Livros e Livres,

Operação em primeira pessoa

Cada cirurgia trans é um enunciado somático que inventa um novo modo de vida para além do binarismo sexual

01jan2024 | Edição #77

Neste verão, num dia de julho quase como outro qualquer, meus passos me levaram até um hospital, onde entrei voluntariamente. Depois de ter obtido autorizações psiquiátricas e médicas, ter assinado os consentimentos informados me alertando sobre danos e prejuízos, bem como sobre a irreversibilidade do processo, deitei meu corpo sobre uma mesa de aço e deixei um grupo de cirurgiãs mudar a forma de meu torso para sempre.

A operação visava remover duas protuberâncias que tinham crescido em torno de minhas aréolas quando eu tinha dezesseis ou dezessete anos e que, para os outros, eram o sinal definitivo e incontestável de uma feminilidade com a qual nunca me identifiquei, e de que mesmo os outros chegavam a duvidar ao constatarem minha resistência a tudo o que fosse socialmente considerado feminino. Os outros não hesitavam em chamar de “seios” aquelas convexidades, discretas de um outro modo, ainda que, para mim e para além do olhar e da linguagem heteropatriarcais, elas nunca tenham sido órgãos mais femininos do que os meus pés ou as minhas orelhas.

Eu tinha carne em torno de minhas aréolas, mas não tinha exatamente seios de mulher. A linguagem patriarcal e a violência do olhar heterossexual kitsch nos privam da experiência sensual da pele como terminação nervosa que encontra o mundo, transformam o corpo vivo em objeto anatômico de gênero e neutralizam seu poder de rebelião. Esse é o paradoxo: precisei passar por uma intervenção cirúrgica para remover os órgãos “femininos” que nunca tive.

Duas incisões horizontais de dez centímetros cada foram feitas ao nível do plexo solar, as glândulas e o tecido adiposo foram removidos, as aréolas foram retiradas e enxertadas na pele, um ou dois centímetros acima de onde estavam, e então a pele do torso foi fechada e suturada. Dois drenos de cada lado permitiram, nos primeiros dias depois da operação, secar os sangramentos. O processo de cicatrização e recuperação é longo e intenso, impedindo que os braços se movam por semanas — a dor e a tensão absorvem toda a energia vital. Depois, pouco a pouco, a alegria política e a sensação de uma liberdade nova substituem a dor e até mesmo a memória da dor.

Convicções

Ao longo de todo o século 20, e até os dias de hoje, dois discursos opostos, mas pretensamente científicos, buscaram definir ou impedir as cirurgias trans. Por um lado, o discurso médico, que, tendo inventado a noção de “transexualidade” como patologia nos anos 50, vê as cirurgias como processos de “redesignação terapêutica” destinados a adaptar a anatomia do paciente à sua representação psíquica de gênero, reduzindo assim o grau do que eles chamam “disforia”. Já para o discurso psicanalítico dominante, de Lacan a Catherine Millot e Jacques-Alain Miller, o desejo de transformação corporal trans é uma alucinação psicótica que leva à “mutilação”.

O objetivo da terapia psicanalítica é a normalização da autorrepresentação de gênero do paciente, a “aceitação” de seu corpo anatômico “como ele é”, ou seja, como visto pelo olhar binário dominante. Ainda que aparentemente antagônicas, essas duas doutrinas compartilham um quadro epistemológico comum: a convicção de que existem apenas dois sexos anatômicos e duas experiências normais de gênero (masculino ou feminino), e de que a saúde depende da adequação linear e normativa entre anatomia e psicologia.

Aspiramos, conscientemente ou não, à subversão da forma anatômica binária dominante

Diante desses dois discursos, as políticas trans e não binárias contemporâneas afirmam que não há nem mutilação nem redesignação. Cada cirurgia é um enunciado somático que inventa um modo de vida para além do binarismo sexual e de gênero. Uma mastectomia trans implica uma inversão total dos valores, um questionamento completo da ótica, da perspectiva e do toque hegemônicos. Ela é mais profunda e permanente do que uma tatuagem, mais produtiva e íntima do que qualquer filtro aplicado a uma imagem digital. O que nós, dissidentes do sistema binário heteropatriarcal, os mutantes, queremos quando cortamos certos órgãos e desenhamos cicatrizes, não é reproduzir a masculinidade e a feminilidade normativas e mercantilizadas.

Se meus “seios” nunca foram para mim órgãos femininos, também não vejo minhas novas cicatrizes como parte de um torso masculino. O que a cirurgia apagou em mim foi a possibilidade de um olhar heteropatriarcal que feminiza e normaliza o meu corpo. As cicatrizes são emblemas de um exílio somatopolítico. Nós aspiramos, conscientemente ou não, à subversão da forma anatômica binária dominante.

Escrevo isso acariciando meu torso quase convexo, agora atravessado por duas cicatrizes vermelhas e ainda sensíveis que, separadas por menos de um milímetro na altura do esterno, desenham dois sorrisos como o dos emojis. Essa descontração, esse riso, me devolvem a um momento de minha infância. Meu corpo de criança e adolescente já tinha a memória exata do futuro: ele sabia como era e como seria antes e depois de outros projetarem sobre ele a norma. Contra todas as expectativas, contra todo valor prognóstico, psicanalítico ou psiquiátrico, este torso é meu. E isso é bom. Assim seja.

Este texto faz parte do especial “Livros e Livres”, sobre literatura LGBTQIA+, realizado com o apoio do Fundo de Direitos Humanos do Reino dos Países Baixos e publicado na edição #77 da Quatro Cinco Um

Editoria com apoio do Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos

Desde 2023, o Fundo de Direitos Humanos da Embaixada do Reino dos Países Baixos apoia a cobertura especial Livros e Livres, dedicada a títulos com temática LGBTQIA+

Quem escreveu esse texto

Paul B. Preciado

Publicou a coletânea de ensaios Um apartamento em Urano (n-1).

Matéria publicada na edição impressa #77 em novembro de 2023.