Política,

Até que enfim

Sob a pressão de marchas de mulheres e de uma expressiva mobilização de escritoras, a Argentina debate a legalização do aborto

20nov2018 | Edição #11 mai.2018

Já faz alguns meses que penso nela todos os dias. Ela volta em conversas, no trem, enquanto preparo o café da manhã. Bernadette. Bernie. Foi minha colega no ensino médio. Era muito bonita; tinha um olho estrábico, o cabelo louro, usava a saia do uniforme muito curta. Teve o primeiro aborto clandestino aos dezesseis anos. Fez a operação num lugar que eu conhecia: para chegar, tinha que subir uma escada estreita, e depois uma pessoa com avental branco perguntava quantos meses, dava o preço e fechava a porta sem mais nada, sem dar os horários de funcionamento nem explicar as precauções ou preparações necessárias. Anos depois, Bernie teve outro aborto, num local famoso pela irresponsabilidade. Machucaram-na — e quando não conseguiram conter a hemorragia, ela foi jogada na rua. Sangrou pela calçada até conseguir chegar ao hospital onde morreria dias depois.

É certo que a esmagadora maioria das mulheres que morrem durante um procedimento de aborto na Argentina é pobre. E, lógico, os mais vulneráveis devem ser os primeiros a ser protegidos. Mas o aborto é ilegal e clandestino para todas: Bernie, uma garota de colégio particular, morreu exangue em uma sala de espera de periferia. E agora lembro dela o tempo todo porque o centro de Buenos Aires é um puro caminhar de mulheres com lenços verdes no pescoço, nos quais se lê “aborto legal, seguro e gratuito”. Mulheres anciãs, adolescentes, mães com filhas, mulheres grávidas, mulheres sozinhas, algumas (muito poucas) em casais.

Congresso

Na Argentina, pela primeira vez debate-se no Congresso a legalização do aborto. Nas ruas, a mobilização de mulheres há muitos anos é poderosa, massiva, transversal. As primeiras marchas, de centenas de milhares, pareciam reclamar principalmente contra a violência de gênero, e era o que faziam mesmo, mas por baixo havia muitas outras reclamações: a discriminação trabalhista, o assédio nas ruas, o abuso, o telhado de vidro, a desigualdade. E o aborto. Os lenços verdes começaram a se tornar massivos e, como costuma acontecer no meu país, a força das ruas chegou ao Parlamento.

Atrizes, jornalistas e escritoras falam com os legisladores. Todas pedem o mesmo: façam história

O prédio do Congresso argentino fica no centro comercial de Buenos Aires, a poucos metros da Calle Corrientes, famosa pelos teatros e livrarias, perto de San Telmo, o bairro histórico preferido pelos turistas, e do Once, bairro de imigrantes e de preços populares, onde se pode comer comida coreana, comprar um vestido de noiva ou uma máscara do demônio. Desde que o debate começou, o movimento dentro e fora do plenário não para. Faz uma semana, mais de quatrocentas atrizes assinaram uma carta aberta para os legisladores. Depois, fotógrafas, ilustradoras, músicas, profissionais da imprensa e escritoras fizeram o mesmo, graças à incansável autora e gestora cultural Cecilia Szperling.

Sou escritora, por isso fui à reunião, para participar da assinatura e da foto, com o lenço verde, no MU-La Vaca, centro cultural-revista-point de agitação próximo ao Congresso. Chegaram 350 escritoras de lenço no pescoço: a recepção foi um alvoroço. Algumas eram principiantes, de 25 anos e um livro só; outras, ganhadoras de prêmios nacionais e professoras de gerações inteiras, de cabelo branco bagunçado e divertido, dizendo “até que enfim”, “até que enfim”. Muitas de nós éramos conhecidas de eventos, oficinas literárias ou de leitura: mas algumas trocamos telefone de madrugada ou conseguimos uma receita de uma médica conhecida para comprar remédios. Agora, muitas mulheres abortam com comprimidos, pelo menos as de classe média, entre as quais se encontra a maioria das escritoras. 

Solidão 

Mas a solidão é a mesma, ainda que o risco não seja tão alto. Buscar as instruções na internet. Receber orientação sobre o procedimento por telefone, uma voz desconhecida ou anônima que raras vezes se materializa. Perguntar-se se aquele sangue todo é normal. Perguntar à amiga que veio como acompanhante se continuar sangrando depois de cinco horas é normal. Chegar no hospital e mentir sobre um aborto espontâneo. Temer que alguém chame a polícia, ainda que na Argentina as mulheres não sejam presas por abortar: fala-se dessas e de outras hipocrisias na rua, enquanto as poetas sobem no cenário, as mais novas distribuem camisetas bordadas com o slogan da campanha, as ilustradoras fazem quadrinhos e sketches no asfalto, guitarras e alto-falantes são ligados, confusão e corre-corre. Tudo é roxo e verde, na roupa, nas bochechas pintadas, nas bandeiras.

Algumas atrizes, jornalistas e escritoras famosas levam as cartas abertas para o plenário. Muitas falam com os legisladores. Todas pedem o mesmo: façam história.

A democracia deve essa lei a nós, mulheres.

Nomear cada uma das escritoras mobilizadas não faz sentido, mas é preciso falar de Claudia Piñeiro, a mais bem-sucedida e uma das mais queridas. Ela falou como representante de todas perante os legisladores. Foi contundente: “Neste debate, estão querendo nos roubar a palavra. A palavra vida: cada vez que alguém diz ‘sou contra a lei de interrupção voluntária de gravidez porque sou a favor da vida’, nos exclui a todos os que não estamos de acordo com isso, e que sim, queremos uma lei que permita a interrupção. Não vamos permitir que nos roubem a palavra vida”.

“Não vamos permitir que nos roubem a palavra vida”, disse a escritora Claudia Piñeiro

Do lado de fora, continuava, e continuará, a vigília de mulheres em alerta, sobretudo as mais jovens, garotas de cabelo verde, garotas que não têm dúvidas, que não vão parar até conseguir, no papel, que seja garantido esse direito sobre o seu corpo.

Enquanto isso, Buenos Aires acontece. Cada dia mais gente dorme na rua, e a cada dia os que não dormem na rua se acostumam mais a vê-los, porque assim vivemos. A cidade é cara e difícil, mas o John Waters está aqui, acabou de tocar Radiohed e o calor não vai embora, e os bancos estão em greve, de modo que as pessoas estão mal-humoradas, como só se pode estar numa cidade com 29 graus no outono. Mas, perto do Congresso, há sorrisos e abraços entre as mulheres.

Ninguém é ingênua: não vai ser fácil os senadores aprovarem essa lei. É possível que o caminho termine em decepção. Mas há um ar de triunfo. Estamos tão próximas, tão orgulhosas. Tomara. [Tradução de Paulo Werneck

Quem escreveu esse texto

Mariana Enriquez

Escreveu As coisas que perdemos no fogo (Intrínseca).

Matéria publicada na edição impressa #11 mai.2018 em junho de 2018.