Política,
Paz de dois gumes
Assinado há um ano, acordo entre governo colombiano e as Farc paradoxalmente não trouxe a alegria esperada e isolou seus artífices
15nov2018 | Edição #9 mar.2018As coisas não andam bem para os três protagonistas das negociações do Processo de Paz na Colômbia. O presidente Juan Manuel Santos, que se jogou de cabeça numa saída negociada que lhe valeu o Nobel da Paz, não passa dos 20% de aprovacão nas pesquisas. Timochenko, o comandante das Farc, que conduziu as negociações e agora é candidato à presidência, não passa dos 3% e sofre agressões quando sai às ruas em campanha. Na cidade de Pereira, conseguiu caminhar por dois quarteirões. De baixa estatura, com ares de sacerdote, já sem camuflagem e sem o fuzil, mostrou-se estoico, porém indefeso diante de pessoas que lhe atiravam ovos e pedras.
No outro extremo está o ex-presidente Álvaro Uribe Vélez, o líder político mais notório da história recente da Colômbia, que atingiu altíssimos níveis de popularidade por ter derrotado estrategicamente uma guerrilha. Porém, um número importante de seus colaboradores foram condenados ou estão foragidos, e ele próprio foi recentemente notificado de decisões judiciais que pedem que seja investigado, por ter ultrapassado os limites legais na estratégia contraguerrilheira, pela forma como tratou os opositores, inclusive cortes judiciais, durante o seu governo (2002-10). Em 16 de fevereiro, a Corte Suprema abriu investigação contra ele por suposta manipulação de testemunhas.
O acordo entre o governo e as Farc foi assinado há pouco mais de um ano, com grande aparato, na cidade de Cartagena de Índias, depois de longas negociações. As Farc — a guerrilha mais antiga e poderosa da Colômbia — reintegrou 6.900 combatentes à vida civil, e a comissão das Nações Unidas encarregada de verificar que aquilo que tecnicamente não foi chamado de entrega, mas de deposição das armas, se cumprisse de forma cabal, surpreendeu-se com o tamanho do arsenal: milhares de fuzis novos, toneladas de explosivos e até mesmo mísseis terra-ar.
Embora resíduos da guerrilha, misturados com os traficantes de drogas, continuem gerando inquietação em regiões periféricas, várias vezes noticiou-se que durante semanas não morriam soldados e que os leitos para atendê-los no hospital militar permanecem vazios. Milhares de proprietários voltaram para as terras que tiveram de abandonar. Os colombianos percorrem, fazendo turismo, diversas regiões, em geral lindos paraísos naturais, e a notícia da paz fez crescer o número de visitantes ao país.
Paradoxo
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Eis o paradoxo: embora a paz tenha trazido benefícios inegáveis, a percepção sobre ela é turbulenta. Os benefícios não parecem suficientes para curar as feridas deixadas por um confronto de cinquenta anos. A paz não disparou a alegria na sociedade que muitos esperavam. No referendo convocado pelo governo, embora o Não aos acordos tenha ganhado por alguns milhares de votos, viu-se que a sociedade se partiu diante da questão.
A guerrilha, que chegou a tal poder militar (em 1998, temia-se que pudesse tomar Bogotá), não foi capaz de dar uma guinada para ser protagonista na política. Viviam, ou ainda vivem, em um tempo alternativo ou passado. Sinal disso foi a decisão que tomaram, apegados à identidade histórica, para manter a sigla Farc, que antes significava Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia, para redefini-la como Fuerza Alternativa Revolucionária del Común. Um coro de vozes apontou o absurdo de conservarem uma marca de guerra em tempos de paz. Hoje, ninguém se lembra desse nome comprido, e a sigla Farc continua a ser associada a um passado que, a cada nova revelação, se mostra menos épico e mais doloroso.
Quem quis mudar de nome foi o comandante Timochenko, candidato à presidência. Pediu que seja chamado pelo nome de batismo, Rodrigo Londoño, mas não conseguiu. Continua sendo Timochenko — nome que remete à nomenclatura soviética. Em suas raras saídas à rua, grupos exaltados o chamam aos berros de assassino e atacam o seu carro. Suponho que os guerrilheiros acreditavam que seriam aplaudidos por algum setor da população, mas não, foram vistos em profunda solidão, mais apoiados pelo governo e pelos fiadores internacionais que pela “classes exploradas” que seu projeto dizia representar.
Timochenko sentiu tamanha animosidade que decidiu suspender sua campanha para pedir garantias. É possível que algumas dessas sabotagens tenham sido, como ele mesmo denunciou, promovidas por uribistas. Mas a verdade é que ainda muitos dos que votaram pela paz não esquecem tantas coisas cruéis que por tantos anos essa guerrilha fez. E as suas explicações, a crueldade que eles, “o povo”, enfrentavam por parte da classe dominante e do imperialismo, e que justificaria a sua luta, não conseguem diminuir a indignação.
Uribe
Uribe, que teve êxitos militares contra as Farc, o que levou uma maioria de colombianos a considerá-lo um salvador da pátria, fracassou, no entanto, na intenção de levar aqueles guerrilheiros veteranos a uma mesa de negociações. E se tornou o principal inimigo de Santos, seu antigo aliado. Não perdoou que tenha subido nas suas costas para chegar à presidência e, uma vez no poder, tenha mudado, sem consultá-lo, a política de mão de ferro e decidido começar, sem o seu aval, o diálogo com a guerrilha.
Oito anos depois, Uribe continua a ser o inimigo público número 1 do presidente e da paz
Oito anos depois, Uribe continua a ser o inimigo público número 1 do presidente e da paz. Até pouco tempo atrás, as maiorias pareciam perdoar certos “pecados” dele, por ter detido o avanço guerrilheiro e instaurado a “ordem” em boa parte do país.
Mas sucessivas denúncias sobre fatos de seu passado e presente trincaram a sua popularidade. Nessa campanha, em que os seus pré-candidatos são ofuscados por ele próprio, insufla seguidores para que votem com ódio, como fez no referendo, segundo confessou seu coordenador na campanha. Discursa contra Santos pelos benefícios concedidos às Farc e faz multidões acreditarem, embora soe absurdo, que tudo faz parte de uma estratégia armada por Santos, pela guerrilha e por outros para implantar um sistema castro-chavista na Colômbia. Alguns de seus seguidores disseram que, se chegarem ao poder, farão picadinho do acordo de paz.
Uribe justifica o “protesto social” das ruas contra os ex-guerrilheiros sem demarcar muito bem os limites. Coisa grave num país como a Colômbia, com ódios não suficientemente digeridos, que podem nos fazer regredir ao indesejável. Não é especulação: algumas autoridades, como o procurador-geral, alertaram sobre o assassinato, neste ano de paz, de dezenas de líderes de movimentos sociais, entre eles alguns guerrilheiros desmobilizados.
Quando se pergunta a Uribe por que não se distanciou da política, como é o costume dos ex-presidentes colombianos, responde que é ex-presidente, não ex-patriota, e que se sente no dever de combatente de salvar o país. E, com um espírito que uns qualificam de bom patriota, outros de megalômano e messiânico, continua a incansável pregação contra o inimigo, agora ampliado. Inimigos da pátria são os que não estão em suas fileiras.
Embora a sua beligerância tenha sido efetiva contra as Farc e contra Santos, não parece ser tanto com os candidatos que estão por fora do sistema, como Gustavo Petro e Sergio Fajardo, que, embora bem diferentes, estão em cena, encabeçando as intenções de voto. Petro, ex-prefeito de Bogotá, é o mais nítido representante da esquerda; o independente Sergio Fajardo, ex-prefeito de Medellín, se situa no centro, com uma proposta que define como de reconciliação.
A direita, tanto uribista como santista, não está confortável, pelo cansaço criado pela corrupção sistemática, que envolve todos os poderes públicos, em especial os partidos do establishment, magistrados das altas cortes, parlamentares presos por favorecer empresas em obras estratégicas, o próprio presidente Santos e o candidato uribista, Óscar Iván Zuluga, acusados de receber dinheiro da Odebrecht na campanha de 2014.
Assim, o tema da paz, que de algum modo alinhou o país, se somou ao da corrupção, que altera o alinhamento. Tanto os amigos como os inimigos da paz, que partilharam o poder, estão envolvidos em um saque sistemático dos recursos do Estado, inclusive verbas de combate à desnutrição infantil.
É possível que o libreto mude e Uribe não seja capaz de identificar a mudança nos tempos. Ainda tem poder, mas é visto como um patriarca que chega a seu outono, um solitário, embora rodeado das multidões que o idolatram. [Tradução de Laura Lobo]
Matéria publicada na edição impressa #9 mar.2018 em junho de 2018.