Poesia,

Um rigor diferente

Morto em janeiro, aos 103 anos, o chileno Nicanor Parra renovou as letras latino-americanas com sua antipoesia e sua personalidade única

15nov2018 | Edição #9 mar.2018

Para além das lógicas e avassalando a razão, o poeta Nicanor Parra, morto aos 103 anos, parecia roçar a imortalidade. Transformou-se em uma figura emblemática, que funcionava, já fazia várias décadas, como um mito vivo. Um ser que cativava o mundo hispano-americano e sucessivas e diversas gerações, por sua precisão, seu engenho, um saber concentrado, irônico, pronto para produzir uma gargalhada que desmantelava as estruturas mais apreciadas dos rígidos mandatos institucionais.

Com a publicação de Poemas e antipoemas, em 1954, Parra começou de imediato a liderar uma zona extensa da estrita e belicosa poesia chilena. O poeta abriu um espaço para uma poética “outra”, muito mais descentrada, mas dotada de um rigor que se ancorava numa certa “desconstrução” das formas mais recorrentes em que se textualizavam o descontentamento, a emotividade, o sem sentido. Sua maneira particular de abordar os nós contemporâneos, de revisitar para então retorcer as convenções, de ativar o engenho e a inegável sabedoria popular, tornou-o indispensável para dessacralizar certos espaços talvez já esgotados pela solenidade e pela transcendência aberta. Uma pompa que insistia em manter a poesia e a arte como um território possível apenas para os escassos eleitos por alguma divindade. 

Família

Não se pode desligar a poética e a “posição literária” de Nicanor de sua interessante emergência biográfica. Nascido na cidade sulista de San Fabián de Alico, Nicanor Parra fez parte de uma família que cultivou de maneira extensiva o folclore e uma diversidade de gêneros artísticos ligados às culturas populares. Violeta Parra (1917-1967), sua irmã, de quem o poeta era muito próximo, é uma referência fundamental para a música latino-americana, e seu trabalho continua proliferando num coro múltiplo e inamovível. 

Mas havia também Roberto Parra, Hilda Parra, entre outros irmãos que, de violão na mão, percorreram diversos espaços chilenos, cantando em circos interioranos, em cantinas ou em festas populares, e assim foi se estendendo, de modo notável, o sobrenome Parra pelos quatro pontos cardeais da cultura popular. 

Nicanor gerou uma poesia que acentuava a desdramatização dos fios psíquicos do sujeito

Sem dúvida, a sua numerosa família, que fez do folclore uma prática de vida, foi decisiva para a formação conceitual e literária do poeta. Nicanor foi o membro mais letrado entre os irmãos. Ainda que tenham compartilhado uma origem popular idêntica, marcada pelo aperto econômico, graças às suas aptidões intelectuais ele teve uma grande formação universitária científica (estudou física, matemática e mecânica na Universidade de Oxford, assim como em Johns Hopkins), mais tarde foi professor na Universidad de Chile. Ainda assim, isto é certo, encontrou na poética familiar o seu rumo próprio, particular.

A essa poética compartilhada com o enclave familiar, Nicanor acrescentou um rigor diferente, que marcou um antes e um depois na poesia chilena e hispano-americana, ao gerar um novo dispositivo poético que acentua a desdramatização, ou uma redramatização, dos fios psíquicos em que se estrutura o sujeito. Fios em que se aninhou uma ironia inteligente, aguda, que lê os signos sociais com um olhar que desvelava as tramas e os truques em que se tecem as convenções.

Efetivamente, os antipoemas o converteram no antipoeta que ele decidiu encarnar. Na outra margem estava a figura e a poesia incombustível de Pablo Neruda (1904-73), já muito inserido nos cenários internacionais e com um caminho político marcado pela filiação ao Partido Comunista.

Divisão no cenário poético

De uma forma ou de outra, produziu-se de maneira simples e talvez até linear uma divisão no cenário poético, devido à maneira ou aos modos de apresentar visões ou versões críticas sobre a ordem do mundo e seu desajuste. É claro que Pablo Neruda é um dos poetas mais consideráveis em língua espanhola, isso não está em discussão, mas o surgimento de Nicanor Parra e de sua proposta abriu um dilema no qual parecia necessário tomar partido. Essa divisão alimentou consideravelmente o debate intelectual num tempo em que os pactos culturais experimentavam transformações que marcariam novos signos e novas condutas, com uma velocidade assombrosa.

Com efeito, a legitimação veloz da histórica revolução cultural dos anos 1960 se instalou para mover os parâmetros e abrir os sentidos em direção a novos paradigmas. De maneira especial, Nicanor Parra sintonizava numa frequência parecida com a dos poetas e escritores emergentes dos Estados Unidos. Autores que experimentavam a revolução com uma intensidade especial e cujo centro foi o movimento hippie, que abominava as antigas estruturas e quis levar o amor e a sexualidade a um novo domicílio, desta vez coletivo e com tintas psicodélicas: Allen Ginsberg e Lawrence Ferlinghetti foram alguns dos seus expoentes mais ativos.

Nicanor Parra, então, contou com uma atmosfera cultural propícia para uma leitura atenta da sua obra, pois se experimentavam fortes mudanças e se buscava dessacralizar certos pressupostos repressivos para circular mais livremente pelo espaço social. Nesse sentido, a sua poética combinou com o seu tempo. Mostrou-se libertadora e se inscreveu no desejo de novas circulações para os corpos submersos na esperança de comunidades marcadas pelo imperativo de romper com as repressões mais conservadoras.

Crise

Mas o poeta iria experimentar, em 1970, uma crise, digamos, política, que marcaria para ele um tempo duro e cheio de polêmicas no campo cultural. Ele aceitou um convite para um chá com Pat Nixon em plena Casa Branca. Foi esse chá compartilhado com a primeira-dama estadunidense o que o tornou completamente inaceitável para setores ultraengajados com novos rumos para a política latino-americana, numa época marcada pela Guerra Fria. 

A divergência explodiu com intensidade e se manifestou naqueles anos em que a maioria dos jovens e dos escritores e artistas eram contrários à política colonialista dos Estados Unidos e, em especial, se opunham com fervor à Guerra do Vietnã em atos e marchas que se estendiam incessantes, não só em solo americano mas em todo o mundo ocidental.  

Ele conquistava, como sempre, a admiração dos estudantes. Lembro de suas aulas, de certos dizeres inteligentes e engenhosos

Conheci Nicanor Parra em 1973, justo no ano “maldito”, quando era aluna do Instituto de Estudos Humanísticos da Universidad de Chile. Assisti a algumas de suas aulas na universidade e, do posto privilegiado de aluna, pude conhecer o poeta-professor. O golpe de Estado, naquele mesmo ano da minha entrada, semeou pânico e horror. Sua figura era, de certo modo, ambígua. Conhecíamos seu desencontro com parte da esquerda, mas, por outro lado, sua poética estava distante demais da solenidade patriótica das forças armadas, parecendo subversiva em relação a cada uma das normas que estavam se implantando por meio do terror e das graves violações aos direitos humanos.

Naquela época caótica, uma época obscura em todos os sentidos, o que primava na universidade era o silêncio. Alguns dias depois do golpe, morreu Pablo Neruda (morte hoje investigada como possível crime), e o seu funeral talvez tenha sido a última manifestação política que se realizaria durante vários anos. Um funeral apressado, custodiado por militares, sem nenhuma cerimônia oficial, porque os tempos não o permitiam.

A morte de Neruda fez crescer sua fama, já muito significativa. Nicanor Parra se ressentia dessa fama, isso era visível, nas suas aulas, pelos comentários de certo modo irônicos sobre Neruda. Ele, em compensação, precisamente por sua ambiguidade política, habitava um espaço reduzido, porque muitos seguidores, escritores, críticos literários, poetas, tinham partido para o exílio. Além disso, ainda o perseguiam os efeitos do chá com Pat Nixon, que pusera um extenso número de poetas e intelectuais contra ele. Isso teve consequências no poeta, que se distanciou ostensivamente da esquerda e acabou se posicionando num lugar crítico que antes não ocupava. 

Aulas inteligentes

Mas suas aulas continuavam e ele conquistava, como sempre, a admiração de seus estudantes. Lembro de suas aulas, ou melhor, lembro de uma determinada atmosfera, certos dizeres inteligentes e engenhosos. Mais ainda, certas asseverações dele foram úteis na minha própria vida literária: “Uma coisa são as metáforas, mas outra coisa são as ‘metaforonas’”, dizia. Tinha razão, e me parece uma excelente forma de enunciar algo assim. Clara como a água.

Havia também sua maneira de resumir os dramas amorosos com brilhantismo: “Quando um homem vai embora com a mulher de outro, Troia arde”. Porque Nicanor Parra tinha um jeito lúdico de se relacionar conosco, os demais, que fazíamos o papel de público. Tinha fortes traços lúdicos e performáticos. Podia recordar sem titubeios longos poemas, ou mostrar espanto diante de opiniões sobre sua obra, ou simplesmente escutar sem esboçar impressão sobre o que era dito, afinal, para seus alunos (entre eles, eu mesma), Parra era Parra. Parra é Parra, dizíamos.

No entanto, sua fama, seu lugar durante aqueles anos, estavam mais para opacos. Foram opacos até que ele pôde manifestar o seu antagonismo em relação à ditadura e administrar melhor o desacordo com a esquerda.

De maneira progressiva, Nicanor recuperava o seu território no território. Eu o via com frequência naqueles anos, depois da universidade. Os seus artefatos já faziam parte do patrimônio cultural, eram oportunos, de certo modo eram realistas, davam conta de como funcionava o aparato social: “A esquerda e a direita, unidas, jamais serão vencidas”, escreveu. Evidentemente, Nicanor apontava para uma questão mais profunda quando falava de acordos entre direita e esquerda. 

Reparação

Mais adiante, com a transição para a democracia, Nicanor Parra já estava completamente reparado. Quando fez oitenta anos, em 1994, o governo lhe prestou uma grande homenagem, ao lado de José Donoso, que chegava aos setenta. Eu assisti à cerimônia. Era necessário porque, de um jeito muito básico, estavam se restabelecendo os suportes culturais que tinham sido praticamente ou totalmente inexistentes sob a ditadura (1973-1990). Além disso, era muito interessante que dois dos principais escritores chilenos fossem reunidos numa homenagem conjunta. Mas para mim foi, de certo modo, divertido porque, mais que as obras dos autores, o que saltava aos olhos era a idade dos festejados. Enquanto Nicanor atravessou a sala correndo para receber o prêmio, Donoso fez o mesmo com lentidão, o que originou inevitáveis comparações entre ambos. Os presentes comentavam como Nicanor parecia jovem, quase um adolescente.

Mais tarde, eu o acompanhei quando recebeu o Prêmio Juan Rulfo, em Guadalajara. Era a primeira vez que se outorgava o prêmio, e eu vivia no México. Mas antes, durante uma breve passagem pelo Chile, Nicanor Parra me ligou para dizer que queria ler para mim o discurso de aceitação. Fui à casa dele em La Reina e ali ele o leu para mim, ou realizou a performance dele. Era um prêmio importante e generoso. É claro que Nicanor não prescindiria da ironia. Descreveu, com muita precisão, o escritor Juan Rulfo, e mais adiante disse, disso eu me lembro bem, que a maioria das pessoas lhe perguntava o que faria com o dinheiro. 

“A esquerda e a direita, unidas, jamais serão vencidas”, escreveu Nicanor sobre como funcionava o aparato social

O discurso era “parriano”: era o discurso do antipoeta que mantinha uma distância pouco comum com a obtenção de prêmios. Um poeta que, de alguma forma, desconstruía aquelas honrarias com uma lucidez marcante diante do efêmero.

Pouco tempo depois, nos vimos em Paris, durante um encontro de escritores chilenos. Parecia ainda sofrer do amor intenso que dedicou a uma mulher que já tinha morrido. Parou enquanto atravessávamos uma ponte, evocando-a com aquela sua eloquência teatral. Eu olhava enquanto ele falava e falava, e via como todos os seus cabelos se eriçavam ao vento. Parecia genial, com todos os pelos arrepiados, enquanto falava de sua amada morta numa ponte de Paris.

Depois se transformou num ícone universitário. A Universidad Diego Portales (uma instituição privada) o contratou como diretor da carreira de escrita criativa. Um cargo simbólico, é evidente. No entanto, de alguma forma, a universidade adquiriu certa identidade cultural a partir da imagem do poeta. Construiu uma grande biblioteca com o nome dele, onde se realizou uma infinidade de eventos. Ao mesmo tempo, grande parte dos escritores jovens ou relativamente jovens renovaram os seus laços de admiração e respeito por Nicanor Parra e, mais ainda, seria possível falar de um certo fervor massivo que se manifestou quando o (primeiro) governo de Sebastián Piñera o apresentou formalmente como candidato ao Prêmio Nobel de Literatura.

Talvez o mais interessante daquele tempo tenha sido o entusiasmo dos fãs, que se transformou numa adoração quase religiosa. Eu me perguntava, naquela época, como teria sido seu discurso caso tivesse ganhado o prêmio, e o que o poeta teria feito com o dinheiro. Mas, claro, ele não ganhou o Nobel, e não houve discurso.

Teatralidade intacta

Ocasionalmente eu o encontrava na casa de praia dele. Os anos se somavam, e se somavam para os dois. Mas, no caso dele, aquela teatralidade se mantinha intacta, a memória impecável continuava citando longas passagens do Hamlet de Shakespeare em inglês. Tudo seguia o seu curso de maneira previsível. 

Em geral, ao longo do que já parecem milhares de anos, sempre conservei aquela posição de aluna: ele falava, eu escutava. Talvez o período universitário tenha me predisposto a esse lugar. Jamais consegui tratá-lo por, como outras pessoas, e ele também não o fez comigo, mesmo que estivéssemos num encontro plenamente social. Tratávamos um ao outro de usted, ainda que nos conhecêssemos havia muito tempo. 

Aos noventa, Nicanor era um superstar. Esse decênio foi muito bom para ele: recebeu muitas demonstrações de reconhecimento, que se tornaram ainda mais visíveis com o Prêmio Cervantes em 2011. Ele não viajou para recebê-lo, enviando em vez disso parte da família. Mas eu estava com ele na praia justo no dia em que depositaram o dinheiro na conta. Estava presente o seu filho músico, Juan de Dios, que tocou violão. Ele falou de Miguel de Cervantes, via-se que estava feliz com o prêmio e com o depósito. Perto do filho e, como sempre, da música. Foi uma tarde pacífica. Cervantina.

E, mais adiante, sob o governo de Michelle Bachelet, deram-se as comemorações dos cem anos. Os anos que o poeta se preparou para completar graças ao consumo sistemático de vitamina C, que comprava diretamente dos laboratórios. Graças também à distância e à inteligência que lhe permitiam passar por cima ou ignorar os inconvenientes. Graças àquela teatralidade que sempre o acompanhou e à eterna curiosidade pela vida. Depois de tanto tempo.

Nicanor morreu. De certo modo. Já sabemos que o tempo é só mais uma ficção. [Tradução de Julián Fuks

Quem escreveu esse texto

Diamela Eltit

Escreveu Jamais o fogo nunca (Relicário) e A máquina Pinochet e outros ensaios (e-galáxia).

Matéria publicada na edição impressa #9 mar.2018 em junho de 2018.