Jornalismo, Literatura,

Crime universal

A linguagem global da misogonia é o tema central da obra da argentina Selva Almada, que tira do anonimato três casos de feminicídio

21nov2018 | Edição #13 jul.2018

Como se falava de feminicídio antes de a palavra entrar em uso e discussão? Não se falava — e, no entanto, ele existia. Na tentativa de entender como o feminicídio era tratado trinta anos atrás, a escritora argentina Selva Almada resgata a história de três jovens mulheres mortas na Argentina em Garotas mortas. São crimes sem relação entre si, a não ser o fato de que são cometidos contra mulheres, pelo fato de serem mulheres. “Eu não sabia que uma mulher podia ser morta pelo simples fato de ser mulher, mas tinha escutado histórias que, com o tempo, fui ligando umas às outras. Casos que não terminavam com a morte da mulher, mas em que ela era objeto da misoginia, do abuso, do desprezo”, escreve Almada no capítulo inicial da obra em que puxa os fios “da misoginia, do abuso, do desprezo” pelas histórias de Andrea Danne, Maria Luisa Quevedo e Sarita Mundin.

Os três crimes são únicos e universais. Andrea era uma estudante de 19 anos que resolveu não sair no sábado para ficar estudando para uma prova. Ficou com o namorado parte da noite, despediu-se e foi ler na cama. Ali dormiu e ali foi apunhalada. Maria Luisa tinha 15 anos e trabalhava como empregada doméstica. No sábado em que foi morta, não voltou para casa às 15h, como de costume. Foi encontrada no domingo seguinte enforcada com seu próprio cinto. Sarita tinha 20 anos, um filho e um amante mais velho. Saiu para um passeio com o amante e ficou desaparecida por quase um ano, até que sua ossada foi encontrada
na margem de um rio.  

São apenas três aquelas que Almada elege para reconstituir a história; no entanto, é a persistência de casos como os de Andrea, Maria Luisa e Sarita que faz com que a autora resolva mergulhar de volta àquela Argentina da redemocratização dos anos 1980 e tirá-las do anonimato. “Durante mais de vinte anos, Andrea esteve por perto. Voltava de quando em quando com a notícia de outra mulher morta. Iam se acumulando os nomes que apareciam a conta-gotas nas manchetes dos jornais de circulação nacional: Maria Soledad Morales, Gladys McDonald, Elena Arreche, Adriana e Cecilia Barreda, Liliana Tallarico, Ana Fuschini, Sandra Reitier, Carolina Aló, Natalia Melman, Fabiana Gandiaga, Maria Marta García Belsunce, Marela Martínez, Paulina Lebbos, Nora Dalmasso, Rosana Galliano. Cada uma me levava a pensar em Andrea e em seu assassinato impune.”

Os três crimes não se destacam por nenhuma razão muito mais específica do que as vítimas serem adolescentes, do interior e de classe média baixa, recorte no qual se inclui a autora, que, ao receber a notícia da morte de Andrea, desperta para alguma coisa que só vai compreender completamente muitos anos depois. “Eu tinha treze anos e, naquela manhã, a notícia da garota morta me chegou como uma revelação. Minha casa, a casa de qualquer adolescente, não era o lugar mais seguro do mundo. Você podia ser morta dentro da própria casa. O horror podia viver sob o mesmo teto.”

Se a revelação resulta traumática em idade tão precoce, a investigação empreendida pela autora madura se notabiliza pela capacidade de empatia pelas histórias dessas jovens mulheres que foram brutalizadas pelo fato de serem mulheres. Em algum lugar entre romance e livro-reportagem, Garotas mortas é um relato não ficcional tanto do que resulta das descobertas logradas pela autora como de seus próprios mecanismos de pesquisa e investigação. Sem pretender “resolver” os casos, o livro ilumina a banalidade da violência contra essas mulheres quando vivas e o relativo descaso com que são tratadas também depois de mortas — os três crimes, como muitos outros feminicídios, permanecem impunes.

Ao mesmo tempo, a autora parece se perguntar: como é que eu escapei do mesmo destino de Andrea, Maria Luisa e Sarita? Assim, Almada, sua perplexidade e sua identificação tornam-se elas mesmas personagens desse relato. “Não me lembro de nenhuma conversa específica sobre violência de gênero, nem que minha mãe fizesse alguma advertência expressa sobre o tema. Mas ele sempre estava presente: quando falávamos de Marta, a vizinha espancada pelo marido, a qual por sua vez descia o braço nos filhos, principalmente no Ale, um menino que só desenhava aranhas. (…) Eu cresci escutando mulheres adultas comentarem coisas assim em voz baixa, como se a situação da pobre coitada fosse motivo de vergonha ou como se elas também temessem o agressor.”

Poesia e denúncia

Ainda que a violência contra a mulher seja o tema que percorre todo o livro, Almada logra falar disso ora com a simplicidade límpida da descrição escorreita de situações concretas, ora com imaginação e profundidade poéticas. Os momentos se alternam sem muito aviso, e é isso o que confere uma cadência toda particular ao livro. “Algum tempo depois, acordou, saiu da cama, foi até o quarto das filhas e acendeu a luz. Andrea continuava deitada, mas tinha sangue no nariz. Segundo suas palavras, ela ficou paralisada, sem se mover no vão da porta, e chamou pelo marido aos gritos, duas ou três vezes. (…) Andrea deve ter se sentido perdida quando acordou para morrer. Seus olhos, abertos de repente, devem ter pestanejado repetidas vezes nesses dois ou três minutos que o cérebro levou para ficar sem oxigênio. Perdida, aturdida pelo repiquete da chuva e do vento que quebrava os galhos mais finos das árvores do quintal, bêbada de sono, completamente desnorteada.”

Como a tessitura do machismo constitui a linguagem comum a todas as mulheres, é desse instrumento que Almada se vale

Outro elemento construído com maestria pela autora são as pontes que estabelece entre as três garotas mortas e outras histórias e situações que vai recolhendo ou relembrando de sua própria memória. Como a tessitura do machismo e da misoginia constitui a linguagem comum a todas as mulheres, é desse instrumento que Almada se vale, com mão muito precisa e delicada, para conferir a essas histórias muito pouco exemplares um valor de denúncia, de algo que sempre esteve e ainda está à espreita das mulheres. Ainda assim, o texto nunca resvala para a facilidade do discurso pronto.

Em nenhum dos casos os crimes foram esclarecidos ou os culpados, punidos. Ainda que o “quem matou” não seja o mais importante, o percurso de investigação empreendido por Almada se esforça para contornar a indiferença com a qual são tratados os crimes. Ela volta a falar com familiares, escava arquivos e visita até uma vidente em busca de respostas. O fato de não chegar a esclarecimentos consistentes acrescenta mais um grão de violência ao ciclo de desprezo e abuso — afinal, são apenas “garotas mortas”, como tantas outras.

Uma nota de melancolia contida acompanha a narrativa, ainda que não haja traço de sentimentalismo. Do lampejo que se inicia com a autora-narradora aos treze anos, quando toma conhecimento da morte de Andrea — cujo fantasma com ela permanece por mais de vinte anos, até que resolve que ali há uma história a contar — até o momento em que decide parar de bater nas portas fechadas das mortas que não podem mais falar, desenha-se uma trajetória de desencanto e tristeza. Muitas mulheres foram, antes de Andrea, Maria Luisa e Sarita, mortas; muito outras serão. Fixar a história de algumas dessas vidas e mortes é só uma tentativa de não deixá-las caladas para sempre.

E, contudo, o olhar agudo de Almada por vezes arranca a melancolia da frente para vislumbrar cenas de pura potência poética e metafórica, como nessa descrição de uma noite de Carnaval: “Quando afinal vamos nos retirando rumo aos carros estacionados num terreno, uma voz ainda infantil me chama a atenção ao gritar: cê não vai me fudê, tá pensando o quê, preto viado, seu viado de merda. Uma menina de uns doze anos, parecida com minhas companheiras de fila no banheiro, morena, magrinha, seguida por um séquito de molequinhos mais ou menos de sua idade, briga aos gritos com um grupinho de meninos. Embora seus rivais já estejam de boca fechada e recuando envergonhadamente com a boca suja da magrelinha, ela os segue para continuar gritando de tudo. Uma molequinha carnavalesca encrenqueira. Uma menina sozinha numa noite de Carnaval”.

Quem escreveu esse texto

Bia Abramo

Jornalista, é autora de Aperto de mão (Conrad).

Matéria publicada na edição impressa #13 jul.2018 em junho de 2018.