Literatura,

O fim da picada

Autoficção de estreia de jovem autor francês relata de maneira crua e fragmentada a violência e a homofobia no interior da França

28nov2018 | Edição #19 dez.18/fev.19

O fim de Eddy (2014), estreia do jovem escritor francês Édouard Louis (1992), parece escrito às pressas. Curto, cru, fragmentário, pouco inventivo e às vezes com certa aparência de rascunho, o livro relata a infância do autor no fim dos anos 1990. As descobertas relativas a sua homossexualidade, envolta pelo ambiente claustrofóbico e extremamente violento de certo vilarejo em Picardy — cidade natal de Louis —, a cem quilômetros de Paris, são o centro da narrativa. 

Um dos sentidos a que o título remete parece apontar nesta direção: o fim de Eddy só é revelado com o término da narrativa, que encerra também a agonia de sua condição. Ou seja, Eddy será outro à medida que essa história chegar ao fim. E é preciso que o fim de Eddy (e o fim da narrativa, e então o de seu próprio nome) seja logo alcançado porque, de outro modo, seria talvez insuportável. 

O epílogo é escrito com restos de frases, como se fosse um esboço. Entre outras coisas, trata-se de um romance sobre fugas variadas (do vilarejo, da família, da escola e principalmente do armário), que a narrativa bruta e veloz reflete a seu modo.

Mudar de nome

O estilo testemunhal do autor busca atribuir efeito de verdade à sua história, na linhagem da literatura-verdade, ou mesmo da autoficção, presente na França desde Serge Doubrovsky e seu Fils (1977) — embora seja mais frequente comparar Édouard Louis a Jean Genet (1910-86) pela politização da temática gay.

O projeto de Louis, no entanto, dá um nó significativo no gênero autoficção conforme o autor se desfaz do próprio nome. Em 2013, antes de publicar O fim de Eddy, Louis decidiu deixar de se chamar Eddy Bellegueule, seu nome original. Uma das principais características da autoficção — além do eventual sucesso de mercado — é fazer coincidir o nome do autor com o do narrador. Aqui, Louis nos conta a história de um processo de dissociação. Este é o outro fim de Eddy, certamente o mais definitivo — espécie de corte radical na linguagem.

Dividido em duas partes, O fim de Eddy se organiza em torno de uma tensão que no fim é solucionada por um subterfúgio: das diversas formas de abuso que o narrador relata sofrer (na primeira parte do livro) até sua tentativa canhestra de lidar com elas (na segunda), conclui que a única alternativa é dar um fim naquilo e elaborar um novo mundo necessariamente longe dali — onde a violência e os valores masculinos não sejam um dado natural e autoevidente.

Outro sentido do título, mais cru e perverso, que a tradução brasileira acabou por encobrir em parte, diz mais ainda sobre a violência sofrida pelo protagonista na tentativa de apagar seus “gestos de bicha-louca” e moderar sua voz, que “espontaneamente adquiriu entonação feminina”. “Para acabar com Eddy Bellegueule” seria a tradução literal do título francês — como no caso da edição portuguesa —, que a tradutora brasileira, Francesca Angiolillo, rejeitou em nome de uma solução mais elegante, a mesma do inglês — o livro foi publicado em diversas línguas.

Entre uma e outra cusparada na cara, Eddy relata como ele não se rebelou contra o povo do vilarejo. Pelo contrário, o leitor acompanha a história de um personagem que faz de tudo para se adaptar ao mundo dos “homens durões”, no que naturalmente fracassa. A certa altura, chega a mandar uma “bicha calar a boca” na frente dos colegas, de modo a “deslocar a vergonha” para o outro.

Em suas tentativas desesperadas de adaptação, Eddy fracassa. Não está à altura dos “homens durões” de seu vilarejo

A escritora francesa Annie Ernaux aponta que, em O fim de Eddy, Louis investiga a “linguagem dos dominados”, suas condições, efeitos, marcas e justificativas. Esse é, sem dúvida, um dos aspectos mais marcantes do romance, que inclusive torna mais complexo o tom monocórdio de “denúncia” que marca a primeira parte. 

Em vez de se revoltar contra os efeitos da violência que sofre, Eddy acaba por intensificá-los, ainda que involuntariamente. “Eu sou um homem durão” é a frase que ele repete para si como um mantra, e que ocupa durante anos o centro de seu imaginário, mas que se esvazia a cada nova repetição. E admite: “Eu repetia para mim mesmo que eles tinham razão. Eu tinha esperança de mudar”.

Ereções involuntárias

Em suas tentativas desesperadas de adaptação, Eddy fracassa. Primeiro, porque não está à altura dos “homens durões” de seu vilarejo — de seu pai machista e abertamente racista, que odeia negros e árabes; de seus colegas de escola, que lhe cospem sistematicamente no rosto e fazem piada com os seus trejeitos sem que Bellegueule proteste; de seus irmãos, que agridem uns aos outros e subjugam suas mulheres. Mas sobretudo porque, conforme reflete em situações-chave, mais de uma vez ele é “traído pelo próprio corpo”. 

Por exemplo, quando passa a se relacionar com garotas e a desfilar com elas pelo vilarejo, na tentativa de criar “uma verdade das máscaras” e então convencer aos outros e a si de que podia ser também um “durão”. A realidade se vinga de Bellegueule, que “nunca tinha ficado de pau duro com uma garota”. 

Mole, duro ou durão, Eddy Bellegueule descobre que seu corpo não se dobra, não se adapta a determinadas máscaras. E conclui: “Com Sabrina, eu tinha fracassado na luta entre a minha vontade de me tornar um durão e a vontade do meu corpo, que me impelia no sentido dos homens, isto é, contra minha família, contra o vilarejo inteiro”.

O fim de Eddy é um romance escrito entre a angústia, a vergonha e a irritação, sentimentos dos quais o narrador tenta se afastar. Seu grande trunfo talvez seja fazer de suas limitações também as suas maiores qualidades. Em certo momento, Eddy relata que pisou em um prego e, por vergonha ou orgulho, omitiu de sua mãe “a ferida aberta”. “Depois de alguns dias”, diz, “uma mancha escura e supurante apareceu no meu pé, ganhando importância e superfície, espalhando-se como uma mancha de tinta em um tecido.” É uma boa imagem para definir esse livro.

Quem escreveu esse texto

Victor da Rosa

É crítico literário e co-organizador da antologia 99 poemas de Joan Brossa (Demônio Negro).

Matéria publicada na edição impressa #19 dez.18/fev.19 em novembro de 2018.