Trechos,

Murakami no microscópio

Rita Kohl, tradutora de “Sul da fronteira, oeste do sol”, escreve sobre as dores e as delícias de traduzir Haruki Murakami

12ago2021 | Edição #48

Quando fui convidada para traduzir Sul da fronteira, oeste do sol, eu tinha acabado de terminar a tradução de outra obra do mesmo autor, O assassinato do comendador, um romance longuíssimo com o qual convivi durante dois anos. Foi um período intenso, que incluiu o nascimento do meu primeiro filho, e em alguns momentos, senti que nunca chegaria ao fim. Quando finalmente acabei e logo recebi um convite para traduzir outro livro do Haruki Murakami, o meu primeiro impulso foi o de recusar. Apesar de conhecer a obra e gostar muito dela, achei que não conseguiria emendar em outra tradução do mesmo autor. Eu estava determinada a tirar férias dele.


 

Traduzir faz com que você olhe o texto no microscópio e acabe percebendo coisas que, arrisco dizer, talvez nem o próprio autor tenha percebido. Isso cria uma rede de referências e familiaridade que torna a leitura mais prazerosa, além de conferir mais segurança para traduzir, com a oportunidade de retomar, repensar e aprimorar suas escolhas ao longo das obras. Às vezes, no entanto, sinto que gera uma proximidade tão grande que pode levar a certa impaciência, como a que pode existir entre casais de longa data ou pessoas da mesma família, em que nos tornamos mais sensíveis aos pequenos hábitos e manias uns dos outros. É evidente que traduzir uma língua tão distante como o japonês dá trabalho, e sempre há momentos no meio de um projeto em que me pergunto por que me meti nessa. Jogos de palavras, frases complexas e tortuosas, humor — aspectos do texto que são um prazer para o leitor podem se tornar um desafio quando você precisa solucioná-los na tradução. Por isso acho importante variar o tipo de enrosco em que me meto, já que a variedade ajuda a manter o bom humor e a garantir uma postura generosa em relação ao autor e à obra.

Desnecessário dizer que meus planos de tirar férias do Murakami não duraram muito, vencidos pelo meu afeto por este livro e pela curiosidade de saber como seria traduzi-lo. Queria enfrentar essa segunda leitura tão diferente: em outra língua, em outra década, e não mais como leitora, mas como tradutora.

Meu primeiro contato com este romance foi há quase quinze anos, durante minha primeira estadia no Japão, como bolsista de graduação. Lá, eu li South of the Border, West of the Sun, a tradução para a língua inglesa feita por Philip Gabriel. Gostei tanto que quando, anos depois, comecei a traduzir literatura japonesa até sugeri ao editor com quem estava trabalhando que traduzisse este romance para o português.

Mas a verdade é que minha memória para livros deixa bastante a desejar. Ela é excelente a curto prazo, enquanto estou lendo ou, principalmente, traduzindo. Só que depois de alguns meses eu já não sei descrever o enredo muito bem e, passados anos, guardo apenas lembranças vagas dos temas que me marcaram e de algumas cenas ou detalhes muito pontuais. Muitas vezes, sei apenas que gostei de um livro, e o recomendo para todo mundo, sem conseguir explicar por quê. (Naturalmente, não é uma característica da qual posso me orgulhar, como alguém que trabalha neste ramo. Mas me consolo um pouco por saber, pelas suas entrevistas, que Murakami também se lembra muito pouco dos seus próprios livros. Se até um autor pode se esquecer do que escreveu, talvez meu caso não seja tão grave.) Com Sul da fronteira, oeste do sol, também foi assim. Eu me lembrava das sensações que a leitura tinha me causado e de várias imagens que não conseguia transformar em uma narrativa: a margem de um rio, um LP, uma tristeza muito intensa, um mistério não solucionado. A ideia de voltar a este livro, reencontrar esses elementos e reorganizá-los em um todo coerente, com a atenção minuciosa de quem traduz, era muito atraente. Eu me perguntava se iria reencontrar a mesma atmosfera escura, o som da chuva, os silêncios e as conversas carregadas. A sensação agoniante de um amor que poderia ter acontecido. E também me perguntava, com certa apreensão, se eu ia continuar gostando do livro tanto quanto havia gostado antes.

Esta é uma obra realista, caso relativamente raro entre as obras de Murakami. Há leitores que especulam sobre a existência de Shimamoto: será que ela reapareceu na vida de Hajime, ou foi apenas um fantasma, uma ilusão? Essa possibilidade aproximaria a obra de outros romances do autor em que a realidade é, digamos, menos estável. É uma leitura válida, mas não me atrai. Para mim, a ausência de elementos fantásticos é justamente um dos atrativos aqui. O que sustenta a narrativa é o mundo interior do narrador, a forma como ele se relaciona com as pessoas, se questiona, tenta compreender seu lugar na época em que vive. E, neste caso, não vai surgir nenhum homem-carneiro, gêmeas misteriosas ou um minicomendador para lhe dar nenhuma pista. Nenhum poço que o leve para outros mundos. Ele está preso no único mundo que conhece, sozinho diante de suas questões, sentindo que a única pessoa que poderia compreendê-lo está sempre um pouco além do seu alcance. Não tenho nada contra elementos fantásticos. Pessoalmente, gosto muito dos homens-carneiro e minicomendadores. Mas também gosto de livros mais contidos, como este, nos quais vemos que a força narrativa de Murakami não depende de peripécias surreais. E essa variação no estilo também contribuiu para evitar o cansaço que eu temia que pudesse me atrapalhar, depois da longa tradução de O assassinato do comendador.

Na verdade, nos últimos meses tive mais uma oportunidade de ver outro estilo do autor, pois também traduzi mais um texto seu (evidenciando quão fraca era minha resolução de tirar férias do autor). Foi o longo relato “Abandonar um gato”, publicado na revista Quatro Cinco Um. Um texto bastante pessoal, em que ele discute as memórias que tem do pai. E assim, em meio a essa mistura de três traduções bastante diversas do mesmo autor, pude perceber alguns temas comuns.

A ideia de que há elementos que se repetem em várias obras de Murakami não é nenhuma novidade. Todos os autores têm temas, imagens, expressões e questões recorrentes, que aparecem de forma mais ou menos consciente em todas as suas obras e, no caso deste autor, isso já rendeu até mesmo uma cartela de bingo, assinada por Grant Snider, que circula pela internet entre os fãs. Música, mulheres que desaparecem (e suas orelhas), poços e buracos, mundos paralelos, gatos e receitas de espaguete. Alguns desses elementos podem ser encontrados aqui, apesar de esta obra não ser a melhor candidata para quem quiser ganhar o jogo. Contudo, nos últimos meses, vi outras continuidades, mais profundas, temas que correm por baixo de todas essas imagens. Questões que o autor parece estar sempre tentando responder, de maneiras diversas.

Sempre achei que Murakami retrata muito bem alguns sentimentos e aflições da adolescência e da juventude. Mas tenho reparado também (sinal da idade, talvez?) a forma como ele aborda o outro lado da moeda — a passagem dos anos, a percepção de que estamos envelhecendo, e os caminhos que acabamos trilhando nesse processo, muitas vezes tão acidental quanto irreversivelmente. A maneira como cada um de nós está preso ao seu tempo e, simultaneamente, carrega as marcas deixadas pelas outras épocas que viveu. A forma como a interação entre diferentes pessoas, principalmente entre diferentes gerações, evidencia essas bagagens.

Em Sul da fronteira, oeste do sol, acredito que o contexto histórico, social e, principalmente, econômico tem uma importância considerável na narrativa. Aqui não falamos de guerras distantes nem de experiências que ecoam por meio de outros personagens, mas do momento em que o próprio narrador vive, que é também muito próximo do momento em que a obra foi escrita. Vemos sua relação com os movimentos estudantis, cujos ecos já estão quase desaparecendo, e em particular a questão da bolha econômica japonesa no final da década de 1980, quando os preços de ações do mercado imobiliário foram às alturas. A figura do sogro está diretamente ligada a este contexto econômico, como fica evidente em seu discurso sobre a cidade de Tóquio, e também na discussão entre Hajime e a esposa sobre a compra de ações.

E tudo isso se liga às questões mais íntimas do personagem. Ele se sente preso à sua vida cheia de confortos e a uma esposa com quem não consegue se abrir por completo, e essa situação se acirra conforme ele se enreda na trama de dinheiro e negócios criada por seu sogro. Por trás de tudo isso está ainda certa decepção consigo mesmo. Como conciliar a vivência dos anos turbulentos e esperançosos do movimento estudantil, uma tentativa de resistência ao capitalismo altamente desenvolvido que se instalava no Japão do pós-guerra, com o fato de estar agora explorando exatamente este capitalismo? Além disso, Hajime vem de uma família de classe média e percebe, mais claramente do que a esposa, o absurdo de jogar com fortunas que a maioria das pessoas sequer sonharia em possuir.

Nesta minha nova leitura do livro, essa relação com o contexto histórico ficou mais clara para mim, e fiquei pensando como isso contribui para o fascínio de Shimamoto. Ela é não apenas o grande amor de vida dele e a única pessoa que realmente o compreende, mas também uma forma de escapar dessa rede, algo que, sozinho, o narrador não conseguiria fazer. Abandonar tudo e ir embora com ela significaria perder muita coisa, mas também deixar essa vida, que o satisfaz e incomoda ao mesmo tempo. Seria uma forma de negar quem ele acabou se tornando.

E aqui é importante lembrar que eu, como leitora, também sou um produto dos caminhos por onde minha vida me levou e do momento em que vivo. Num aspecto mais pessoal, houve uma mudança muito importante entre as duas leituras — a maternidade. A consequência mais óbvia disso foi poder sentir muito mais intimamente a perda de Shimamoto e imaginar a dor de se desfazer das cinzas de um bebê. Quando li este romance pela primeira vez, essa era uma ideia abstrata. Guardei a lembrança de uma dor intensa, mas não muito compreensível. Hoje, com meu filho ao lado, este foi um trecho muito doloroso de reler, traduzir e revisar. E a relação do narrador com as filhas e a sensação de ver um filho crescer também ficaram muito mais palpáveis.

Mas não foi só minha idade ou minha relação com a maternidade que mudou nessa última década. A forma como olhamos para as narrativas também mudou bastante nesses anos, de maneiras que impactam a forma como lemos, não só para mim mas, arrisco dizer, para muitos leitores. Com isso surgiram questões que me fizeram refletir bastante ao longo da tradução. Pois hoje o perfil de Hajime — de um homem que não pode resistir aos seus ímpetos sexuais, que não consegue deixar de trair e magoar as mulheres ao seu redor — não me inspira grande simpatia. Por mais bem construído que seja o personagem, por mais que esses comportamentos apareçam como parte de uma vontade desesperada de escapar de si mesmo e por mais que ele reconheça suas ações, sofra por elas e afirme estar sempre magoando também a si mesmo, o fato é que, em 2020, essas histórias já não me comovem da mesma maneira.

Além disso, não consigo mais ver a experiência de Hajime como, simplesmente, a história de uma pessoa enfrentando seus demônios. Aqui, volta a pesar meu novo lugar como mãe, que me fez enxergar mais claramente outras dinâmicas no mundo em que vivemos, e assim acho impossível não ver seu comportamento como parte de um cenário mais amplo. O desejo do narrador de abandonar a família em busca de um amor irresistível deixa de ser uma questão pessoal deste personagem para refletir um padrão incansavelmente repetido, em uma sociedade em que pais têm muito mais liberdade, tempo e espaço para encontrar amores irresistíveis e considerar largar tudo.

O resultado de tudo isso é que eu certamente reencontrei na obra as aflições da juventude, a melancolia, a música, as imagens e reflexões que me encantaram na primeira leitura. Mas vi tudo isso inserido em contextos mais amplos — seja o contexto econômico da época em que se passa a história, ao qual eu não havia dado muita atenção antes, ou o contexto social que informa não apenas o personagem de Hajime, mas também minha relação com ele.

Esse tipo de expansão torna a leitura mais rica, é claro. Por exemplo, fez com que eu prestasse muito mais atenção na personagem de Yukiko, que numa leitura focada nos star-crossed lovers pode ficar em segundo plano como um simples empecilho. Vi com outros olhos — ou quem sabe apenas com os olhos mais abertos — o que ela diz na conversa com o marido no final do livro. Depois de ler todo o romance centrado nas ideias e sentimentos do narrador, foi um prazer ver Yukiko declarar, sem alarde, que ele não é o único que sente e sofre, o único que teve sonhos e os abandonou. A conversa entre Hajime e seu sogro sobre a tentativa frustrada de suicídio também aponta essa direção, de que ela tem uma vida interior mais complexa do que o narrador parece disposto a reconhecer. Assim, a própria narrativa sugere que ele experimente olhar o mundo pelos olhos de outras pessoas, não apenas pelos seus. Se Shimamoto insiste todo o tempo para que Hajime não lhe pergunte nada, e fica assim congelada na imagem daquele primeiro amor, transformado em uma mulher perfeitamente bela, Yukiko insiste: por que você não me pergunta nada?

Eu poderia me estender aqui em mais análises e reflexões sobre a obra, mas ainda falta falar sobre o que está no centro da minha relação com este livro: a tradução. Como é característico do autor, a linguagem é clara e quase sempre direta, e o desafio principal não é solucionar questões pontuais, mas recriar em português o ritmo das conversas, a poesia das descrições. Aproveito apenas para mencionar um aspecto que me doeu não poder passar para o português. Conforme leitores mais atentos podem ter percebido, o narrador chama Shimamoto pelo seu sobrenome, enquanto ela se refere a ele pelo seu primeiro nome, Hajime. Mas, no original, há mais uma camada neste desequilíbrio. Enquanto o narrador diz “Shimamoto-san”, usando o sufixo san, a forma de tratamento mais comum, neutra e relativamente polida, ela o chama de “Hajime-kun”, com um sufixo comum para se referir a pessoas mais jovens (geralmente homens), e também para colegas meninos na escola. Kun aparece mais frequentemente em relações em que há certa intimidade ou uma diferença hierárquica e de idade entre os falantes. Essa diferença na forma como ambos se tratam, além de ecoar o ambiente escolar onde eles se conheceram, contribui para retratar o desequilíbrio na relação entre eles. É algo que eu não vi na obra em inglês, mas que me chamou a atenção ao ler o original e que, infelizmente, se perde na tradução para o português.

Quando estou trabalhando com uma obra que já tem traduções para outras línguas que eu domino em algum grau, gosto de consultar essas traduções como referência. Mas no caso de Sul da fronteira, oeste do sol, essa consulta foi também um retorno à primeira leitura. Ao abrir novamente meu exemplar da tradução de Phillip Gabriel, vi que eu havia grifado vários trechos por achá-los particularmente bonitos ou marcantes. E em alguns casos, comparando esses trechos com o original, percebi que eles eram mais distantes do que eu esperava. Isso não é um fenômeno particular deste livro. De maneira geral, as traduções para a língua inglesa costumam ter mais liberdade para simplificar ou adaptar o texto, e até mesmo suprimir pequenos trechos, visando uma leitura mais fluida. Cada tradutor (e cada editor, preparador e revisor, pois nenhum tradutor trabalha sozinho) traduz de acordo com as normas vigentes em sua língua naquele momento, e os resultados sempre terão aspectos positivos e negativos, sempre poderão ser julgados dependendo do ponto de vista. Então não digo isso para criticar a tradução alheia nem implicar que a minha seria mais “correta”, mas porque essa experiência me fez refletir.

Pessoalmente, tendo a me ater mais às estruturas de frase e busco não fazer grandes adaptações. Mas conforme ganho experiência, percebo que esse tipo de “fidelidade” nem sempre é a resposta óbvia. Há momentos em que priorizá-la significa perder outras coisas, como o ritmo, o humor ou a naturalidade de uma expressão. É preciso sempre buscar um equilíbrio, e as traduções do inglês, que geralmente pendem para decisões diferentes das minhas, servem como um lembrete disso. Não posso negar que perceber essas diferenças fez com que eu me sentisse um pouco traída. Como leitora, por ter grifado aquelas palavras sem pensar na distância que me separava do original, mas também como tradutora, por me perguntar se, mantendo as minhas prioridades na tradução, eu conseguiria chegar a soluções tão bonitas, do tipo que um leitor grifaria. O fato é que essas decisões do tradutor criaram frases que ressoaram tanto em mim que eu cheguei a grifá-las, e seu texto fluido, bonito e com um toque de humor certamente influenciou meu gosto pela obra.

Também tenho plena consciência de que alguém pode um dia comparar minha tradução com o original e se sentir igualmente incomodado pelas diferenças que, inevitavelmente, encontrará. Pois na tradução é sempre mais fácil ver o que se afasta do original do que o que se aproxima. Não é à toa que a relação entre tradução e traição é das mais repetidas. Às vezes, me perco nas reflexões sobre tudo isso e acabo me esquecendo do básico: o fato de que antes este livro não podia ser lido em português, e agora ele pode. É importantíssimo pensar sobre os detalhes de minhas escolhas como tradutora e buscar as soluções que me pareçam mais adequadas, claro. Mas também preciso lembrar que minha participação é só uma etapa dentro de uma relação maior.

Quando voltei a este livro, além de me perguntar se eu reencontraria a atmosfera que me atraiu, eu também me perguntava se conseguiria recriá-la para os leitores brasileiros. Não sei responder a essa pergunta, é claro. Mais do que isso, desconfio que a própria pergunta esteja errada. Assim como a obra me trouxe coisas distintas em cada leitura, ela certamente será diferente para cada leitor. Meu papel aqui é apenas possibilitar que mais pessoas possam ter essa experiência, e torcer para que sejam tão boas quanto as minhas.

Este texto foi originalmente publicado na edição de Sul da fronteira, oeste do sol, de Haruki Murakami, publicada pela TAG Curadoria.

Quem escreveu esse texto

Rita Kohl

É tradutora.

Matéria publicada na edição impressa #48 em junho de 2021.