Pelo espelho do corredor, vê os dois presos no outro mundo, e precisa voltar para resgatá-los.

Na introdução, Gaiman diz que a mensagem que desejava passar para as filhas quando escreveu Coraline era algo que “gostaria de ter sabido quando era garoto: ser corajoso não significa não ter medo. Ser corajoso significa estar com medo, muito medo, mas mesmo assim fazer o que é certo”. Ele certamente foi eficiente no ímpeto de criar algo amedrontador — o autor já disse em entrevista que são os adultos, e não as crianças, que vêm lhe dizer que ficaram muito assustados.

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A ameaça, como nos bons enredos de terror, vai se construindo aos poucos, e essas mudanças são captadas magistralmente pelas ilustrações de Liddell. A Outra Mãe, inicialmente muito parecida com a mãe verdadeira de Coraline, vai ficando cada vez mais magra e alta, branca, e os cabelos se agitam como as serpentes de Medusa. Quando a Outra Mãe a coloca de castigo em um armário, Coraline entra em contato com almas de crianças esquecidas — atraídas, como ela, por afeto e atenções, e depois consumidas e deixadas no esquecimento, incapazes de atravessar para a eternidade. 

A partir desse ponto, a tensão não baixa até o fim. Fora do armário, com a Outra Mãe furiosa, todo o simulacro do outro mundo começa a ruir; o casarão se entorta, as contrapartidas das velhas atrizes se transformam em um só organismo, disforme, num imenso casulo preso a uma parede. Quem auxilia Coraline nesse lugar estranho é um gato, que permanece sem nome e é o único ser, além da menina, a passar de um mundo para outro. A relação entre os dois é ambígua. O gato não parece ter muita paciência com ela. No entanto, é ele quem chama a atenção de Coraline para sua única proteção: uma pedra furada que recebeu de presente de uma das atrizes aposentadas no mundo real.

Mesmo assim, Coraline enfrenta os desafios basicamente sozinha até o fim — ainda que o gato seja instrumental para esse desfecho. E, depois de tanto horror, a resolução da trama não implica muito mais que o alívio da menina. Os pais não se lembram do acontecido. Apenas o gato sabe o que ela enfrentou. A única recompensa por tanta coragem é a volta da vida normal. Em tempos de pandemia, talvez esse seja um prêmio mais atraente do que nunca.

Este texto foi realizado com o apoio do Itaú Social

Quem escreveu esse texto

Marina Della Valle

Jornalista e tradutora, é doutora em Letras pela USP.

Matéria publicada na edição impressa #36 ago.2020 em maio de 2020.