Literatura brasileira,

Vivendo dias perigosos

Último romance de Garcia-Roza mostra a imutabilidade do delegado Espinosa em um mundo em transformação

23set2019 | Edição #27 out.2019

Cinco anos e quase 150 páginas separam o ágil e breve A última mulher do romance anterior do carioca Luiz Alfredo Garcia-Roza. Se no drama psicológico Um lugar perigoso (Companhia das Letras) o mistério a ser solucionado pelo delegado Espinosa se escondia na mente de um possível assassino — pois “é muito mais difícil nos livrarmos dos cadáveres produzidos pela nossa imaginação do que de cadáveres reais que já enterramos” —, desta vez é o corpo que está em risco. No novo livro de um dos maiores autores de romances policiais do Brasil, o leitor não é poupado da crueza da violência. Socos, chutes e esguichos de sangue aproximam A última mulher das narrativas norte-americanas da primeira metade do século 20. Sinal dos tempos. Como define um dos personagens, ao lamentar a banalização da violência: “Estamos vivendo dias perigosos”.

O tom sangrento não chega a ser uma surpresa. Em Achados e perdidos (Companhia das Letras), de 1998, a pulp fiction — ressuscitada em 1994 no cinema pelo diretor Quentin Tarantino — aparece entre os livros empoeirados que Espinosa acumula na sala de seu apartamento, entre exemplares de Raymond Chander e Herman Melville — referência para Garcia-Roza desde a citação da máxima de Bartleby no desfecho de O silêncio da chuva (Companhia das Letras), de 1996, sua estreia como ficcionista. Uma passagem de “A simples arte de matar”, célebre ensaio do criador do detetive Philip Marlowe publicado em 1944, provavelmente inspirou o carioca ao moldar o perfil de seu delegado incorruptível: “Em ruas perigosas pode caminhar um homem que não é mau, que não é nem corrupto nem medroso […]. Ele tem de ser o melhor homem em seu mundo e um homem bom o suficiente para qualquer mundo”.

No contínuo desassossego do policial que lida com a inépcia do Estado e as derrapagens éticas de seus colegas, entretanto, há pouco ímpeto para faíscas mordazes como as do Marlowe de Chandler. Em Espinosa, prevalece o desencanto. E esse fatalismo, em particular, aproxima a trajetória do titular da 12ª dp de outro investigador sessentão da ficção policial latino-americana. O cubano Mario Conde também tenta sobreviver com dignidade em uma metrópole arruinada que oferece a turistas, entre cicatrizes e feridas expostas, o que sobrou das glórias do passado. A Havana de Leonardo Padura também é aqui.

Sujeitos esquecidos

Nada maravilhosa, a cidade que se descortina é a de “lugares pouco iluminados, sombrios”. O Rio que interessa a Garcia-Roza é o das ruelas do centro onde “os carros da polícia não passavam”, da Lapa desprovida de glamour, dos hotéis baratos e pensões, dos submundos de Copacabana, do asfalto quente tingido de sangue. Em ambiente propício para crimes e pecados, ladrões e prostitutas conduzem a primeira das três partes do romance. Protagonista de quase toda a produção ficcional do psicanalista e professor universitário — a exceção é Berenice procura (Companhia das Letras), de 2005 —, Espinosa entra em cena somente na segunda parte, intitulada “As sombras”. Ao tentar esclarecer um roubo e três homicídios, o policial e seus fiéis auxiliares, Welber e Ramiro, não chegam a monopolizar as ações. A prioridade é retratar e investigar as trágicas consequências da solidão dos desamparados.

É notável na obra de Garcia-Roza a atenção para os que circulam à margem da sociedade. O autor consegue incorporar naturalmente às tramas, que jamais deixam de apresentar a progressão indispensável ao gênero (crime, investigação, resolução), alguns personagens da multidão que sente — na pele e nas vísceras — os efeitos da profunda desigualdade do país. Sua Copacabana sintetiza a obscenidade social do Rio e do Brasil. Pelos olhos de Espinosa, Garcia-Roza enxerga os invisíveis. Retira o véu da indiferença. O assassinato de um mendigo é o estopim de Espinosa sem saída (Companhia das Letras), de 2006; a perseguição a uma criança que mora nas ruas move Achados e perdidos. Ganham relevância as mortes e vidas dos que não aparecem nas páginas dos jornais ou nas capas dos sites. “Figuras esquecidas atrás das sombras”, “bêbados em velhas mesas de canto”, “sujeitos que não tiravam cigarros e palitos da boca”, nas palavras de A última mulher.

Algumas das marcas consolidadas nos onze romances estão presentes. A prosa elegante, as descrições cuidadosas, a precisão dos diálogos. E o zelo pelo delegado. Porque os tempos mudaram, mas não para Espinosa. Mesmo com as visitas frequentes de sua namorada Irene, moradora de Ipanema, o policial continua sozinho no apartamento onde vive desde os dez anos no bairro Peixoto, “pequeno enclave” de tranquilidade na desordem sonora e visual de Copacabana. “Parecia uma cidade medieval com suas construções em círculo formando uma muralha ao redor da pracinha onde as crianças brincavam”, compara.

“Todo segredo escrito é para ser descoberto”, afirmou Garcia-Roza em O silêncio da chuva. Não há grandes segredos ou reviravoltas surpreendentes em A última mulher. No tom menor que permeia o novo livro, o desfecho abrupto pode decepcionar. Mas os que seguem os passos de Espinosa por mais de duas décadas serão recompensados pela beleza crepuscular das últimas linhas, assombrosamente bem escritas, quando o delegado constata sua inaptidão para encarar as transformações do mundo. “Não existia mais espaço para o bem comum; o que restava era sua consciência, e era aquilo que doía”, reflete o autor, em nome de sua maior criação.

Quem escreveu esse texto

Carlos Marcelo

Jornalista e escritor, é editor-chefe do jornal Estado de Minas.

Matéria publicada na edição impressa #27 out.2019 em setembro de 2019.