Literatura infantojuvenil,

A força de Kiusam de Oliveira

Com "O black power de Akin", a escritora e professora nascida em Santo André (SP) resgata a autoestima das crianças negras

28jan2021

Votado um dos melhores livros infantojuvenis de 2020 pelos colaboradores da Quatro Cinco UmO black power de Akin, da escritora paulista Kiusam de Oliveira, lançado pela Editora de Cultura e com ilustrações de Rodrigo Andrade, mostra um menino negro aprendendo a se amar do jeito que é, apesar das zombarias que ouve dos seus colegas de escola. Oliveira conversou com a revista dos livros sobre como a literatura pode servir de ferramenta para quebrar a lógica racista entre crianças e jovens.
 

 

De onde surgiu a ideia de escrever O black power de Akin?
A história narrada no livro surgiu durante uma das minhas viagens para Minas Gerais, na qual conheci um vilarejo incrível perto de Diamantina e lá encontrei um menino negro que simpatizou comigo e me contou passagens de sua vida marcadas por violências raciais sofridas por ele na escola. Ele não conseguia entender por que seus colegas insistiam em tratá-lo de forma desrespeitosa. Esse menino, que na época tinha somente nove anos, me contou que na casa dele não sentia vergonha de ser quem ele era, isto é, um menino negro, mas na escola, tudo ficava diferente. Foi aí que passou a esconder em diversos bonés seus cabelos crespos, alvos de zombaria da criançada. A experiência desse garoto inspirou-me na escrita dessa história, pois retratava minha experiência como professora por quase trinta anos na educação infantil, observando e intervindo em situações exatamente iguais às que meu mais recente amigo me contara. Escrevi esse livro e o guardei por oito anos, até que em setembro de 2019 o retirei da gaveta para apresentá-lo a duas editoras. A Editora de Cultura foi rápida em compreender o valor da narrativa de O black power de Akin.

No livro, as relações familiares vão muito além da “tradicional” família nuclear, sendo que a figura de referência para Akin e os irmãos é seu avô paterno, assim como seus ancestrais. Qual a importância de reconhecer a ancestralidade na formação dos seus personagens?
Na história de O black power de Akin, trago um avô que é uma energia de terra, que se movimenta no sentido de enraizar seus netos nas tradições ancestrais, pois ele reconhece que isso é vida; afinal, quem conhece a própria história sabe de onde veio e com certeza é capaz de traçar o destino na direção da potência de vida que está por vir, focando as boas ações no presente. Aqui está a importância que dou em meus escritos para a Ancestralidade que um dia, quando eu era meninota, salvou a minha vida – a minha autoestima, portanto, e sei que pode salvar inúmeras outras vidas na contemporaneidade. É trazer para o presente o adinkra [símbolos ideográficos dos povos acã, que se situavam no que hoje é Gana e da Costa do Marfim, na África ocidental] do Sankofa, que significa olhar para trás e pegar o que é importante para construir o presente. Se o presente for vivido de modo focado, o futuro será dado como certo e próspero. 

No livro, o protagonista sofre com as zombarias dos outros meninos pela cor da sua pele e pelo seu cabelo. Isso por vezes é chamado de bullying, mesmo que o racismo permeie os comentários dos colegas de classe de Akin, o que é algo bem mais perverso. Existe alguma discussão em torno desses conceitos na escola? E chamar esse tipo de comentário de bullying não seria uma forma de minimizar o racismo?
O que Akin sofre na escola é a violência histórica do racismo tão conhecido por aqui há gerações. Erving Goffman, em Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada (1988), é para mim um clássico e aponta a cor negra como um estigma a ser considerado e isto significa que uma pessoa negra é marcada por sua cor, pelo traço que a difere como pessoa e grupo, e, com isso, passa a ser vista e tratada como menos, como pessoa desacreditada e “desacreditável”. É impossível não projetarmos os efeitos psíquicos disso a curto, médio e longo prazo.
Quando as práticas racistas são associadas ao bullying isso deve ser entendido como uma estratégia para minimizar a questão racial no país que tem na transmissão, na longevidade, na profundidade e na invisibilidade ingredientes fundamentais para o sucesso da estratégia da branquitude para implantar, proliferar e normalizar o racismo como plano fundante da edificação de sua estrutura logicamente racista. O Brasil leva isso tão a sério que sente a necessidade de recriar lógicas racistas de ser e estar que devem atingir, inclusive, a educação das crianças.

Os cabelos crespos aparecem em seus livros como uma forma de recuperar a autoestima das crianças negras. Poderia falar um pouco sobre como esse assunto é importante e não uma mera futilidade?
Em minha tese de doutorado Candomblé de Ketu e educação: estratégias para o empoderamento da mulher negra (2008), falo sobre o corpo da mulher negra. Afirmo que uma das contradições mais perversas que a mulher negra deve enfrentar é ter de firmar uma identidade positiva, apesar de o mundo olhar para seu corpo negro como uma aberração com restrições. Os cabelos crespos não representam o orgulho da sociedade brasileira que apresenta padrões de beleza opostos aos das mulheres negras. Por muito tempo o uso de ferro quente, pastas químicas e alisantes naturais foram amplamente difundidos como recursos para a mulher negra aparentar ser mais “limpinha”. É assim que o racismo opera de forma estrutural: através do reforço dos paradigmas racistas, para que um dia os próprios negros sejam capazes de se afirmarem como os diferentes, mesmo sendo a maioria no país. É preciso estratégias inteligentes para superarmos o abismo que nos impõe tal estratégia.

A literatura pode, então, ser uma ferramenta no combate ao racismo?
Penso o seguinte: se os livros serviram e servem como ferramentas para divulgar os preconceitos e o racismo, que eles sirvam agora para derrotarmos tais práticas efetivamente. Nesse sentido, tenho a plataforma do livro como ferramenta para discutir e quebrar a lógica do racismo com crianças e jovens através das histórias que escrevo, em que cabelos, lábios, olhos e nariz de negras e negros serão sempre importantes até que cada criança, negra e branca, compreenda a beleza explícita do universo que acostumamos a chamar de corpo negro.

 

 

Tem algum livro que você gostaria de ter lido quando criança?
O mundo no black power de Tayó [Peirópolis, 2013] de minha autoria. É um livro que escrevi como uma possibilidade de cura para a criança interior que carrego. Eu precisava perdoar a minha criança, a Kiusinha (como a minha mãe me chamava) que se calava diante das violências racistas que sofria; por tantas lágrimas derramadas, primeiro por tristeza pelas violências experienciadas e, depois, por conta da raiva que sentia de mim por não ter respondido. Passava horas e horas do meu dia imaginando respostas potentes ou formas de agredir fisicamente cada criança e adulto algoz que se colocou em meu caminho. Consegui acolher a Kiusinha escrevendo a história da personagem Tayó que se amava do jeito que ela era: uma criança negra. Esse livro tem servido de atalho a muitas mães e pais, madrinhas e padrinhos, tias e tios em suas estratégias de fortalecimento das identidades negras dos seus. E isso para mim é a vitória sobre meus inimigos racistas. Com meus livros pretendo criar a possibilidade de crianças e jovens romperem com o contrato racista assinado pelos cidadãos brasileiros, e assim venceremos!

Como incentivar o hábito de leitura nas crianças?
Crianças se sentem estimuladas à leitura quando outras pessoas leem para elas; é natural. Ao entrarem em contato com uma história que as conecta com o mundo, mesmo que o da imaginação, elas se sentem instigadas a ler por si só, sem depender do momento da leitura imposto por um adulto, normalmente na hora de dormir, e isso faz toda a diferença!

Este texto foi feito com o apoio do Itaú Social.

Quem escreveu esse texto

Paula Carvalho

Jornalista e historiadora, é autora e organizadora de ireito à vagabundagem: as viagens de Isabelle Eberhardt (Fósforo).