Política,

Florestas também cantam

Enquanto o Brasil ouvia Bruno cantar com a floresta, ninguém sabia que ele e Dom já estavam mortos – salvo seus algozes

07jun2023 | Edição #70

Na mesma semana em que Bruno Pereira morreu, Bruno Pereira reviveu. Imagens têm esse poder, o de ressuscitar os mortos. E Bruno Pereira ressuscitou cantando, entre as folhas, como que recém-descoberto por uma expedição etnográfica, algo como uma antropologia às avessas, em que os observados somos nós, não eles, os povos da floresta. Estes, contudo, estavam lá. Podemos ouvir suas vozes. Mas não os vemos — é como se a floresta cantasse com Bruno, um coro de epífitas, musgos e cipós, até o ponto em que já não sabemos mais se é Bruno quem canta ou se é a floresta e tudo que nela habita. 

Quem não conhecia o indigenista Bruno Pereira ficou conhecendo assim, num vídeo que se disseminou pelas redes enquanto equipes de busca se espalhavam pelo Vale do Javari atrás de notícias suas e do jornalista Dom Phillips, desaparecidos no caminho entre a comunidade de São Rafael e a cidade de Atalaia do Norte, extremo oeste do Amazonas. Enquanto o Brasil ouvia Bruno cantar com a floresta, ninguém sabia que ele e Dom já estavam mortos — salvo seus algozes.

O vídeo em questão data de 2019, três anos antes da manhã em que Bruno e Dom pegaram o barco para descer o Rio Itaquaí e não chegaram a seu destino, assassinados a tiros numa emboscada armada por pescadores ilegais. Na ocasião, Bruno, ainda funcionário da Funai, liderava no Vale do Javari a maior expedição de contato com povos isolados das últimas duas décadas. Segundo relatos de quem estava lá, foi o registro de um momento de descanso, uma pausa na mata em que Bruno decidiu entoar um canto indígena para ajudar a amenizar a exaustão da equipe. Pelo que se conta, era Dom Phillips quem filmava.

Bruno, que se comunicava em quatro línguas indígenas, escolheu um canto dos Kanamari, povo que habita os afluentes do médio Juruá e algumas áreas do Vale do Javari, entre elas as margens do próprio Rio Itaquaí, alguns meandros acima de onde ele e Dom foram assassinados. É um canto que evoca o som da arara-mãe quando chama seus filhotes para lhes dar de comer, usado em rituais movidos a ayahuasca, bebida sagrada que os Kanamari chamam de hami

Conta-se que Bruno aprendeu a canção num desses rituais, ensinado por um marinawa, pajé que tem o poder de enxergar as doenças quando sob o efeito da ayahuasca: diante do corpo enfermo, o xamã faz o diagnóstico, sopra sobre ele a fumaça medicinal de seu cachimbo e então deita em sua rede entoando canções de cura. No canto da arara que a voz de Bruno escolheu eternizar, seu nome é citado: “Wahanararai wahanararai / Marinawa kinadih / Tabarini hidja-hidjanih”.

Doenças de branco

A Terra Indígena Vale do Javari é o território com o maior número de índigenas isolados do Brasil; os Kanamari, que a si mesmo chamam de Tüküna (“gente”) estão entre as seis etnias contatadas da região, que inclui também os Marubo e os Matis. Um processo que, no caso dos Kanamari, começou na primeira metade do século 20, com a chegada de não indígenas ao médio Juruá, e incluiu longos anos de envolvimento com a extração de borracha, na qual trabalharam para os seringalistas na forma de escravidão por dívida. Hoje os Kanamari lutam para sobreviver às doenças que o marinawa, seus cantos e seu cachimbo não conseguem curar; doenças de branco: hepatite, pneumonia, aids.

Ainda assim, a despeito de quase um século de contato, o povo Kanamari pôde preservar relativamente intacta sua cultura, sua língua, sua cosmologia, seus cantos, seus rituais. Seu mundo. Um mundo que, segundo eles, nasceu da queda de um céu ancestral que se transformou em floresta, plantas, rios, bichos, gente: tudo o que vive ao rés do chão teria nascido das ruínas desse céu caído. Em seu lugar, surgiu outro céu, aquele que hoje paira sobre as cabeças, e dentro dele fica o Céu Interior: é para lá que vão as almas depois de morrer, levadas pelos kohana, entidades celestes.

A viagem entre o mundo de cá e o Céu Interior é longa e equivale à duração do luto. O luto para os Kanamari acaba quando a alma chega ao Céu Interior e encontra a rede que os kohana lhe armaram para que descanse da viagem, até que por fim ganhe um novo corpo, um corpo feito de folhas de buriti, e se torne kohana ela também. Contam os Kanamari que o mundo ali, no Céu Interior, é igual ao de cá, com a diferença de que são todos parentes. Todos os povos, os da floresta e os de fora, inclusive os indígenas rivais dos Kanamari aqui na Terra e os brancos; todos vivendo juntos, sem os conflitos do céu decaído aqui de baixo. Um mundo sem dor.

É bem possível que lá, em algum lugar do Céu Interior dos Kanamari, deitado em sua rede, Bruno Pereira continue cantando. E a floresta com ele.

Quem escreveu esse texto

Xavier Bartaburu

Matéria publicada na edição impressa #70 em maio de 2023.