Poesia,

Sozinha com Elizabeth Bishop

Escritora compara sua experiência com a solidão e com a da poeta norte-americana, que evitou a vida toda expor sua sexualidade

01nov2018 | Edição #18 nov.2018

“Quando for escrever o meu epitáfio, você precisa dizer que eu fui a pessoa mais solitária que já viveu”, disse Elizabeth Bishop numa carta famosa para o poeta Robert Lowell em 1974. Para ela, o sentimento não era novo. Ela escreveu, entre 1935 e 36, em um poema sem título que nunca publicaria, que a sua vida futura seria associada a uma solidão pesada, pelágica: “The future/ sinks through water/ fast as a stone,/ alone alone”. No entanto, a despeito do peso oceânico da sua tristeza, ela procurou proteger e preservar a sua solitude, porque estar só, ela esclarece em um breve ensaio de 1929, é um estado especial — distinto da solidão — do qual devemos cuidar com carinho. “Por que será que tantos de nós tememos ficar sozinhos?” 

Escrito quando tinha apenas dezenove anos e ainda estava na escola, “On Being Alone” [sobre estar sozinha] sugere que muita gente esqueceu como ficar só, sentindo-se até, conforme ela sugere, aterrorizada com a solidão. O ensaio me tocou de um jeito especial quando o li pela primeira vez, neste ano. 

Desde cedo, Bishop se sentia sozinha. O pai morreu logo depois que ela nasceu, em 1911, e sua mãe, Gertrude May Bulmer, que andava cada vez mais distante dela e sofria de doenças psiquiátricas, a fez zanzar entre casas de parentes em Massachusetts e Nova Scotia, até ser internada em um hospício. Bishop ouviu a mãe pela última vez logo antes de Gertrude ser hospitalizada, quando soltou um gemido longo, assustador, quase sobrenatural, que a filha ouviu enquanto levava uma vaca até o pasto. 

Quando era criança, Bishop sofreu abuso do tio, George Shepherdson, um homem grosseiro, sádico até, que uma vez a deixou dependurada pelos cabelos na sacada de um sobrado; ela achava sua tia Florence de uma excruciante “tolice”. Quando foi para o colégio interno em Walnut Hill e, mais tarde, para a escola Vassar, Bishop evitava voltar para casa durante as festas, implorando aos tios que a deixassem passar as férias com as meninas por quem ela se interessava, ou até mesmo alugando quartos sozinha em hotéis da região. Quando perguntavam sobre sua mãe, Bishop apenas dizia que tinha morrido, talvez para evitar revelar uma verdade que para ela era fonte de embaraço e isolamento. Sempre foi tímida; os sentimentos conflitantes a respeito dos parentes ofereciam a oportunidade de dizer ainda menos, pelo menos sobre eles. 

A poesia, assim como os meninos e as meninas (principalmente as meninas) com os quais flertava, tornaram-se um refúgio, um modo de aplacar antigos gritos. Apesar de desprezar rótulos em geral, Bishop ficava aflita sobre como categorizar a sua própria identidade. Não se identificava abertamente como queer — não gostava de ser “tipificada como lésbica”, como disse ao poeta James Merrill —, mas o seu desejo por mulheres era claro para ela. Não sabia se era “realmente” poeta e buscou encorajamento em outros — e acima de tudo, na juventude, em Marianne Moore, que fazia leituras críticas fecundas e motivadoras dos seus poemas. Ainda assim, mesmo quando começou a publicar poemas, ela disse a Moore que pensava em estudar medicina em vez de escrever. Embora tenha herdado alguma riqueza, não se sentia, apesar dos brincos de pérola, capaz de se integrar com as meninas mais ricas e confiantes da escola. 

Desancorada, aparentemente incapaz de encontrar um caminho simples na vida, volta e meia se sentia isolada e só. “Can it be” [Será que] ela pergunta mais tarde em um poema, “House guest” [Convidada], sobre uma lúgubre costureira que desejava ser freira, “our fates will be like hers,/ and our hems crooked forever?” [nossos destinos se assemelharão ao dela,/ e nossas bainhas ficarão tortas para sempre?]. Em certo sentido, essa era Bishop, a garota modesta que pouco acreditava poder fazer as costuras de sua vida se alinharem.

Sentir-se sozinha e estar sozinha não são a mesma coisa, e Bishop reconhecia que há algo especial, até mesmo salvador, nessa última condição

Mas sentir-se sozinha e estar sozinha não são a mesma coisa, e Bishop reconhecia desde cedo que há algo especial, até mesmo salvador, nessa última condição. “Há uma qualidade específica de estar sozinho, uma atmosfera que nenhum som ou pessoa poderia jamais proporcionar”, ela escreveu em um ensaio de 1929. “É como se estar com pessoas fosse a Terra da mente, a terra com seus montes e vales, aroma e música: mas estando só, a mente encontra seu Mar, o amplo e silencioso plano com diferentes luzes no céu e diferentes, mais secretos, sons.” 

Entendi bem esse sentimento, a beleza especial das horas melancólicas, quando estamos, por opção, sozinhas, e a vela do nosso ser queima de um modo que só é possível quando não estamos na companhia de mais ninguém. “Mas”, como Bishop reconhece, muitas pessoas “têm pavor” de estar sozinhas. “Por que ficar sozinha”, ela reflete, “gera uma provação tão grande, ou por que deveríamos desejar manter a conversa ativa tão interminavelmente? O medo de uma ‘hora quieta’ sozinha”, ela continua, “é maior do que o medo de todas aquelas inumeráveis horas quietas que estão à frente de todos nós”.

Ela sustentava que a vida solitária, longe da quietude enfadonha, seria um tipo de porta para a aventura; é “embarcar em viagens de descoberta” para “encontrar as ilhas da Imaginação”. A vida solitária pode ser reconfortante, se você entende a sua linguagem cheia de sombras, os seus corredores tremeluzentes, a sua vastidão de céu noturno. Ela pode até, Bishop sugere no final, ser uma espécie de presença em si, um “companheiro em nós mesmos que está conosco durante toda a nossa vida […] a pessoa rara”, ela escreve, agora aparentemente descrevendo seu próprio avatar interior de solitude, “cujo coração acelera quando um pássaro sobe alto e sozinho no ar puro”.

Sendo uma filha única que volta e meia se via sozinha e que também ficou, por muitos anos, dentro do armário, entendo bem o que Bishop descrevia. E às vezes senti que, justamente porque quero tempo para mim, não me encaixo no mundo moderno das redes sociais, no qual permitir um tempo só para si parece sugerir algo negativo, que você está com algum problema, ou escondendo algo, ou atormentada, ou apenas “desligada” de alguma forma. Pelo contrário, estar sozinha pode ser um belo privilégio que nos concedemos nos momentos em que é possível desaparecer, lanternas acesas, e silenciosamente viajar para ilhas ainda não cartografadas. 

Macartismo e homossexualidade

A vida solitária de Bishop serviu a múltiplos propósitos. Às vezes, salvou-a; outras vezes, a fez sofrer. Às vezes, esconder-se pareceu necessário. Ficar na dela podia ser uma forma de autopreservação em uma época em que o amor queer era ainda muito “o amor que não ousa dizer seu nome”, na definição célebre de Lord Alfred Douglas em “Dois amores”, poema de 1894 que foi brandido contra Oscar Wilde durante o seu julgamento por obscenidade em 1895. Bishop tinha medo de ser conhecida como lésbica, particularmente na atmosfera repressiva do macartismo, quando o governo americano promoveu uma campanha antigay conhecida como “expurgo dos perversos”, na qual funcionários de segurança do Departamento de Estado se gabavam de demitir funcionários homossexuais — algumas vezes um por dia, o dobro da quantidade de dispensas por infidelidade política. 

Por causa dessa cruzada fanática, 6 mil funcionários do governo se viram desempregados entre 1945 e 1956, por causa de sua suposta homossexualidade. Embora essa campanha por “moralidade e decência” tenha homens como alvo primário, as mulheres que procuravam empregos no governo também corriam risco, uma vez que podiam levantar suspeitas de que eram lésbicas por se vestirem de modo não “suficientemente feminino” ou apenas por morarem com outra mulher.

Autoras como Patricia Highsmith temiam que o rótulo de “escritora lésbica” destruísse a sua carreira; eram tempos, como notou Highsmith no posfácio de 1989 ao seu romance lésbico seminal, Carol [The Price of Salt, 1952], “nos quais os bares gays eram uma portinha escura em algum lugar de Manhattan, quando pessoas que queriam ir a tais bares desciam do metrô antes ou depois da estação mais próxima, senão seriam suspeitos de serem homossexuais”. Mesmo conhecendo alguns casais lésbicos e escritores queer, Bishop continuou com o receio de que a fama literária nos Estados Unidos a tirasse do armário à força. A mudança para o Brasil em 1951 — inicialmente planejada como uma viagem curta de férias — proporcionou certo respiro, porque o Brasil, para Bishop, parecia de certa forma mais tolerante. Nenhum lugar, porém, lhe ofereceria liberdade completa.

Cresci em uma ilha do Caribe onde os meus desejos pareciam impossíveis. Eram tentações mortíferas, tramadas pelo diabo, como eu ouvia dos padres

Como Bishop não conseguia suprimir os seus desejos, vivia em um mundo de contrários, um estado que todos os escritores queer da sua geração conheceram bem demais. Ao mesmo tempo transpirando coragem e exaltando um ideal de discrição quase vitoriano, Bishop vivia e frequentemente viajava com namoradas, mas as descrevia, por escrito ou em conversas, como “minha amiga”, “minha anfitriã”, ou mesmo como “secretária” em vez de namorada. Apesar — ou talvez por causa — da sua indelével timidez, muitas das mulheres que a atraíam — da época da escola, como Judy Flynn e Margaret Miller, até a paisagista e arquiteta modernista Maria Carlota Costallat de Macedo Soares, conhecida como Lota, que conquistaria o seu coração décadas depois — eram o oposto dela: confiantes, sociáveis e bem-cuidadas, mariposas atraídas pelo brilho das luzes das noitadas e da extroversão.

Bishop escreveu sobre o êxtase calmo de ser beijada na cama e acordar ao lado de alguém amado — mas nunca publicou esses poemas mais reveladores. “Breakfast Song” [canção do café da manhã], em louvor a seu último amor, Alice Methfessel, começa com “My love, my saving grace, your eyes are awfully blue. I kiss your funny face, your coffee-flavored mouth” [Meu amor, minha salvação, seus olhos são terrivelmente azuis. Eu beijo seu rosto engraçado, sua boca de café] — mas teria se perdido se um amigo de Bishop, Lloyd Schwartz, não o tivesse encontrado por acaso em um caderno da poeta. Em seu leito de morte, Bishop pediu que Methfessel destruísse as suas cartas de amor, para eliminar qualquer evidência incriminatória de suas inclinações afetivas. (Methfessel, para sorte dos estudiosos, guardou algumas.)

Até o final, mesmo quando ela já estava à beira da morte, ela pensava em se esconder.

Entendi os medos imensos, por vezes paranoicos, de Bishop. No ginásio, tive a minha primeira paixão, Olivia, uma garota morena de tranças negras, mas, mesmo ali, eu só vagamente queria me imaginar segurando a mão dela feito uma garota e não um garoto, que era como as pessoas se referiam a mim. Cresci em uma ilha do Caribe onde os meus desejos — ser percebida como menina, primeiro, e ter liberdade de amar pessoas de qualquer gênero, garotas principalmente — pareciam impossíveis, se não infernais. Eram tentações mortíferas, tramadas pelo diabo, como eu ouvia ocasionalmente de padres nos sermões de domingo. Faltava-me o vocabulário para quem eu era; eu nem sabia que a palavra “transgênero” existia até que a aprendi, anos depois, quando era estudante universitária nos Estados Unidos. 

Durante as duas primeiras décadas da minha vida, escondi quem eu era, tentei enterrar os meus desejos, com medo de apanhar nesta vida e de ser torturada no inferno na próxima se agisse de acordo com eles. Tentei, como Bishop, deixar as costuras da minha vida do lado do avesso — mesmo que elas nunca se ajustassem, incomodando e machucando o meu corpo. Durante anos, senti a depressão me dominar, me possuir, feito um demônio silencioso e cinza. Na vida adulta, como Bishop, volta e meia bebi sozinha no meu apartamento para tentar impedir que a depressão me tomasse — vinho e uísque, é claro, só pioram a situação.

Mas, como filha única, passei muito tempo sozinha, e por isso aprendi a escapar pela fantasia. Nos mundos que eu imaginava, eu era uma menina com outra menina — ou, de vez em quando, um menino — ao meu lado. Nos momentos solitários, aprendi a navegar, como fez Bishop, para outro lugar — e às vezes penso que não teria sobrevivido se não fosse por este escape do tempo de solidão, a minha imaginação. A solidão alimentou a minha escrita, e escrever muitas vezes me ajudou a enfrentar, apesar de não conseguir levar embora, a depressão de sentir que estava vivendo uma mentira feia. No momento mais baixo antes de me assumir como trans, eu estava prestes a dar um fim à minha vida tomando veneno — e então, ao contrário de Bishop, decidi que precisava arriscar viver a verdade abertamente. Saí do armário aos 25 anos, e escolhi ficar nos Estados Unidos em vez de voltar para casa, já que os Estados Unidos ao menos me ofereciam a chance de viver feito a mulher que ama mulheres dos meus sonhos recorrentes. Mas, sem o que Bishop identificou, a profunda graça salvadora da quietude, duvido que teria vivido o suficiente para chegar a me assumir.

Caju e casamento

Bishop quase perdeu Lota, a mulher que aliviaria a sua solidão por mais de uma década, antes mesmo que as duas se aproximassem. Conheceu Lota e sua então companheira, uma ex-bailarina, Mary Morse, em Nova York, no final dos anos 1940; Bishop gostou de Morse e, bêbada, enviou uma confissão de desejo, pela qual rapidamente se desculpou, temendo a indignação de Lota. Apesar do incidente, quando Bishop, anos depois, decidiu escapar para o Brasil por um tempo, Lota ofereceu a ela o seu apartamento de frente para a praia de Copacabana; Lota e Morse estariam em Petrópolis por um mês. No início, porém, o Brasil oprimiu Bishop e ela cogitou ir para Buenos Aires.

Uma fruta manteve Bishop perto de Lota. Depois de morder um caju, o corpo da poeta ficou inchado e inflado. Por dias a fio, Lota, já de volta ao apartamento, cuidou de Bishop, levando-a ao hospital para tomar injeções diárias de cálcio. Bishop era encabulada — não queria se impor, não queria parecer uma megera grotesca e sem noção —, mas as suas defesas foram caindo em relação a Lota. Não demorou a se ver encantada.

“Lota!… Venha me coçar de novo! Estou loucamente apaixonada por você”, escreveu ela no verso do rascunho de um conto nunca terminado, “Saudade de casa”. Morse saiu de casa. Quando Bishop convalesceu, Lota deu a ela uma aliança de ouro e propôs que morassem juntas. O passeio de Bishop pela América do Sul se transformara no cenário de sua nova casa.

A solidão, no entanto, ainda a afligia. Ela se esforçava para falar português fluente e se acostumou a ser deixada de lado pelos amigos de Lota quando eles se cansavam de seu discurso hesitante ou não queriam falar inglês. Ela não tinha amigos próprios no Brasil. Quando Lota foi contratada para construir o colossal Parque do Flamengo, ficou tão obcecada pelo trabalho que Bishop desapareceu da sua vida, e Bishop, se sentindo desertada, teve uma recaída no consumo excessivo de álcool que já a debilitara no passado. Também teve casos no Brasil e em Seattle; quando Lota soube de sua amante em Seattle, teve um colapso e foi hospitalizada. Em 1967, em Nova York, para onde Bishop tinha viajado para dar a Lota algum espaço, Lota alegou estar bem o suficiente para visitá-la e então cometeu suicídio por overdose de sedativos. Sua morte, culpa de Bishop para os amigos, quase a destruiu completamente. Ela só se recuperaria em 1970, enquanto lecionava em Harvard, quando conheceu Alice Methfessel, uma secretária magra, de 27 anos, com extraordinários olhos azuis.

Mas Bishop seguia instável. Álcool e comprimidos — Nembutal para insônia, e Dexamyl, sua pílula da felicidade  — tornaram-se a sua companhia quase constante, suplantando vezes demais a companhia da querida solidão da qual ela falava com carinho. De repente, aquele estar só parecia ruidoso como velhos gritos, miasmático como o cheiro dos cemitérios. Quando estava longe de Alice, petrificada, escrevia cartas sobre o quanto doía estar longe. “Eu seria um naufrágio sem você”, Bishop disse a ela. Entregue a si mesma, Bishop entrou em colapso inúmeras vezes, em alguns casos precisando ser hospitalizada. Quando Methfessel contou que estava envolvida com outra pessoa, um homem chamado Peter, Bishop reagiu mal à rejeição. “A arte de perder não é nenhum mistério”, declarou, depois dessa última perda, em seu mais famoso poema, “Uma arte”, “por muito que pareça […] muito sério”— e, sob o peso da solidão, a sua vida se assemelhava a um desastre fantasmagórico. 

Bishop passou a quase ter medo da solidão, como as pessoas que criticara em seu ensaio, muitas décadas antes. 

Cabelos grisalhos na bacia

Os poemas de Bishop conseguem pintar imagens surpreendentemente claras, como em “O peixe”, mas eram, muitas vezes, exercícios ocultos/sigilosos. Embora Marianne Moore tenha descrito a poesia de Bishop como “arcaicamente nova”, parte de seu trabalho mais sensual que foi publicado escondia o seu assunto em labirintos cristalinos. “O banho de xampu” é uma suave, sutil reflexão sobre lavar os cabelos de Lota, que estavam ficando grisalhos aos poucos — “no teu cabelo negro brilham estrelas”, mas as linhas finais são mais realistas, perguntando a Lota, com uma doce familiaridade, “Vamos, deixa eu lavá-lo, aqui nesta bacia”— e apesar do fato de o sujeito do poema, que nunca tem o gênero definido, ser descrito apenas como “querida amiga”, Bishop temia que o poema pudesse ser “indecente”, explicitamente queer em demasiado. Consequentemente, suas descrições mais nuas do amor, como “Querida, minha bússola” (que termina com ela e sua “querida” indo “para a cama… cedo, mas nunca/ para se manterem aquecidas”, sugerindo intimidade interpessoal), permaneceram inéditas até a sua morte.

A arte de ficar sozinha num mundo onde desejar privacidade pode parecer motivo de suspeita parece, cada vez mais, um mistério

Mesmo se o que ela escreveu por vezes a prejudicara, os seus poemas, como a sua privacidade, muitas vezes tiveram um efeito lenitivo em sua vida, ajudando-a a lidar com a dor e talvez até tornando-se breves talismãs contra a dor. Ela lembrou como se sentiu ao ouvir os gritos da mãe, como a machucou ser rejeitada. Não queria reviver aquelas memórias. A poesia se mostrou capaz tanto de expressar sua dor quanto de protegê-la dela, ao menos por um momento.

Não há nada de errado com uma concha de timidez, ou com um manto no qual resolvemos nos enrolar de vez em quando. Não gosto daqueles momentos em que o cinza demoníaco e possessivo da depressão faz com que o mundo todo pareça solitário. No entanto, como escreveu em 1929, estar sozinha — que é bastante diferente — é irrepreensivelmente especial, sacrossanto. A arte de ficar sozinha, especialmente num mundo onde nossas identidades parecem, com muita frequência, coincidir com aquilo que postamos nas redes sociais ou atingimos publicamente, e como as pessoas reagem a tudo isso — e onde desejar privacidade pode parecer motivo de suspeita — parece, cada vez mais, um mistério. Mas é uma das artes mais extraordinárias, e, para mim, mais necessárias de dominarmos. Perdemos muito de nós mesmas ao esquecer — ou nunca saber — como ficar sozinhas com beleza, sustentadas pela música oceânica do silêncio. [Tradução de Fernanda Diamant
 

Quem escreveu esse texto

Gabrielle Bellot

Dominicana, colabora com a New Yorker e o The New York Times.

Matéria publicada na edição impressa #18 nov.2018 em novembro de 2018.