Coluna

Paulo Roberto Pires

Crítica cultural

A festa do fim do mundo

No juízo final tem lugar de destaque o Isentão, personagem que de diversas formas define a tragédia brasileira recente

19mar2020

Fim de mundo tem dessas coisas: acreditando que o juízo final, enfim, chegou, muita gente quer passar dessa para melhor retocando a maquiagem. No derradeiro por do sol, o avarento que abriu a mão quer passear abraçado à malvada que virou mocinha. Às seis da tarde da última Ave Maria, o canalha, reencarnado em São Francisco de Assis, ajoelha-se ao lado da devassa, contrita em sua nova vida de Irmã Dulce.

O detalhe é que, ao contrário de protesto bolsominion em pandemia, o apocalipse costuma ser adiado – é por isso, aliás, que estamos aqui. E a turma costuma ficar como o personagem de “Então o mundo não se acabou”: “Beijei a boca/ De quem não devia/ Peguei na mão/ De quem não conhecia/ Dancei um samba/ Em traje de maiô/ E o tal do mundo/ Não se acabou”. Vai vendo.

O mundo em 1938, ano em que Assis Valente compôs este que seria um dos grandes sucessos de Carmen Miranda, estava longe de ser fácil, embora fosse um pouco mais ingênuo e, ao que parece, mais divertido. Temia-se então o choque do cometa Halley contra a terra, Getúlio Vargas era o ditador e, em caso de catástrofe, uma saída possível era botar pra quebrar. Afinal, para ressaca moral ou etílica, sempre houve e haverá remédio.

A ameaça de hoje é concreta, pois o coronavírus é tão agressivo quanto a extrema-direita, doida pelo autogolpe prometido ainda em campanha. Em tempos de cancelamento, restringe-se até o desvario tal qual o conhecíamos: com todo mundo em casa, não se pode nem sair por aí, como imaginou o compositor baiano, “tratando de aproveitar”. O jeito é rosetar nas redes sociais, onde a perspectiva do fim, de um fim qualquer, mais uma vez nos proporciona momentos impagáveis.

Preste atenção: o Adhemar de Barros de ontem é, sob a ameaça do corona e do golpe, um Carlos Marighela redivivo. Depois de ajudar a eleger o capitão, seus herdeiros e seus generais, insurge-se contra eles, indignado. De uma hora para outra deixou de lado a bandeira da moralização acima de tudo e, extremista, chega a invocar o respeito a uma tal de constituição – pasme, acima de todos.

Mais divertido é ver a tia do zap – que como se sabe não precisa ser tia nem passar o dia no zap – fazendo cosplay de Rosa Luxemburgo. A revoltada a favor de outrora, afinada no coro misógino que tomava o poder, não foi poupada pela camarilha. E hoje bate-boca com os fascistas que, até há pouco, não admitia que assim fossem chamados.

Na festa do fim do mundo tem lugar de destaque o Isentão, personagem que de diversas formas define a tragédia brasileira recente. Pois hoje ele circula nas redes como o Engajadão. Fiscal de obra pronta, bolchevique de revolução vencedora, impreca contra a selvageria instaurada, indigna-se pelos ataques à democracia, enoja-se com a truculência do Planalto. Como se, é claro, não tivesse nada com isso e não se pudesse supor nada disso.

O diabo é que sempre há a possibilidade de o mundo não se acabar. E em momentos de comoção, não é raro que se faça como no samba – “Chamei um gajo/ Com quem não me dava/ E perdoei a sua ingratidão/ E festejando o acontecimento/ Gastei com ele mais de quinhentão”. E menos raro ainda logo descobrir “que o gajo anda/ Dizendo coisa/ Que não se passou”.

Para repetir a piada de mau gosto mais popular dos últimos anos, vivemos, de novo, uma “escolha difícil” (sic). Na primeira versão da anedota sem graça, houve quem vacilasse entre civilização e barbárie, optando, por ato ou omissão, pelo que aí está. Hoje a “escolha difícil” está entre manter o apoio ao fascismo ou lutar pela vida e por um futuro.

Não, a resposta não é fácil como parece. Se do gado não se deve esperar mais do que os mugidos de sempre, no coração do isentismo, não duvidem, muitas vezes se esconde um suicida.

Quem escreveu esse texto

Paulo Roberto Pires

É editor da revista Serrote. Organizou a obra de Torquato Neto nos dois volumes da Torquatália (Rocco, 2004).